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Salvador já se agita com o período das festas populares

Mesmo com aumento de casos de Covid, cidade se movimenta para receber a maior festa do ano, o Carnaval

Publicado domingo, 04 de dezembro de 2022 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
A baleira Jaciara dos Santos, na Caminhada do Samba
A baleira Jaciara dos Santos, na Caminhada do Samba -

Depois de um longo período sem festas pelas ruas de Salvador, a baleira Jaciara Carmo dos Santos caprichou no visual e subiu em um ônibus em Periperi no início da tarde do último domingo, para trabalhar na Caminhada do Samba, a partir do Campo Grande. Com carrinho estilizado repleto de guloseimas, vestido preto e uma sandália com salto, postou-se no calçadão à espera de clientes.

Quando foi convidada a posar para fotos, inclinou-se suavemente ao lado do carrinho como quem faz um ensaio fotográfico e ouviu de uma companheira de trabalho, vendedora de cerveja: "Vai, gostosa!". Depois de dois anos de pandemia, a baianidade está nas ruas da cidade, de olho nas festas de largo.

Mas nem deu tempo de terminar o close para a foto e o recrudescimento dos contágios com a nova cepa de Covid-19 já começa a impactar as festas desse ciclo. A Arquidiocese do Salvador manteve a procissão em homenagem a Santa Bárbara, que inaugura hoje o período festivo do verão, mas o Corpo de Bombeiros desistiu de promover a aglomeração para distribuição dos pratos de caruru.

O receio de contágio pelo vírus acompanha reverentemente a alegria das manifestações populares. Meio de longe, o petroquímico aposentado Moisés Andrade acompanhou, ao lado da namorada Poliana Monteiro, no Campo Grande, a saída dos trios elétricos que celebraram a Caminhada do Samba. Nada no bolso e nas mãos? Um instante, maestro! Moisés retira da bermuda uma máscara e mostra que está preparado para momentos em que se exija proteção. "Eu ainda estou preocupado", diz Moisés Andrade sobre o uso da máscara, para o caso de, tal como o profeta do Antigo Testamento, precisar abrir caminho em meio à multidão.

Morador do Campo Grande, o petroquímico aposentado costuma descer do prédio todos os anos para observar as festas, especialmente o Carnaval, junto com Poliana. "Ainda estamos aí na expectativa se ano que vem vai ter ou não Carnaval", explica Poliana.

Desta vez, foi uma descida bem cautelosa. Enquanto vendedores ambulantes dançavam com suas mercadorias, o casal permaneceu lado a lado, bem-comportado, quase em frente ao acesso para a bilheteria do Teatro Castro Alves, observando o movimento de longe.  Enquanto isso, os trios, que saíam do trecho do largo do Campo Grande que fica de frente para o Wish Hotel da Bahia, levavam uma parte do público em direção à Praça Castro Alves. 

No trajeto, cenas típicas do Carnaval, como uma menina que aparentava menos de 10 anos e que tampou os ouvidos com os dedos indicadores à medida em que um dos trios se aproximava da saída do Politeama de Cima, enquanto a mulher adulta que lhe acompanhava espichava a cabeça para a frente, tentando enxergar o trio elétrico.

Para quem gosta de estar no meio da rua, voltar a festejar sob o céu destampado, sem portões e catracas é um alívio. "Quando voltaram as atividades em ambientes fechados, eu fui ao show de Ivete no Centro de Convenções, de Ana Mametto, no Pelourinho. Mas mesmo se colocassem um trio em um ambiente fechado não seria a mesma coisa", afirma o professor Júnior Alves, que tem porque festejar.

"Conseguir superar uma pandemia é um privilégio que precisa ser comemorado, sim. Espero ter saúde e continuar trabalhando para aproveitar da melhor forma minha vida", destaca o professor.

Fã de Bell Marques, Daniela Mercury e Timbalada, Júnior costuma frequentar o circuito Barra-Ondina e tem como boa lembrança da folia, em 2014, uma tarde em que estava na pipoca com uma amiga e viu, do nada, dois abadás da Timbalada serem jogados do trio em sua direção.  O suficiente para que os dois pudessem entrar na corda.

Como nem todo mundo recebe, assim, presentes caídos do céu, o professor torce para que, no plano coletivo, 2023 inaugure um momento diferente. "Que o novo governo seja ótimo para todos e principalmente para os menos favorecidos financeiramente", pondera.

Aglomerações

A necessidade de fazer dinheiro aumentou drasticamente na pandemia para quem trabalha como vendedor ambulante nas festas populares.  E muitas vezes é o principal, senão único motivo, para enfrentar aglomerações. A baleira Jaciara do Carmo leva seu trabalho na folia muito a sério e capricha nos adereços.  Durante o Carnaval, sai até de máscara. Não a sanitária, mas o adorno festivo para compor seu figurino.

Ela costuma levar o seu carrinho cor-de-rosa onde houver gente festejando, no Bonfim, no Centro, até em Madre de Deus. Não tem uma festa que seja particularmente de seu agrado. É onde der para fazer dinheiro para pagar o aluguel e sustentar a casa em Periperi.  "Esse ano, eu não tive motivo para comemorar.  Espero que ano que vem seja melhor", afirma.

Católica e devota de Santa Bárbara, porque sua mãe recorreu à fé quando ela precisou ser submetida a uma cirurgia para retirar o excesso de carne esponjosa na garganta (adenóide), aos quatro anos de idade, a dona de casa Luciana dos Santos celebra a vida até por superar as dificuldades para se manter de pé.

Portadora de filariose linfática, a elefantíase, Luciana precisa de um tratamento caro que não tem condições de bancar. "Esse ano, fiquei três meses internada em Irmã Dulce.  Mas não tenho dinheiro para comprar material, como meias especiais, nem pagar o tratamento", afirma.

As festas populares de Salvador têm essa singularidade da procura simultânea por bênção e celebração. O sociólogo José Maurício Bittencourt aponta que, desde a chegada dos africanos escravizados à cidade, há mais de quatro séculos, nem o chicote nem as chagas foram capazes de estancar o canto festivo da população negra ao longo do tempo.

E que, por isso mesmo, ele não acredita que uma pandemia corte os vínculos entre a sociedade e o calendário de festas populares. 

"Estamos num momento de transição, com novas cepas. Mas o medo da população não abalou o que as festas trazem de comunhão, fé, alegria e mesmo de mercado de trabalho para os músicos", afirma Bittencourt, que também é escritor, poeta e assessor de desenvolvimento institucional da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA).

Ele destaca que mesmo quando a presença física não é possível nos principais festejos do ciclo de verão, Salvador adere à celebração através da roupa, com uma paleta de cores específica, em que o centro da cidade é inundado pelo vermelho de Santa Bárbara, o amarelo da Conceição da Praia, o branco da Lavagem do Bonfim e de Yemanjá.

"Santa Bárbara é o feminino sagrado de Iansã, o vermelho da tempestade, da chuva, do trovão, as forças que mobilizam as pessoas a irem às ruas", afirma.

Respiradores

Depois de dois anos em que a perspectiva de uma morte angustiante por falta de ar e a possibilidade de passar até duas semanas sob internação com os pulmões ligados a respiradores mecânicos instalados pela garganta, não se pode dizer que a cidade esteja respirando aliviada com a volta das festas populares.

Foram registrados novos óbitos ligados à Covid, que desde 2020 já matou mais de 30 mil baianos. E estima-se que a nova variante BQ1, contra a qual ainda não há vacina efetiva disponível no país, deve se tornar em alguns meses a variante predominante no Brasil.  Há um mês, no dia 5 de novembro, a Fiocruz registrou no Rio de Janeiro o primeiro caso de transmissão local da BQ1.

O alerta foi dado e, depois que o governo do estado decretou a volta da obrigatoriedade do uso de máscaras no transporte público, bares, restaurantes, shoppings e outros ambientes fechados, o Corpo de Bombeiros decidiu limitar a sua participação na festa de hoje à recepção da procissão, suspendendo o caruru, que será entregue a moradores de rua em diferentes pontos da cidade.

Por isso, mesmo destacando a importância da preservação das festas populares e que uma eventual morte desses festejos seria de alguma forma a morte da identidade baiana, José Maurício Bittencourt chama a atenção para a importância de seguir as recomendações de cientistas e das autoridades sanitárias: "A gente não pode desafiar o vírus. Todo cuidado possível deve ser tomado e precisamos seguir as normas e diretrizes da ciência e de quem está à frente dos decretos".

Co-autor, junto com o músico e compositor Betho Wilson, de músicas sobre festas populares que embalaram a programação de uma emissora local de TV em 2019, José Maurício apresenta-se hoje no espaço cultural Mãe Comida Afetiva, no terraço do Museu Casa do Carnaval, ao lado de seu parceiro, às 16h. O projeto, chamado Letra & Canção, traz ainda os músicos convidados Lucas Robatto (flauta) e Alexandre Vieira (baixo).  O ingresso custa R$ 20. 

"É um convite que a gente faz à comunhão das palavras e desses ritmos que vão levando a gente a acreditar nesse horizonte de esperança que está aí", afirma.

Como José Maurício assinala, as negras e negros que desde o princípio no Brasil buscavam cura e resistência, transmitiram de geração em geração, sem partituras, os ritmos que até hoje ecoam nos becos da velha Cidade da Bahia.

Ainda é cedo para saber se o ciclo de festas vai ser interrompido ou não. Se, de fato, vai ter Carnaval e quando chega a vacina que seja eficiente para a nova cepa, a BQ1. Mas hoje, mais do que o normal, Salvador acordou disposta a pedir bênçãos.

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