MUITO
Samba da Bahia: Walmir Lima, 90 anos
Por Gilson Jorge
O quarto sem janela logo no início do imóvel que ocupa o segundo andar de um prédio de três andares, perto da Estrada das Barreiras, no Retiro, encerra lembranças de seis décadas de samba. Fotos com Cartola e Beth Carvalho, desfiles de blocos soteropolitanos, como o Alerta Geral e os Internacionais, uma mesa de som sobre uma estante que reúne os discos em vinil lançados pelo sambista Walmir Lima e CDs de outros artistas, como Roberto Carlos e Andrea Bocelli.
Na parede de entrada está pendurada a partitura de Ilha de Maré, sucesso na voz de Alcione, em 1977, composta pelo dono da casa em parceria com Lupa, que virou hino da baianidade. Foi composta após o músico ir a um seminário de música com Sérgio Cabral e ouvir no evento que o samba de roda estava sendo perdido. Ficou com essa informação e, numa festa de largo do 8 de dezembro da Conceição da Praia, começou a compor a música, com base no samba chula de Santo Amaro
A letra está na cabeça do motorista do Uber que, por medo de assalto, recusou-se a entrar com o carro na rua. Antes de demonstrar preocupação em circular pelo bairro, ele cantarolou um trecho da canção, mas disse que nunca tinha ouvido falar no compositor que mora por ali e que completou 90 anos no último dia 18 de junho.
Walmir Lima já era um dos mais conceituados sambistas baianos no início da década de 1980. Havia gravado quatro LPs nos cinco anos anteriores, período que incluiu uma viagem de trabalho a Nova York, em 1976. Nenhum outro sambista baiano conseguiu gravar tanto naquela época.
Com o sucesso nacional de Ilha de Maré, passou parte da segunda metade da década de 70 e o começo da de 80 entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Durante uma roda de samba no Cacique de Ramos, tradicional bloco carnavalesco carioca, um músico iniciante, de 22 anos, Jessé Gomes da Silva Filho, aproximou-se de Walmir e lhe deu uma fita-cassete com uma música que tinha composto em parceria com Arlindo Cruz e pediu que o sambista baiano a escutasse.
Walmir Lima gostou da canção Dez Mandamentos, a gravou e se tornou o primeiro intérprete daquele jovem, que cinco anos depois lançaria o seu primeiro álbum e se tornaria conhecido como Zeca Pagodinho.
Base
O primeiro contrato de Walmir foi com a gravadora CBS, que o levou aos Estados Unidos. Ele viajava pelo Brasil todo, mas manteve sua base na Bahia. Quando assinou com outra multinacional, a K-Tel, teve que se mudar para o Rio, onde se hospedou na casa de um amigo. “Ele disse que eu abria minha casa para todo mundo na Bahia e que eu ia ficar na casa dele, que tinha quarto de hóspedes”, conta.
Em 1980, a K-Tel encomendou a ele um disco com samba de roda. Walmir garimpou canções de Chocolate da Bahia, Paulinho Camafeu e outros artistas e levou para serem gravadas por sambistas cariocas.
A essa época, tinha contrato com a Editora Irmãos Vitale, uma das mais tradicionais do segmento musical, que tinha em seu portfólio Adoniran Barbosa, com quem Walmir cantou, e Benito di Paula. O sambista se apresentava em São Paulo nas casas noturnas da Rua Bento Freitas, de terça a sexta. “Depois, me picava pro Rio, que eu gostava mais”.
Por lá, Walter morava no bairro do Flamengo, na zona sul carioca, mas não parava quieto em casa. “Eu saía na quinta-feira e só voltava no domingo”, lembra o sambista. Entrava numa van com os outros músicos, se deslocava por diferentes pontos da cidade e depois de cada apresentação recebia o cachê em espécie.
A divulgação em cartazes é outra lembrança: “Eles botavam ‘presença de fulano, fulano e fulano’, e o pessoal ficava esperando pra ver. Fiz um bocado de fãs lá. Entendeu como é?”.
Vida de bamba
Walmir passou muito tempo dentro das escolas de samba. Fez amizade com Beth Carvalho, que frequentava o Cacique de Ramos com Jorge Aragão, e esteve novamente com Cartola, que tinha vindo visitá-lo na Bahia junto com a companheira dona Zica e Carlinhos Vergueiro. Nessa época, ainda morava no Pau Miúdo. “Cartola ia gravar comigo, mas teve um problema na laringe e eu gravei a música dele (Cordas de aço) sozinho”, lembra Walmir. Cartola morreria em dezembro de 80, meses depois do lançamento do disco.
Nesse mesmo álbum, ele gravou Ilha de Maré, seu principal sucesso, que se tornaria também uma peça de valor simbólico. Seu refrão, “aí de carroça andei, comadre”, evoca a tradição das carroças de jegues na Lavagem do Bonfim, que seria interrompida em 2011, quando a Justiça proibiu o uso de veículos com tração animal em festejos.
“Essa música fez com que todo mundo quisesse ir sambando mesmo e não em cima do caminhão”, afirma o sambista Chocolate da Bahia, que se encontrava com Walmir e Paulinho Camafeu no Mercado Modelo para tomar uma antes de acompanhar o cortejo até o Bonfim. “Sempre vi Walmir Lima, Nelson Rufino e o finado Ederaldo Gentil como poetas refinados. O que Riachão e eu não éramos tanto”.
Depois, Walmir Lima gravaria Não deixe essa noite clarear, de Chocolate, considerada por ele mesmo um progresso poético. Sobre Walmir, ressalta a elegância, mesmo na farra: “Nunca foi cachaceiro, um cara que bebia, mas nunca deixou a bebida beber ele”.
O artista de 90 anos ainda bebe uma cerveja em casa e, de vez em quando, um uísque. Pode nunca ter enfiado o pé na jaca, mas lembra de situações engraçadas ligadas ao álcool. O sambista que costumava “paletar” do Pau Miúdo ao Barbalho para encontrar os amigos em rodas de samba, escapou de um assalto ao subir a Rua Pau da Bandeira no final da década de 1970, quando o ladrão, ao ver um instrumento em suas mãos, puxou conversa e descobriu que ele era o autor de Ilha de Maré. “Ele ainda me levou para um boteco e pagou cerveja pra gente”, conta.
Parceiro
Em 1955, o jovem Walmir Lima conhece na Curva Grande do Garcia, perto do Colégio Antônio Vieira, o adolescente Nelson Rufino, irmão de sua namorada, de quem se tornaria amigo, parceiro de samba e de serestas. Era o cunhado boa-praça que jogava futebol com Nelson no Bangu, time da Curva Grande, e que o acompanhava nos ensaios do bloco Mercadores de Bagdá, uma referência.
Sobre a influência de Walmir em sua carreira, diz Nelson Rufino, autor de Verdade (Descobri que te amo demais): “Ele que me deu a caneta. Nelson Rufino falar de Walmir Lima é quase uma obrigatoriedade, cercada de muito carinho, de muito respeito”. Em uma noite de festa o amigo mais velho apareceu de terno, e Rufino lhe colocou o apelido Picardia, palavra que traz, entre diferentes significados, uma alusão à elegância, ao garbo. Um passou a chamar o outro de Picardia, mas o apelido pegou mesmo em Walmir.
Juntos, os dois colocariam na Avenida em 1972 o Bloco Alerta Mocidade, precursor do Alerta Geral, no qual compuseram juntos sambas vencedores de muitos carnavais.
O cineasta e músico do grupo Botequim, Pedro Abib, destaca: “Ele tem uma história ligada ao Carnaval da Bahia, na época em que tinha escolas de samba aqui. Era um dos principais compositores de escolas de samba”.
Abib está produzindo um documentário sobre a vida de Walmir Lima, para quem as músicas do sambista têm tudo a ver com a Bahia ancestral. “São pérolas reconhecidas por todo mundo”.
São de Walmir, entre outras, Miro Pandeiro de Ouro, gravada por Ederaldo Gentil; a música tema Internacionais Amor e Paz, do bloco Internacionais; Dindinha lua, com Beth Carvalho, e Alcione voltou a gravá-lo com Bom Jesus dos Navegantes.
Sobre a decisão de fazer o documentário, Abib considera que o sambista é pouco reconhecido na Bahia. “Nas gerações mais novas, por exemplo, poucos ouviram falar dele. O documentário tem esse papel de eternizar a memória das pessoas que a gente considera importantes”, afirma o artista, que tem no currículo um documentário sobre Batatinha.
O projeto atual, em parceria com o também documentarista Henrique Dantas, está em fase de captação de recursos. Gravaram na casa de Walmir e numa viagem de barco até a Ilha de Maré, mas a produção está sendo feita “na raça”, como diz Abib, sobre a falta de recursos.
Rotina
De volta à Bahia, Walmir Lima combinou a rotina de sambas no Garcia, na Cantina da Lua, no Nordeste de Amaralina ou onde tivesse uma roda de amigos, com o trabalho de servidor público. Em uma noite de 1988, ele estava tomando uma cerveja num boteco da Rua Araújo Pinho, no Canela, quando reparou em uma moça em outra mesa, de costas para ele, que conversava com uma amiga.
Marinalva foi abordada por Walmir, que pediu para se juntar a elas. Era o começo do romance entre o artista boêmio, farrista moderado, e a cidadã ilheense que trabalhava no Detran, gostava da noite, mas não era muito de varar a madrugada. “Eu fui aprendendo a lidar com essa vida que ele leva”, diz Nalva.
Veio o casamento e, em 1993, quatro meses após o nascimento da filha Gabriela, eles se mudaram para Coaraci, no sul do estado, para morar perto da família de Marinalva. Abria-se uma pausa em sua carreira em favor de um tempo maior com os parentes. O casal teve outro filho, João Gabriel, morto aos 17 anos, vítima de um câncer cerebral.
Longe das rodas de samba na capital durante a infância da filha, o músico, que ficou conhecido por abrir espaço a novos talentos, descobriu em casa uma nova voz. Aos 7 anos, Gabriela foi incentivada pelo pai a participar de um festival escolar em que tinha de fazer uma apresentação artística. Escolheu cantar Salvador não inerte, do Olodum.
“Meu pai começou a me influenciar, eu ouvia as músicas dele dentro de casa, Martinho da Vila, Elza Soares, Beth Carvalho, e teve minha vontade também”, diz a cantora e formanda em jornalismo, que ainda está decidindo o que fazer, mas por enquanto carrega a novidade de ser a primeira cantora mulher de uma tradição familiar iniciada por um bisavô paterno tocador de violão e levada adiante pelo avô, maestro de orquestra, em Santo Amaro.
O produtor Paulinho Timor, responsável pelo show gravado recentemente na Casa Preta, no Dois de Julho, em homenagem aos 90 anos de Walmir Lima e que foi ao ar no último dia 11, pelo canal do É Samba da Bahia no YouTube, destaca: “Para mim, ele faz todo tipo de música, samba de breque, samba pra escola de samba, samba-canção. É um compositor versátil e muito completo”. Walmir quer mais festa. Está só esperando a pandemia ir embora para, junto com Nalva, ir atrás de uma roda de samba.
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