MUITO
Sambas de Salvador: uma alegria resistente
Pessoas se deslocam pelas dezenas de lugares onde se toca samba em Salvador
Por Gilson Jorge
São quase cinco horas da tarde de um sábado e o samba está comendo solto na Rua Jogo do Carneiro, na Saúde, no bar Casa di Rosa, onde semanalmente dezenas de pessoas se reúnem para dançar, beber cerveja e comer feijão, o combo sagrado dos sambistas. Do outro lado da rua, um pouco afastados do som, os amigos Indicevã Rodrigues e Joel Pereira conversam, esforçando-se para ouvir um ao outro. Um homem grisalho passa apressado, toca no ombro de Indicevã e lhe avisa: “Preciso falar com você!”.
O passante não foi o único a puxar papo. Há muitas pessoas que se deslocam pelas dezenas de lugares onde se toca samba em Salvador, não apenas para se divertir, mas para manter os laços de amizade. É o circuito do samba, que inclui grupos de fã-clubes que seguem de bar em bar as suas bandas preferidas.
Morador do Engenho Velho de Brotas, o mecânico Indicevã vai a Itapuã, ao Garcia, ou a qualquer bairro onde haja uma batucada com gente conhecida. "Eu tenho muitos amigos no samba, as pessoas me conhecem. Eu frequento muito um samba em Itapuã, adoro roda de samba", afirma.
Mas ele também é fã da Samba de Gogó e, nesse sábado, foi prestigiar os amigos da banda sediada no Garcia, um dos seis grupos que se apresentam regularmente na Casa di Rosa.
O bar, aberto há dois anos pela enfermeira Rosa Sacramento, se tornou mais um ponto de encontro de sambistas. Na verdade, o Casa di Rosa surgiu informalmente há 14 anos em torno da feijoada que Dona Rosa começou a fazer para amigos em dias festivos.
Com o tempo, ela acatou a sugestão de um amigo para passar a vender o delicioso quitute. Durante a pandemia, a venda era por delivery, mas depois de tanto isolamento social as pessoas estavam ávidas por encontros. E quando o bar abriu as portas para a clientela trouxe junto a roda de samba, organizada por sua filha, Roberta Sacramento.
“A gente queria dar uma movimentada na casa, porque as pessoas vinham, comiam e iam embora. Pensei na coisa da ancestralidade e me dei conta que praticamente não havia samba na rua”, conta Roberta.
Casa cheia
Dona Rosa afirma que não esperava que o samba em sua porta ganhasse as dimensões atuais. “No primeiro dia, eu fiz uma panela de feijão”, conta a matriarca, que mantém um sorriso largo com a porta de casa cheia de gente aos sábados.
Até porque ela é uma sambista convicta, que saía de casa para se divertir não apenas em festas de largo, mas também em rodas de samba ao longo do ano. Hoje, ela recebe em sua casa sambistas de outras áreas da cidade.
A banda Samba de Gogó surgiu há 11 anos, durante uma conversa no Bar do Bebel, no Garcia, em uma quarta-feira. "A história começou ali mesmo, com a ideia de fazer uma roda de samba", lembra Xel Repique, líder do grupo e que já acompanhou Nelson Rufino, além de Batatinha e Beth Carvalho, esses dois já falecidos. A roda de samba cresceu e o evento passou a ter um viés solidário, com os clientes levando um quilo de alimento não-perecível, comida destinada à Paróquia e ao atendimento de pessoas vulneráveis do Garcia.
O samba acontece na última quarta-feira do mês e, no domingo seguinte, os alimentos arrecadados são distribuídos. "Nós pegamos dois ou três carros e levamos as doações para creches, abrigos e orfanatos", afirma Xel. A celebração do 11° aniversário foi no dia 31 de janeiro. "Fechamos ali o Largo do Garcia. O público abraçou o evento e foi um sucesso. E de um ano e meio para cá, Beta nos convidou para tocar na Saúde", conta o músico.
Quem é do samba raiz, sabe onde encontrar uma boa roda de samba. Qualquer um pode sambar nas noites de sexta-feira perto da Igreja de São Lázaro, na Federação, ou domingo por volta do meio-dia na Feira de São Joaquim. Mas há uma variedade de rodas, que incluem bairros como Saboeiro, Mussurunga e Trobogy.
O influenciador digital carioca Leonardo Quintino, apaixonado pela Bahia e pela Império Serrano, listou em sua página no Instagram 40 lugares para sambar em Salvador nos meses de janeiro e fevereiro.
Leo começou a visitar Salvador em 2016, sempre com a vontade de morar na Bahia, o que o levou a tentar até o concurso da Polícia Militar. Mas foi com a página @vocedisseviagem, criada em 2019, que ele conseguiu se estabelecer em Salvador. E para completar sua felicidade, Leo assinou um contrato temporário com uma plataforma de ingressos para cobertura de eventos na cidade.
"Eu sou embaixador da Sympla por três meses", conta Leo, que logo depois de assinar o documento correu para tatuar no antebraço direito símbolos soteropolitanos, como o Farol da Barra e o Elevador Lacerda. Uma forma de agradecer à cidade.
Pandeiros e tamborins
A conexão com o samba soteropolitano foi rápida. Filho de uma ex-porta-bandeira da Império Serrano, Leo cresceu entre tamborins e pandeiros. "Eu cresci no barracão, fazendo confecção de roupas. Sou formado em produção de fantasias, fui mestre-sala por um tempo. Desde criança, eu tive vivência com o samba", explica Leo.
Dentre os locais de samba em Salvador que visitou, Leo relata ter se identificado com o de São Lázaro. "É samba de rua, parecido com os que eu frequentava no Rio. É gratuito, as barracas que pagam pelo samba no intuito de atrair clientes", pontua o influenciador.
Em pleno Terreiro de Jesus, nos fundos do Bar do Cravinho, nas noites de terça, ecoa um chamado para sambar. É nesse ambiente, aonde se chega através de uma porta estreita, que funciona o Clube do Samba, criado há 18 anos no Dique do Tororó e que dois anos depois se transferiu para o Centro.
"Nós rodamos a cidade, estivemos um tempo no Sindicato dos Bancários, na Rua Carlos Gomes, a Praça do Reggae, a Casa Colonial 17, no Pelourinho, e depois fomos para o fundo do Bar do Cravinho", conta o fundador e ex-presidente do clube, Wilson Santos, que atualmente ocupa o cargo de diretor de eventos. "Na minha opinião, a roda de samba é o movimento mais democrático que existe. As pessoas se juntam por diferentes motivos. Uns para conhecer pessoas, outros para se distrair dos problemas".
Foi Wilson quem criou há 16 anos a banda residente do Clube do Samba, que se apresenta todas as terças, às 19h. Há dez anos, essa banda foi batizada de Rara Raiz e tem como líder o vocalista e cavaquinista Vagner Santana. "Aqui é o nosso QG. Já fizemos apresentações semanais no Cabula, em Plataforma e em outro bar do Centro Histórico", afirma Vagner.
Lugar garantido
O vocalista se considera uma pessoa caseira e nas horas de folga não costuma circular pelas rodas de samba, mas, com base em suas conversas com outros músicos arrisca um diagnóstico sobre a cena em Salvador. "Apesar de ser um gênero menos priorizado pelas políticas públicas, é um setor da música que sempre se mantém. Até por ser base para as outras vertentes musicais, o samba nunca vai se findar. Vai ter sempre o seu lugar garantido", afirma Vagner, que gosta de escutar Cartola, Noel Rosa, Pixinguinha e Nelson Cavaquinho. Dos contemporâneos, o músico cita o grupo Fundo de Quintal, Jorge Aragão e Zeca Pagodinho.
Uma curiosidade é que Vagner começou a carreira tocando pagode, mas de encantou com o samba durante o período em que morou em Belo Horizonte. "Na região leste da cidade, Alto Vera Cruz, Pompéia, tem muito samba raiz. Eu disse que sou caseiro, mas uma coisa que não me faz sair aqui é que há muita mistura, não me alimenta", declara Vagner.
Representante maior do Ilê Aiyê, o mais antigo bloco afro da Bahia, Vovô do Ilê esteve na apresentação do Rara Raiz no dia 6 de fevereiro e tem uma visão levemente otimista sobre o cenário do samba em Salvador. "Eu vejo uma cena cada vez mais fortalecida, mas faço uma ressalva. Eu gostaria de ver o samba da Bahia mais prestigiado. O samba afro, o samba do Recôncavo, o samba de roda, o samba junino", pondera Vovô.
O líder carnavalesco e ativista, que na juventude frequentou rodas de samba na Liberdade, no Garcia, no Nordeste de Amaralina e no Engenho Velho da Federação, vê nessa tradição uma saída: "Esse samba, baiano, é uma chave para o Carnaval também".
Uma das sócias do bar Batatinha, voltados ao samba e ao choro, a cantora Patrícia Ribeiro destaca que, além das tradicionais rodas de samba na periferia, comandadas pela velha guarda, o samba começou há 15 anos com o que chama de "movimento de resistência" em bares de bairros centrais. Um movimento iniciado pelo Grupo Botequim.
"Foram eles que abriram as portas para formações mais novas, como o Samba do Liba, o Samba das Comadres e o Samba das Pretas", pontua Patrícia, que juntamente com os sócios, Thiago Leite e Roberto Ribeiro, deve preparar uma programação especial no bar este ano em homenagem ao centenário de Batatinha, a ser celebrado em agosto deste ano.
Patricia enfatiza o termo resistência, por causa da falta de apoio que a música mais representativa do Brasil enfrenta na Bahia e em Salvador, tanto na esfera pública quanto pela sociedade.
"A gente tem apoio na cena alternativa, mas é uma bolha", afirma a musicista. O bar funciona há um ano e meio no mesmo imóvel da família Batatinha, na Ladeira dos Aflitos, que abrigou o mítico Toalha da Saudade, desde a década de 1980.
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