MUITO
Sobre o silêncio
Olhando de longe, já dá para ver que a morte está viva e se mexe, podendo nos devorar a qualquer tempo...
Por Franklin Carvalho*

Olhando de longe, já dá para ver que a morte está viva e se mexe, podendo nos devorar a qualquer tempo. É preciso se aproximar com cautela, ou mesmo fugir deliberadamente, continuamente, aos tropeços, toda a gente, mesmo com o risco de ser pisoteado por outros medrosos na debandada.
Afinal, ter contato com a morte de alguém querido é experimentar uma tremenda insegurança dos limites daquele evento. Não se sabe exatamente o quanto será perdido. É preciso deixar que a pessoa parta, e abandonar muita coisa do convívio, do costume. Mas, nessa tarefa, corre-se o risco de perder mais do que o necessário, de morrer-se também em grande parte, ou, pelo contrário, de continuar cultivando hábitos que já não fazem mais sentido.
Conviver, como o nome já diz, é compartilhar o viver, e, diante do parente ou amigo desfalecido, é inevitável se perguntar o quanto daquela experiência de silenciamento vai caber a nós também. A morte pulsa no ataúde ameaçando nos levar juntos, e é desse horror que tentamos escapar, ao mesmo tempo tocados de paixão pelo que se perde. Entre esse ir um pouco na companhia de quem deixa o mundo e ficar sem a pessoa amada, desfaz-se toda a razão.
Rápido entendemos que aquela viagem para o interior só valia enquanto aquela velha avó ainda morava lá, porque o que visitávamos era aquela senhorinha simpática e gaiata. Quando ela partiu, não só desapareceu para a cidade, como a cidade, aos poucos, desaparece para nós também, não temos mais como acessá-la, não há mais estradas para chegar ali.
Também não há muito sentido no carteado que se jogava com o avô, na turma de pedal ou da pelada no final de semana com o primo, na visita que fazíamos com a namorada à gente carente do bairro afastado, porque sempre fomos estranhos nesses cenários, e eram justamente aquelas pessoas, que partiram, que nos introduziam e nos ligavam àquelas circunstâncias.
E temos que nos lembrar que os abismos, os vazios, são sedutores na medida em que se refletem dentro de nós próprios, e lá dentro se dilatam, e nos desafiam, indagando sobre nossas escolhas. São encruzilhadas mentais onde revelamos quem somos, mais do que escolhemos caminhos.
Após confrontarmo-nos com a estupidez da morte do ser amado, em alguns momentos até esquecemos involuntariamente da cruel cena de despedida, e da imagem mais recente de quem partiu, num mecanismo de defesa do cérebro. Às vezes parece que aquele nome será mais um a integrar a galeria do passado. No entanto, logo somos traídos por uma recordação vivíssima que nos convence de que permanecemos acompanhados.
A morte é um evento tão sem sentido que ameaça o sentido de todos os outros eventos. E o que resta para quem fica são somente as coisas que os vivos inventam, os túmulos, os rituais, as crenças. Tudo o que sabemos sobre a morte é dito pela boca de quem vive, feito pelas mãos de quem anda em carne e osso. E os costumes e práticas são também divagações humanas, temporárias, sujeitas a influências culturais, econômicas, geográficas e até mesmo políticas.
Na nova rotina após um falecimento, passamos a considerar mais consistente a lacuna, a falta que ficou, e temos que refazer a nossa rota sem aquela porção de terra que o mar cobriu.
Claro, seria bom compreender logo que a morte não é uma punição, que é só a natureza fazendo o que ela faz com tudo, até com as estrelas, mas é terrível aceitar essa condição imposta também a seres que pensam e que sentem.
Por outro lado, são essas capacidades, de pensar e de sentir, que nos remetem às práticas de nossos ancestrais. Eles devotaram respeito aos seus falecidos, mas, algo estarrecidos como nós, com a perspectiva do fim, continuaram suas marchas.
Se algum dia o coração serenar, talvez cheguemos a entender que a morte é o momento em que se desatam e se atam os nós de novas histórias. E que a nossa substância também é composta de faltas: o silêncio, a solidão e a escuridão. Por isso não devemos desdenhar da lacuna, que sempre pode ser aproveitada como aprendizado inescapável.
Viemos do zero e ao zero retornaremos, e com o zero fazemos as somas mais altas.
*Franklin Carvalho é autor de Onde eu estava com a minha cabeça (Editora Patuá)
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes