MUITO
Sotaque sertanejo
Por Tatiana Mendonça
Bruno Caliman, 38, gosta da madrugada, do silêncio, da combinação dos dois. Enquanto as horas passam vagarosas, ele anota frases em folhas soltas que vão aos poucos virando letra de música, com uma ajudinha do violão. Se uma dezena de fatores combinarem-se do modo que deseja, em breve algumas delas estarão sendo executadas à exaustão em rádios e programas de TV, esgoeladas em shows lotados. Há um bom tempo é assim. Em seis dos últimos sete anos, pelo menos uma de suas composições esteve na lista das mais tocadas no Brasil.
De Teixeira de Freitas, onde mora, ele movimenta anonimamente o milionário universo da música sertaneja. Este ano, atingiu o primeiro lugar do ranking com Domingo de manhã, segundo levantamento da agência de monitoramento Crowley. A música foi gravada pela dupla Marcos & Belutti, que com o hit alteraram o status de ilustres desconhecidos para promissores astros.
No início, eles demoraram um pouco a acreditar que aquele passeio por um módulo lunar, um barquinho no Caribe e um hotel mil estrelas em Dubai fosse dar em algum lugar aprazível. "Quando ela chegou pra gente, achamos muito diferente, mas depois percebemos que seria a música do DVD", conta Marcos, que na verdade se chama Leonardo Souza (mudou de nome para não ser confundido com o outro cantor famoso).
Bruno também escreveu as atuais músicas de trabalho da dupla Fernando e Sorocaba (O cara da rádio, em parceria com Sorocaba) e do cantor Lucas Lucco (o clipe de Destino já tem mais de onze milhões de visualizações no YouTube). Tudo bem, é provável que você ainda não tenha ouvido essas canções de amor - baianos não são propriamente fãs apaixonados de sertanejo - mas, certamente, não conseguiu escapar dos megassucessos Te esperando, gravado por Luan Santana no ano passado, e Camaro amarelo (feito em parceria com Márcia, Marco Aurélio e Thiago Machado), com o qual Munhoz & Mariano tiraram onda em 2012.
O jeito tímido e reservado de Bruno parece combinar com aquela sina de compositor, de rondar a fama sem aparecer. Nas redes sociais, que atualiza sem ânsia, define-se como "pai de família que escreve algumas coisas", "filósofo de ponto de ônibus", "fazedor de música". Luan Santana, que o conheceu nos bastidores de um show, por intermédio de uma amiga em comum, diz que Bruno é um cara tranquilo e sereno. "Essa sensibilidade talvez seja o grande diferencial. As letras dele chegam ao coração das pessoas".
Fernando Bonifácio, da dupla Fernando & Sorocaba, tem uma opinião parecida. "Ele é um poeta, e isso reflete nas suas composições, que têm um papo diferente. A gente se identifica muito". A relação de Bruno com a dupla, que comanda a FS Produções Artísticas, é sólida. Ele assina nove das doze músicas do CD de estreia da nova aposta do grupo, o cantor goiano Felipe Duran, que enaltece o "dom incrível" do parceiro.
De jingle em jingle
Nascido em Itamaraju, extremo sul do estado, Bruno começou a compor aos 16 anos, depois de voltar de uma viagem de férias e descobrir que os amigos tinham formado uma banda. Excluído dos instrumentos, o jeito foi "tocar papel e caneta". Tomou gosto, mas a banda acabou junto com a adolescência. Quando saiu da escola, arrumou um emprego num estúdio que fazia jingles para campanhas políticas e estabelecimentos comerciais. "Enquanto os outros faziam um jingle, ele criava dez. Era muito rápido", conta Adelmo Caliman, 62, na versão pai orgulhoso.
Podemos então botar na conta da crise financeira o fato de o estúdio ter fechado, depois de cinco anos de atividades. Sem trabalho, Bruno pensou que o melhor era continuar com o que já sabia fazer. Passou a viajar de ônibus para cidadezinhas próximas, na Bahia, em Minas Gerais e no Espírito Santo. Quando chegava, sentava num banco de praça e começava a observar a fachada dos comércios, a apreciar o movimento. Em pouco tempo, fazia uma musiquinha elogiosa para uma farmácia, um supermercado, uma padaria, e ia lá conversar com o gerente.
Por cada jingle gravado, ganhava R$ 60, R$ 80, R$ 100. Depois de quinze dias, voltava para casa, com um bolinho de cheques no bolso. Claro que ele repetia uns jingles de um lugar para outro, mudando só o nome do empreendimento. "Uma vez o cara de uma loja agropecuária queria que eu falasse dos produtos. Imagine rimar sistema de irrigação, microaspersão, gotejamento... Tinha esses absurdos". O que viesse era lucro.
Geração espontânea
Hoje o bolinho de dinheiro cresce sem que Bruno precise sair tanto de casa - a distância causada pelas viagens constantes era a maior reclamação de Rose, com quem é casado há 16 anos. Enquanto assistiam preguiçosamente à TV, Bruno teve um daqueles estalos milagrosos. Fernando & Sorocaba cantavam: "Você finge que me odeia, mas no fundo paga pau", e ele na mesma hora pensou: "Isso daí eu sei fazer".
Voltou a compor e lançou mão de uma estratégia de guerrilha. Perdeu as contas de quantas vezes pulou camarotes, arremessou músicas em palcos de shows e implorou a recepcionistas de hotéis para que o deixassem colocar aquele papelzinho embaixo das portas dos quartos dos artistas famosos. Não deu nada certo. Estreiteza de visão. Só demoraria um pouco a dar.
Um amigo seu, o cantor Marcelo Marrone, pediu músicas para um CD que iria lançar. Bruno aceitou despretensiosamente. Meses depois, ouviu incrédulo como tocavam sem parar no rádio, nos bares, no porta-malas dos carros. Das 12 faixas do disquinho, quatro estouraram, dentre as quais Locutor e Beber, cair e levantar (essa em parceria com Marcelo e Thiago Basso). A partir daí, pareceu coisa de geração espontânea. Os convites começaram a chegar e não pararam mais. Hoje são tantos que ele não consegue dar conta. "Às vezes o cara mira um Roberto Carlos e fica insistindo naquilo. Esquece de quem está começando. Tem que confiar na música".
É o produto que Bruno vende hoje. Muitos lhe pedem a receita, a fórmula, mas ele diz que isso não existe. Se insistem, apela para clichês. "Você tem que ser sincero, tanto para a música de farra quanto para aquela que te leva a uma viagem interior. Quando uma canção me toca muito, sei que vai emocionar outras pessoas".
Filme, livro e disco
E aí dá para fazer música comercial só com duas notas e sem refrão pegajoso, como é o caso de Te esperando. Fez a canção inspirado em Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos - diga a verdade, por essa você não esperava. "As primeiras páginas são tediosas. Ele te leva para o universo da prisão mesmo. Como essa música fala de rotina, de uma menina que vai ter uma vida chatinha, quis fazer assim. E deu certo. É a primeira música que o Luan [Santana] gravou só com voz e violão".
Inicialmente, Bruno criou a história para virar filme, e não música. Pensa, cada vez mais, em investir em cinema. Já tem o roteiro de dois longas, cujos projetos aguardam autorização para captar recursos via Lei Rouanet. Ele também pretende lançar, no começo do ano que vem, um livro com um amontoado de pequenos pensamentos, como os que publica no Instagram (@calimanbruno).
Se algum dos seus três filhos - de 5, 10 e 16 anos - encontra um deles perdido pela casa, já sabem em qual caixa colocar. "Passo o dia inteiro escrevendo. Não sei fazer mais nada, nem churrasco... Nunca se case com um compositor. É a coisa mais chata do mundo".
Quando conversou com a Muito, Bruno visitava Salvador para compor músicas para um projeto acústico da banda Babado Novo. Depois de conquistar o sertanejo, quer fincar bandeira na axé music. Sonha com o dia em que Ivete Sangalo e Claudia Leitte gravem canções suas. Talvez o que queira é ser reconhecido na terra onde nasceu. Porque quando seu Adelmo diz "olhe, essa música que está passando aí na televisão é do meu filho", ninguém acredita. Respondem logo assim: "Então por que ele não canta?".
Bruno, que tem uma voz bonita e um tantinho desafinada - nada que umas aulinhas ou efeitos de estúdio não resolvam -, desconversa dizendo que talvez faça como Cartola, que gravou o primeiro disco quando já tinha mais de 60 anos. Guarda algumas músicas para quando esse dia chegar. Tem mais sossego que pressa. "Vejo meus filhos dormindo em segurança, volto para a cama, escrevo. É a mesma inspiração de um mecânico, de um médico. Fazer as coisas para viver feliz, deixar a família feliz. Não tem muito segredo".
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