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Saveiros da Bahia: uma tradição que resiste

Embarcações faziam o elo entre o Recôncavo Baiano e Salvador

Publicado domingo, 21 de janeiro de 2024 às 06:00 h | Autor: Renato Alban
Bordejo de Saveiros durante a I Festa Náutica do Vale do Paraguaçu, realizada em São Félix
Bordejo de Saveiros durante a I Festa Náutica do Vale do Paraguaçu, realizada em São Félix -

O autor baiano Jorge Amado escreveu que a vida dos homens que navegavam com saveiros é tão instável quanto o mar, que nenhum deles anda com o passo firme dos homens da terra. “Porque toda a vez que cantam e que amam, bem pode ser a última”, declarou no romance Mar morto. Lançado em 1936, o texto registra o auge dos saveiros na Baía de Todos-os-Santos.   

O reino das embarcações com mastro e vela, que faziam o elo entre o Recôncavo Baiano e Salvador, foi celebrado na última sexta-feira, 19, Dia do Saveiro. “Chegaram a ter 1500 aqui”, diz o vice-presidente do grupo Viva Saveiro, Roberto Bezerra, o Malaca. O grupo luta para restaurar as 20 embarcações que sobrevivem à passagem do tempo. 

“Salvador comia e vivia da produção do Recôncavo e do Sertão que era deixada aqui pelos saveiros”, explica o historiador Murilo Mello.  

A maneira mais rápida e segura de transportar os mais diversos produtos era pelos rios, antes da chegada das rodovias e ferrovias no início do século 20. Hortifrutigranjeiros, materiais de construção e carne chegavam a Salvador por essas embarcações. 

Água de Meninos, Ribeira e Uruguai eram os bairros que recebiam a maior parte dos carregamentos, com destaque para o primeiro, onde fica a Feira de São Joaquim. “Essa ligação das embarcações com Salvador ainda existe, mas o saveiro hoje é mais relevante como um artefato da memória da Bahia do que pelo consumo dos produtos e migração deles”, afirma o historiador.  

Murilo explica que o saveiro, como é conhecido na Baía de Todos-os-Santos, é uma adaptação baiana de uma estrutura naval portuguesa. A embarcação era a maneira mais rápida e segura de conectar diferentes regiões do estado. “O carro só chegou aqui no início do século 20, o que é muito recente”, diz o estudioso.   

Malaca destaca outras funções do saveiro, como a veiculação de notícias pela Bahia: “Era a nossa internet”. E ressalta a importância cultural da navegação, representada em músicas, livros, pinturas, esculturas e filmes.  

Participante frequente de regatas, inclusive em saveiros, o artista plástico baiano Bel Borba é um dos responsáveis por essas obras. Ele já fez três exposições sobre saveiros. A primeira, na Praça da Sé, reuniu 40 esculturas, cada uma com 3 mil quilos. “Usei fragmentos de saveiros oriundos de restauro”, conta o artista. 

Depois, Borba fez exposições nas Docas e nos Correios usando sucatas: “Tudo alusivo ao universo dos saveiros”. O artista revela que tem orgulho em ajudar a valorização dos saveiristas. “Esse meu apoio, que tenho dado com muito carinho, faz diferença porque está associado a algo muito romântico da nossa cultura, que é a vida dos saveiristas”. 

Com 67 anos, Borba se define como um “típico baiano” por ter se aproximado do que chama de “essência da Bahia”. Para ele essa aproximação vem também das homenagens que fez às embarcações. “Essas obras me aproximaram muito da vida dos saveiristas, de Maragogipe, da feira de São Joaquim, dos locais do Recôncavo baiano, dos trejeitos e caras e bocas”, relata o artista. “Tudo aquilo que Jorge Amado esboçava está ali, igualzinho, mudou um pouco por causa da modernidade, mas segue igual”.  

Borba reforça que, para a manutenção desse estilo de vida tão icônico para a Bahia é preciso que haja apoio público e privado: “Acredito que dei o exemplo de um cara que não é um grande empresário, mas que buscou apoio financeiro através da própria obra para os saveiros”.  

Para ele, quem quer auxiliar a cidade e tem condições para isso, deve dar esse retorno ao município. “Se eu consigo ajudar com o meu sacrifico e esforço, devo fazer isso. O empresário também tem que ajudar na carne”, opina. 

Da mesma forma tem agido o grupo Viva Saveiro, que apesar dos esforços particulares em prol das embarcações e dos mestres saveiristas, tem também pedido apoio das autoridades para a manutenção do projeto. 

Sobrevivência 

Atualmente, o grupo mantém seis saveiros, três grandes e três pequenos. “Qual é o futuro do saveiro? O passado é glorioso, mas o futuro é a lama? É como uma baleia morrendo, se despedaçando na areia”, lamenta Malaca.  

A intenção do grupo é reformar as embarcações para que sejam usadas em passeios turísticos e na educação de alunos da rede pública. Há quase 20 anos, o grupo tem tentado manter as embarcações, mas Malaca reconhece que é um cuidado “paliativo”: “O saveiro precisa de autossustentabilidade, como antigamente”.  

Tudo começou quando Malaca e alguns amigos pegaram carona no saveiro Sombra da Lua. Eles compraram o barco e reconstruíram a embarcação. 

De acordo com ele, o processo é caro e trabalhoso. Para se ter ideia, desde 2018 a embarcação original do grupo está em reforma novamente, e essa manutenção já custou mais de R$ 200 mil.  

Uma dificuldade encontrada pelo Viva Saveiro é que a profissão dos carpinteiros navais está praticamente extinta na Bahia. Envolvido na reforma do Sombra da Lua, o carpinteiro naval Cosme Henrique Rocha é um dos poucos mestres restantes. “É uma profissão muito desvalorizada, bonita, mas desvalorizada”, afirma Cosme, que também trabalha como pescador. “Faço trabalhos como carpinteiro de escunas, embarcações de madeira no geral. Pouco da minha renda vem dos saveiros”.  

A história dos saveiros se entrelaça com a própria memória do profissional. O avô dele, de Cabuçu, no sul da Bahia, se mudou para Salvador com a família e passou ao filho e ao neto a profissão de carpinteiro naval.  

“As memórias que eu tenho de criança é de a gente vivendo dentro do estaleiro. A gente brincava e trabalhava no estaleiro, tudo ao mesmo tempo”, diz Cosme.  

Apesar da memória afetiva, ele não deseja o mesmo destino aos filhos. “Eu tenho um filho de oito anos e uma filha de 30. Eu não desejo que eles sigam por essa profissão porque um pai sempre quer coisas melhores para seus filhos”, diz o pescador, que complementa a renda com o aluguel de uma escuna para turistas. 

Patrimonialização 

Diretor de patrimônio e espaços públicos da Fundação Gregório de Matos (FGM), Chicco Assis afirma que a instituição quer tornar o ofício dos carpinteiros navais patrimônio imaterial de Salvador, o que pode estimular políticas de valorização da atividade. O objetivo faz parte do reconhecimento de bens patrimoniais da cidade que a FGM mantém desde 2014.  

“Reconhecemos a importância desses mestres em vários aspectos para o campo náutico da cidade e a relevância cultural desse modo de fazer embarcações”, afirma Chicco, destacando também a importância dos saveiros para a paisagem náutica da Baía de Todos-os-Santos. A patrimonialização do ofício dos carpinteiros navais já passou por análise de um conselho da FGM.  

A previsão é que a prefeitura assine o decreto para reconhecer o ofício dos mestres carpinteiros no dia 1º de fevereiro. A data marca o início das homenagens a Yemanjá, muitas delas feitas com barcos mantidos por esses profissionais. A orixá é celebrada no dia seguinte, 2 de fevereiro, na festa que é considerada patrimônio imaterial de Salvador há quatro anos.   

Caso o mesmo ocorra com os carpinteiros navais, a expectativa de Chicco é que seja elaborado um plano com os mestres. “Para que se possa implementar ações efetivas que contribuam para a salvaguarda desse ofício, desse saber”, explica o diretor. A expectativa do Viva Saveiro é que os saveiristas também tenham esse reconhecimento.  

Assim como os carpinteiros, esses mestres do mar estão diminuindo em número. Ainda assim, o amor por esse estilo de vida permanece forte em admiradores dos saveiros, como Malaca, Bel Borba e Cosme, e eternizado nas palavras de Jorge Amado: “Bem que um homem pode ser tentado a ir pelo mar para outras terras, isso sim. Mas a deixar seu saveiro pela vida de terra, isso, só com uma gargalhada e um trago de cachaça se pode ouvir”.  

Dia do Saveiro: 

Um pequeno pedaço de madeira onde constam as medidas exatas para a construção de um saveiro, o chamado “graminho”, deu nome ao livro do arquiteto ucraniano Lev Smarcevski, Graminho, a Alma do Saveiro, lançado em 2001. Era a partir desta ferramenta que carpinteiros navais produziam as embarcações que denominaram as rotas entre o Recôncavo Baiano e Salvador há mais de 100 anos. O Dia do Saveiro é celebrado no dia 19 de janeiro em homenagem a Smarcevski, que passou boa parte da vida no Brasil se dedicando a projetos de arquitetura e aos saveiros. 

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