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Tânia Scofield: "Salvador precisa passar por uma mudança muito grande"

Por Bruna Castelo Branco

16/04/2019 - 9:00 h | Atualizada em 16/04/2019 , 16:41
A arquiteta preside a Fundação Mario Leal Ferreira, responsável pelas obras nos espaços públicos de Salvador
A arquiteta preside a Fundação Mario Leal Ferreira, responsável pelas obras nos espaços públicos de Salvador -

Toda cidade é viva. E, como a vida, tem seus altos e baixos: dias de festa, dias de luto, dias de sol, dias de chuva. E obras que não acabam mais – o que pode ser alto ou baixo, depende de quem vê. Quem saiu de Salvador entre 2013 e 2014 e voltou por agora pode ter se espantado com as mudanças que aconteceram por aqui. E falamos mais das mudanças físicas, sem tocar muito nas sociais: na segurança, na educação, na saúde. A atual gestão da cidade está sendo conhecida por dar uma nova cara a Salvador, esta velhinha de 470 anos. A responsável pelos projetos e obras nos espaços públicos, como orlas e praças, é a Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), uma autarquia ligada à Secretaria Municipal de Urbanismo. Aquelas obras mais conhecidas, que renderam muita discussão, vieram da fundação: a requalificação das orlas da Barra, de Piatã, Itapuã, Rio Vermelho, Ribeira, entre tantas outras. A cada novo projeto apresentado, surge o debate: há como modernizar sem violar a memória dos bairros, da cidade? A presidente da FMLF, a arquiteta e urbanista Tânia Scofield, responde: “Algumas mudanças, elas acontecem. A gente vai trabalhando com novos materiais, com propostas diferentes. Mas acho que aquilo que tem de identidade em cada área não se perde”. À Muito, Tânia fala sobre novos projetos, agora mais concentrados no Centro Histórico e no subúrbio ferroviário, da arquitetura da cidade, dos impactos das últimas reformas e da importância da cultura de andar a pé. “Para a cidade ter vida, ela precisa de pessoas andando na rua”.

Como requalificar ou modernizar uma cidade de 470 anos? Que tipo de preocupação a fundação tem para manter a memória dos lugares?

Primeiro, a gente tem uma cidade que tem um patrimônio da arquitetura e do urbanismo colonial português extremamente rico e que está concentrado no Centro Histórico. Mas, fora isso, a ponta de Salvador é bem antiga, ainda com ruas estreitas, passeios também estreitos. Então, a questão é como trazer esta cidade para as demandas contemporâneas. Algumas situações a gente não tem como modificar, porque a gente não pode perder essa identidade, não pode perder essa memória. A gente vai requalificando e melhorando as condições da cidade, mas sem perder essas características únicas. Hoje, a gente tem demandas que são superimportantes, como a questão da acessibilidade. Alguns anos atrás, ninguém pensava no cadeirante, nas pessoas com mobilidade reduzida, no deficiente visual… E agora isso é prioritário. No passado, a prioridade era o carro particular. Agora, a prioridade é o pedestre, o ciclista, o transporte público e, em último lugar, o transporte particular. A gente tem que adaptar esta cidade para atender a essas novas demandas da cidade contemporânea.

A prefeitura atual tem sido marcada pelas obras de requalificação de vários pontos de Salvador, como a orla da Barra e o Centro Histórico, por exemplo. Como os locais são escolhidos, qual é a prioridade?

Uma das grandes dificuldades que nós tivemos quando chegamos a essa gestão com o prefeito ACM Neto, em 2013, é que nós não tínhamos um planejamento de longo prazo, que é o que estamos fazendo agora com o Plano Salvador 500. Então, se nós tivéssemos um planejamento, estaríamos trabalhando e fazendo todas as intervenções na cidade em cima desse planejamento. Só que nós não tínhamos. Então, a gente trabalhou primeiro com um planejamento de gestão. Depois, em 2016, com o PDDU [Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador]. Nós elegemos algumas áreas como prioritárias, mas a gente não está só na orla. Sobre a orla, eu diria que é o que tem maior visibilidade. A orla foi importante porque é uma área pública, a maior área de lazer, e é um lazer livre. E a orla estava totalmente degradada, a gente precisava recuperá-la. Daí a prioridade. A outra prioridade é o Centro Histórico, porque a gente não pode perder esse patrimônio da arquitetura e do urbanismo colonial português. Ao longo dos anos, a gente viu um esvaziamento dessa área central da cidade, uma perda da economia local... Mas tem mais. A gente está com projetos nas áreas do subúrbio ferroviário e Cajazeiras.

No passado, a prioridade era o carro particular. Agora, a prioridade é o pedestre, o ciclista, o transporte público e, em último lugar, o transporte particular

A parte da população que é contrária às mudanças defende que a requalificação muda muito a cultura e a cara do bairro. No caso do Rio Vermelho, por exemplo, uma das principais críticas foi para a transformação do antigo Mercado do Peixe, que hoje se chama Praça Caramuru. O que dizem é que a requalificação mudou o perfil de consumo da região, já que os ‘boxes’ foram substituídos por restaurantes. Esses impactos já estavam previstos, vocês imaginavam que isso poderia acontecer?

Eu acho que quem faz essa avaliação sobre o Rio Vermelho está enganado. Quando a gente faz um projeto, a gente faz uma avaliação posterior. Não mudou o perfil nem dos moradores nem daqueles que frequentam o bairro. O que aconteceu foi que ampliou, ou seja, a gente levou vários outros grupos para lá, diversificou esse grupo de frequentadores. Foi um projeto bem discutido. Em alguns momentos, teve um grupo que foi muito agressivo na discussão. Mas acho que o resultado foi muito bom, não vejo nenhuma crítica hoje em relação ao Rio Vermelho. E não acho que o bairro perdeu aquelas pessoas que já frequentavam; acho que essas continuam frequentando o Rio Vermelho, acho que está superdiversificado, tem bares, restaurantes, áreas públicas. A cidade não pode viver de grupos, de guetos, tem que ser aberta para todos.

Foi dito também que, com as requalificações, as características dos bairros estão sumindo. Em Itapuã, as novas barracas são bem diferentes das antigas. Também acontece isso no projeto do Terminal da Barroquinha. Como vocês recebem essas críticas?

Normalmente, os nossos projetos são muito discutidos, inclusive validados. A gente faz em média quatro reuniões com a comunidade, com os comerciantes, com quem vive o bairro, moradores ou não. O que ocorre: algumas mudanças, elas acontecem. A gente vai trabalhando com novos materiais, com propostas diferentes, e as mudanças ocorrem. Mas acho que aquilo que tem de identidade em cada área não se perde. E tem o uso também. Você vê Itapuã hoje. Embora aquelas barracas tenham sido modificadas, você vai a Itapuã à noite e tem aquele mesmo fluxo de pessoas, aquela quantidade de pessoas ali, naquelas barracas. A mesma coisa que acontecia lá no passado acontece hoje. A gente constrói coisas diferentes, até porque vem com alguns projetos que têm uma proposta mais contemporânea. Mas o que tem de raiz, de próprio de cada lugar, isso a gente garantiu que continuasse tendo. No caso do terminal, é o seguinte: ele já foi terminal um dia, mas não é mais, é apenas um retorno dos ônibus com uma parada de ônibus. Isso foi discutido com a Semob [Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana] e com os comerciantes da Baixa dos Sapateiros. Os comerciantes reclamam muito da perda da economia local em função dos desvios dos ônibus que saíram da Baixa dos Sapateiros para a Lapa. E aí vem a questão do metrô, algumas linhas foram desviadas para atender às estações. O projeto ali é bem interessante. Porque a gente tinha que atender três questões que eram fundamentais. Uma, o próprio terminal, que tem um fluxo de ônibus muito grande. Outro ponto é a criação de uma quadra esportiva, uma área para crianças, que é um pedido dos moradores do bairro da Saúde. Vai ter também um estacionamento, que vai atender ao comércio local, e uma unidade de saúde para marcação de consulta que, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde, pode atender cerca de três mil pessoas ao dia. Acho que é bem bacana a gente ter um equipamento que vai criar um fluxo grande de pessoas. A cidade só existe se tiver gente.

Tem granito na Barra, na Ribeira e em Itapuã. Mas, se você olhar os projetos, eles são todos diferentes, guardam a identidade do local.

Há também uma sensação de que os projetos são todos muito parecidos, que a cidade está ficando um pouco homogênea. Como a senhora vê isso?

É meio complicado atender a todas as opiniões, que são muito diversas. Qual era a nossa preocupação? Não vamos trabalhar com materiais diferentes nas diversas orlas, inclusive as orlas do outro lado da cidade, como a de Plataforma, da Ribeira, etc., para que não venha a reclamação de que a gente está usando um material aqui, mas não está usando em outra área. Por isso, a gente resolveu usar o mesmo material em todas as orlas. Tem granito na Barra, na Ribeira e em Itapuã. Mas, se você olhar os projetos, eles são todos diferentes, guardam a identidade do local.

Também há uma crítica sobre as áreas verdes. Há a sensação de que a cidade está cheia de concreto. Foi o que aconteceu num trecho da Orla da Barra, por exemplo. A prefeitura argumenta que as árvores são plantadas em outros locais, mas há especialistas que discordam e dizem que as mudas de paisagismo não pegam. A Fundação planeja investir mais em áreas verdes nos locais da requalificação?

É o seguinte, nos projetos da Fundação Mário Leal Ferreira, eu diria que se tirou uma, duas ou três árvores foi muito, a gente não tira árvore. A gente desvia, a gente faz curvas mas a gente não tira árvore. No Rio Vermelho, a gente tirou só uma, nas áreas de orla a gente não tirou uma sequer. Na orla da Baía de Todos os Santos também não tiramos nenhuma árvore. É muito raro. Agora mesmo, a gente está fazendo um projeto na Sabino Silva e está criando formas de ter uma ciclovia entre as árvores, mas a gente não derruba. A gente, na verdade, está plantando muita árvore, 87 serão plantadas na rua Manoel Calmon. Na Barra, tem um problema grave que é o vento ali, o que a gente planta, o vento derruba. Mas, mesmo assim, várias pegaram. Uma das alternativas é já plantar plantas mais velhas, mais resistentes. Eu diria que tem muita conversa de pessoas que às vezes não têm os dados para comprovar aquilo o que está se falando.

O projeto do Rio Vermelho foi de Sidney Quintela. Na época, quando as pessoas começaram a questionar, ele disse que só arquitetos poderiam criticar. O que a senhora acha dessa visão?

Essa não é a minha visão como arquiteta e urbanista. Eu sempre considero que sou forasteira no bairro em que não vivo o dia a dia. É por isso que a gente faz tantas reuniões, a gente precisa ouvir quem mora no local, que sabe dos problemas. Quando a gente tem o diagnóstico daquela área, os moradores já têm uma proposta. A gente faz uma combinação desse olhar do morador com o nosso olhar técnico. Eu tenho, como princípio, que todo projeto tem que ser obrigatoriamente participativo. Não existe essa coisa de o saber técnico ser mais importante do que o saber popular.

Em fevereiro, a prefeitura assumiu algumas obras que eram de responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como a reforma e a revitalização dos Arcos da Montanha, do Frontispício da cidade e do Elevador do Taboão. Foram obras que demoraram a sair do papel. Elas irão sair agora?

Vão, vão sair, sim. O Iphan estava com projetos em nível executivo já prontos. No caso dos Arcos da Conceição, é um projeto que foi discutido, as etapas de construção foram decididas com os trabalhadores dos arcos para que não tivesse qualquer prejuízo para eles, que são marmoristas e ferreiros. Eu já tive uma reunião com eles na Defensoria Pública e vamos ter outra, quando a gente vai discutir todo esse processo da implantação da obra para que tudo fique muito ajustado com eles. O Iphan elaborou o projeto executivo, mas não teve recurso para fazer, e são três projetos muito importantes. Os Arcos da Conceição são a cara de Salvador, são lindos. Têm essa particularidade de ser ocupados por artesãos, que vão continuar lá, isso é a cultura da cidade que a gente não pode perder. Tem as muralhas de Salvador, no frontispício, que vão desde a Misericórdia até a Praça Castro Alves, que nunca foram recuperadas. A gente vai recuperar a muralha, a estrutura física, o paisagismo e a iluminação. Os orçamentos dos projetos já foram revisados, já passamos para a Sucop [Superintendência de Obras Públicas do Salvador] para licitar a obra, que deve começar em três meses. O recurso está garantido.

Todo projeto tem que ser obrigatoriamente participativo. Não existe essa coisa de o saber técnico ser mais importante do que o saber popular.

Você comentou das obras na região do subúrbio ferroviário. A fundação ficou responsável pela construção da comunidade Guerreira Zeferina, que fica numa área em que tinham muitas moradias irregulares. Foram implantados painéis de energia solar. A fundação vai seguir essa linha?

Eu diria que a Guerreira Zeferina foi um projeto único dentro da prefeitura. Aliás, um projeto único dentro de Salvador. Eram quase 300 famílias que viviam desde 2008 em situação extremamente precária. Dessas 300 famílias, só 35 conseguiram, em 2014, ter suas casas em bloco, a maioria vivia em casas forradas de lona ou feitas com restos de material. Não tinha energia elétrica, água, o esgoto corria ali a céu aberto, em condições muito precárias. A gente entrou lá em 2014, fez o primeiro cadastro e começou a discussão do projeto. Foi um projeto fantástico porque a gente construiu com eles. Foram várias reuniões, a gente passou mais de um ano na área discutindo com eles todas as demandas. Alguns resolveram não ficar na comunidade, as pessoas que optaram por sair foram indenizadas, e as famílias que optaram por ficar receberam a nova habitação. Como eram famílias que não tinham obrigações formais, como pagamento de água, pagamento de energia, de gás, nós fizemos uma parceria com a Coelba, que já tinha um projeto de implantar um programa de energia solar. Foi uma primeira experiência na Guerreira Zeferina, essa energia solar cobre o centro comunitário que nós vamos entregar à comunidade, a creche e as áreas comuns dos prédios.

A prefeitura tem projetos como o de Guerreira Zeferina em outros bairros?

A gente está fazendo um projeto grande no subúrbio ferroviário de requalificação ambiental do rio Mané Dendê, que é o rio que contribui para as duas mais importantes cachoeiras da cidade, que ficam no Parque São Bartolomeu. E o rio hoje é um rio de esgoto. A gente vai sanear toda aquela área para recuperar o rio. Nesse projeto, a gente está trabalhando diretamente com cerca de sete mil famílias e vai construir algumas unidades habitacionais. Eu já venho desde 2017 fazendo reuniões com a comunidade, são grandes reuniões porque são cinco bairros: Alto da Terezinha, Itacaranha, Plataforma, Ilha Amarela e Rio Sena. Algumas unidades que vamos construir já têm essa perspectiva de também buscar a energia solar. É um projeto de um investimento de US$ 135 milhões, ou seja, R$ 500 milhões.

A captação de recursos para a requalificação da Avenida Miguel Calmon e da Praça Riachuelo começou no início do ano passado. As obras fazem parte do projeto Ruas Completas. Na apresentação do projeto da Miguel Calmon, a senhora falou em requalificar a rua de modo que priorize os pedestres e os ciclistas, como aconteceu na Barra. Mas, na Barra, essa mudança enfrentou resistência, principalmente por parte dos empresários, que reclamam da falta de estacionamento. A prefeitura já conseguiu equacionar essa questão?

Primeiro, eu acho que a gente vai ter que mudar os nossos valores. É uma questão cultural, uma questão de valores, de achar que o carro é a coisa mais importante e que a gente tem que priorizar o carro. Só que a gente está com uma priorização um pouco diferente, tem que priorizar o pedestre, depois o ciclista, o transporte público... O carro é o último, como eu já disse. É claro que, com isso, quando a gente tem que implantar uma ciclovia, se isso vai ter como consequência a perda de algumas vagas, a prioridade é a ciclovia. Em Ondina, por exemplo, os passeios são estreitos, a gente tem que alargar para dar qualidade a quem anda a pé. Lá, a gente perdeu uma faixa de veículo, porque o passeio era de um metro e tinha que ser de, no mínimo, 2,5 metros, e colocou uma ciclovia com 2,4 metros. Eu acho que a gente está transformando comportamentos com essas mudanças na cidade. A gente vê um aumento muito grande no número de bicicletas. O trabalhador está usando muito mais a bicicleta e a gente está garantindo a segurança dele com a ciclovia. E o que está sendo feito na Miguel Calmon é a melhoria da qualidade ambiental da via, não só para quem passa por lá a caminho de outros lugares, mas para quem fica. Se a gente torna as ruas mais agradáveis, a gente torna a cidade mais agradável.

Um dos objetivos da fundação é, com as requalificações, incentivar as pessoas a ocuparem espaços públicos. E a gente sabe que uma das principais razões para a população não frequentar esses espaços é a insegurança. Dá para requalificar sem a garantia de que o local será seguro?

Um dos maiores problemas da cidade é, exatamente, a insegurança. Se a gente não anda mais a pé, se a gente não sai à noite com mais tranquilidade, é porque a gente não vive em uma cidade segura. Em termos urbanísticos, como é que melhora essa segurança: quando a gente requalifica uma área, cria um maior fluxo de pessoas naquele espaço. Os espaços mais vazios, onde só passam carros, são os mais vulneráveis. Então, essa é uma forma de reduzir a insegurança nas áreas públicas. Outra coisa que ajuda é uma boa iluminação. Mas isso não é suficiente, a gente precisa ter ações da polícia para que as pessoas possam ter mais segurança nos parques e em todos os lugares públicos. Esta cidade precisa passar por uma mudança muito grande, a questão da polícia é importante, mas há outras questões a serem resolvidas, como políticas públicas: ter uma qualidade maior no ensino, dar aos jovens perspectivas de futuro. É um conjunto de ações que não só a requalificação física consegue resolver. Precisamos de políticas que transformem essa realidade em que a gente vive hoje.

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