LIVRO
Soleni Fressato lança Novelas, Espelho Mágico da Vida
A obra foi lançada em março deste ano, pela Editora Perspectiva
Por Gilson Jorge
Exibida entre janeiro e agosto do ano passado pela Rede Globo de Televisão, a novela Vai na Fé trouxe, sem aprofundar o assunto, uma discussão que domina o debate social e político nos dias atuais. O que fazer quando uma menina engravida depois de ter sido estuprada? A trama, uma nítida tentativa da emissora de conquistar a audiência evangélica, puniu o personagem que cometeu o crime sexual, Theo, interpretado por Emílio Dantas, mas não discutiu a possibilidade de realização de um aborto pela adolescente violentada. A personagem Sol, adulta, interpretada por Sheron Menezes, aparece com o filho que foi fruto de um estupro.
Mas por que os autores de novelas, que já abordaram temas políticos como racismo, homofobia e reforma agrária, têm dificuldade em mencionar outros assuntos, como a interrupção de uma gravidez decorrente de violência sexual?
Algumas pistas podem ser encontradas nas páginas do livro Novelas, Espelho Mágico da Vida- Quando a realidade se confunde com o espetáculo, da historiadora e socióloga Soleni Biscouto Fressato, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia.
A obra foi lançada em março deste ano, pela Editora Perspectiva, poucos meses antes que o Projeto de Lei 1904, do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é pastor evangélico, escandalizasse o país, ao propor pena de detenção maior para a vítima de estupro que aborte do que para o estuprador.
Exibida dois anos após a conclusão do livro, Vai na Fé não entrou na análise das novelas feita pela professora, mas ela opina sobre a ausência do tema na teledramaturgia. "Não acredito que a Globo ou qualquer outra emissora discuta a questão do aborto como um possível direito das mulheres, sobretudo com o avanço dos evangélicos, tanto na vida social, como no Congresso", declara Soleni.
Fã de novelas, a pesquisadora tinha receio de mencionar seu interesse pela teledramaturgia com os colegas de graduação em história, na sua cidade natal. Parecia inaceitável conjugar a vida acadêmica com a saga de personagens da tela da Rede Globo. Mas depois de apresentar sua tese de doutorado sobre o ator Mazzaropi, a pesquisadora decidiu procurar uma abordagem desse produto tão vinculado à imagem do Brasil que fosse diferente da visão alienadora predominante na academia. "Eu queria mostrar o outro lado da novela. O que eu lia sobre o assunto em sociologia, antropologia e história não me satisfazia como pesquisadora porque era noveleira", afirma.
Ancorado em pensadores como o francês Guy Debord, autor de Sociedade do espetáculo, e nos estudos da chamada Escola de Frankfurt, mas também em teóricos, como o sociólogo Sigfried Kracauer e o psicanalista, filósofo e sociólogo Erich Fromm, o livro não se limita ao discurso do quanto a indústria da cultura de massas molda o comportamento da sociedade.
A obra busca esquadrinhar também a cabeça do brasileiro, na tentativa de mostrar como a rua influencia os roteiros, define conceitos e altera o destino de personagens. "Há um conflito. Ao mesmo tempo em que as novelas dão imagens para que as pessoas copiem, com o passar do tempo, a Globo percebeu que precisava olhar um pouco para quem assiste novela e colocar um pouco dessa pessoa na tela", avalia. Ela destaca que na década de 1970 a emissora definiu como projeto colocar o povo brasileiro na TV, em substituição às primeiras novelas nacionais, que traziam o padrão narrativo da Argentina, de Cuba e do México.
Uma empreitada que ia muito além da oferta de entretenimento às famílias brasileiras. Tão logo foi criada, em 1965, um ano depois do golpe militar e com ajuda financeira do grupo de mídia americano Time-Life, a Globo traz de Cuba a autora Gloria Magadan para dirigir o departamento de novelas da emissora. O próprio site Memória Globo conta que a vinda da artista cubana fez parte de um acordo comercial com a empresa americana Colgate-Palmolive, para quem Gloria trabalhava.
Quatro anos depois, quando Janete Clair, ex-discípula de Glória, brilha como autora principal de novelas, a Globo empreende uma jornada de aperfeiçoamento técnico das novelas que tornaria esse produto um ímã poderoso. Um evento capaz de paralisar o país no dia do capítulo final para descobrir quem matou Salomão Ayala ou Odete Roitman.
Fressato avalia que essa mescla de fantasia e realidade, que chega com Janete Clair, provoca na população uma crise de subjetividade. O mal que o vilão faz à mocinha passa a ser visto como uma ofensa pessoal a milhões de brasileiros. "Aí tem uma confusão maior para as pessoas, porque elas perdem a noção do que é novela e do que é vida", assinala a pesquisadora, pontuando que décadas depois atores sofreriam ataques nas ruas em função dos personagens que representam na TV. Com as novas tecnologias, as pessoas têm páginas na internet, assim como os as artistas, e isso também traz confusão", pontua.
Ao lembrar que o principal telejornal do Brasil, o Jornal Nacional, vai ao ar entre duas novelas, a pesquisadora cita uma frase do professor Eugenio Bucci presente em seu livro: "As pessoas veem novela como verdade e o jornal como ficção".
Curiosamente, se coube a Janete Clair a tarefa de moldar o Padrão Globo de fazer novelas, com uma fórmula capaz de manter a família reunida no sofá até as 22h, foi o marido da autora, o baiano Dias Gomes, que desafiou os limites da censura imposta à Vênus Platinada durante a Ditadura Militar.
Em.1975, a emissora gravou 30 episódios da novela Roque Santeiro, escrita por Dias Gomes, mas a atração não chegou a estrear por proibição dos militares. O texto original, chamado O Berço do Herói, já havia sido censurado em 1965, como peça de teatro. A novela estreou em 1985, quando os militares finalmente deixaram o poder. "É uma novela que mostra um perfil curioso e um pouco problemático do povo brasileiro, que é a aceitação e a admiração da figura do coronel", sublinha a pesquisadora, lembrando que o Sinhozinho Malta, interpretado por Lima Duarte, era um vilão, que acabou se tornando mais popular do que o protagonista vivido por José Wilker.
Como se vê, na ficção e na política, às vezes o público aplaude os seus algozes.
O professor de história da Ufba Jorge Nóvoa, que compartilha com Fressato a edição da revista acadêmica O Olho da História, e com quem é casado, destaca um ponto do trabalho da pesquisadora. "Ela mostra que para as novelas atingirem legitimidade, ou passar uma mensagem, elas precisam em alguma medida mostrar um pouco do real", pontua Nóvoa.
Serviço:
Novelas, Espelho Mágico da Vida
Ed. Perspectiva
208 páginas
RR$59,90
À venda na Escariz, na LDM e no site editoraperspectiva.com.br
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