ENTREVISTA
“Saúde significa educar as pessoas para que tenham autonomia”
O gastroenterologista Luiz Queiroz explica o efeito do que comemos
Por Gilson Jorge
No mundo ideal proposto pelo médico Luiz Queiroz, a feijoada, prato tipicamente brasileiro, só deveria ser consumida uma vez a cada mês ou 40 dias. E ainda assim, com uma dieta à base de frutas no dia seguinte, para desintoxicar. Mas Queiroz não acredita no modelo clínico em que o paciente apenas é informado sobre o que deve fazer e marcar uma pilha de exames. Para o médico, uma parte significativa do sucesso na promoção da saúde é dar às pessoas o conhecimento necessário para que ela estabeleça sua dieta e molde seu modo de vida de forma autônoma, a partir de bases fornecidas pela ciência.
Nesta entrevista, o gastroenterologista, psicoterapeuta e praticante de medicina integrativa, que ministra no próximo sábado uma palestra sobre vida saudável integrativa, explica o efeito do que comemos e de como dormimos, sofremos, nos exercitamos e nos relacionamos sobre a flora intestinal e o resto do nosso organismo. E se você quer levar uma vida saudável, corte em pedaços bem menores a carne que está armazenada no freezer. Avalia-se que o ideal é não comer mais do que 100 gramas de carne vermelha por dia.
O que se define exatamente como vida saudável integrativa e como podemos alcançar um maior bem-estar?
A assistência à saúde precisa ser um direito da pessoa e a pessoa precisa desenvolver autonomia, e precisa também entender o que é o autocuidado, como ela vai alcançar a competência para cuidar de si mesma. Isso tudo hoje é delegado principalmente ao médico, o que é um erro, porque na verdade tem uma equipe de profissionais de saúde. Porque saúde significa educar as pessoas para que elas tenham autonomia e conhecimento sobre os fatores de risco à saúde, e esses fatores têm a ver com hábitos de vida. Os hábitos são tão importantes quanto fazer exames com periodicidade. E hoje a nossa assistência é só focada em fazer exames, ir ao médico, ao posto de saúde, o que encarece bastante a assistência médica.
É melhor prevenir, com boa alimentação...
Quando a gente fala para as pessoas que elas precisam se alimentar bem, fica parecendo um chavão. Alimentar-se bem, como? Quando eu não como da forma adequada começo a promover uma inflamação crônica sistêmica no meu corpo. E alimentação é importante porque ela vai gerar uma oxidação, um estresse oxidativo no meu corpo, que vai gerar toda uma desarrumação do organismo. Isso é algo que começa na adolescência, levando à obesidade, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia [colesterol alto], alterações na flora intestinal que levam ao diabetes, e uma série de alterações que levam a doenças não comunicáveis [câncer, doenças cardiovasculares e pulmonares]. Aí a gente vai tocar num assunto muito sério que é o lobby das indústrias alimentícias. Com todo o respeito. O que está por trás disso são os alimentos ultraprocessados e processados. Tem a questão da merenda escolar. Até que ponto há uma quantia necessária de alimentos naturais nas escolas? Aí estamos falando de saúde pública, vamos para os exercícios físicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o mínimo de 150 minutos de exercício por semana. Vamos agora para as relações saudáveis, passando pela estruturação da família, o alcoolismo, a misoginia, o machismo. Há uma série de publicações científicas mostrando como a rejeição e a opressão levam o nosso cérebro a elaborar isso como um processo que vai levar à produção de marcadores de inflamação no nosso corpo, que em última instância vão nos levar a doenças. São muitos aspectos que fazem com que os tratamentos de saúde não possam ser focados numa consulta ortodoxa de 15 minutos, com a marcação de exames.
Seria, assim, cada vez menos necessário ir ao médico?
Não é que cada vez menos necessitaremos do médico e da equipe de saúde. Temos profissionais de enfermagem, nutrição, psicologia, educação física. Esses profissionais atuariam muito mais num nível de prevenção do que o que acontece hoje, quando fazem o tratamento de uma doença já estabelecida.
Como é a relação dos alimentos com as inflamações crônicas? O que se deve comer para evitá-las?
Esse é um ponto muito importante. O nosso organismo, por natureza, funciona utilizando oxigênio para gerar energia, o que cria um estresse oxidativo. O nosso corpo tem todo um sistema de proteção que diminui essa oxidação. Tem as enzimas, por exemplo, tem uma série de coisas que funcionam para desintoxicar o nosso corpo. Mas acontece o seguinte: eu ajudarei o meu corpo a se desintoxicar dos processos normais de oxidação se me alimentar de uma forma correta. Os alimentos que vêm do reino vegetal, de uma forma genérica, têm uma tendência a aliviar a sobrecarga sobre o fígado. O abuso de determinados chás pode sobrecarregar o fígado, obviamente. Efeitos colaterais podem ocorrer tanto na alopatia quanto na fitoterapia. Mas há vários estudos que mostram que os vegetais têm o benefício dos fitofenóis, dos terpenos, que na maioria das vezes são antioxidantes. E isso você só vai encontrar no mundo vegetal. Por outro lado, o uso das gorduras e proteínas animais trazem uma sobrecarga metabólica importante para o corpo, inclusive com a destruição da flora intestinal e a sobrecarga dos sistemas hepático e renal.
Com a recente morte da cantora Paulinha Abelha, falou-se no efeito negativo que chás de emagrecimento podem ter sobre a saúde...
Eu acho que existe um pouco de preconceito. Fica parecendo aquela história da pessoa que comeu de tudo e depois quem pagou o pato foi a azeitona. Eu não conheço a história da cantora, mas pelo que li em algumas reportagens parece que ela usou anfetamínicos e outros remédios para emagrecer.
Sobre o excesso de proteína animal, um bife por dia é suficiente?
Veja bem, o consumo máximo recomendado de proteína animal é de 100 gramas por dia. Normalmente, o bife tem mais do que 100 gramas. Sei que isso causa uma polêmica enorme, mas temos uma dieta hiperproteica do ponto de vista da proteína animal.
Há uma profusão de pessoas de diferentes áreas escrevendo sobre comer bem, com diferentes enfoques. Autora do livro O Peso das dietas, a nutricionista Sophie Deam fala em terrorismo nutricional e praticamente não condena gordura, açúcar e glúten, dando mais ênfase no ser feliz com a comida, saborear o prato. Como o senhor avalia essa afirmação dela?
Eu não conheço o livro. Mas se você procurar na internet o prato saudável atualizado da Universidade de Harvard, vai ver que ele eliminou recentemente o leite e os laticínios, coloca o azeite de oliva, sei que aí tem uma questão social, mas há uma restrição da proteína animal, escolhendo peixes, frango, feijão e nozes. Uma limitação da carne vermelha e a eliminação de todos os embutidos. Eu sou a favor do vegetarianismo, mas não acho que todos devem adotar. É uma questão de foro íntimo. Até porque não é a dieta mais saudável. A mais saudável é a dieta mediterrânea, à base de peixes, vegetais, grãos integrais, frutas e azeite. Eu concordo em ter cuidado com a neurose, comer gostoso, saborear, ter uma obrigação em sua vida de comer algo gostoso, uma rotina de comer tranquilamente, devagar. Evitar carboidratos de absorção rápida, os pães e bolos, ter uma dieta saudável, principalmente quando se tem casos de diabetes na família. Tomar um café da manhã com inhame, aipim, batata doce, banana da terra, ovos.
O café da manhã nordestino parece bastante saudável, então...
Mais ou menos, tem todas aquelas carnes...
As carnes processadas e gordurosas estão condenadas e o prato nacional, a feijoada, está repleto delas. Tem gente que come feijoada semanalmente. É uma frequência aceitável?
A feijoada faz mal. O feijão, não. Uma das refeições mais completas é o feijão com arroz. O problema e quando você mistura o feijão com todas aquelas carnes e a gordura polissaturada. Não é um prato saudável. Comer uma vez a cada 30 ou 40 dias? Pode ser, desde que no dia seguinte se faça um jejum de frutas para desintoxicar. Aí eu não vejo problema, assim como o churrasco. O que não pode é comer um churrasco a cada 30 dias, seguido de uma feijoada e um não sei que mais a cada 30 dias. Essa alimentação leva as pessoas a adoecer e inflamar. Não é a inflamação como a das juntas. A revista Nature publicou em 2019 um artigo muito bom sobre inflamações crônicas sistêmicas, que revolucionou essa área de estudos. O artigo relaciona xenobióticos, isolamento, distúrbios do sono e estresse crônico, disbiose, infecções crônicas, como geradores de inflamações crônicas ao longo da vida. Isso tem a ver com quê? A nossa vida moderna. E isso vai levar em última instância à síndrome metabólica, que leva à hipertensão, diabetes e pré-diabetes, obesidade, fígado gordo, câncer.
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