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MUITO

Tempo de fantasia

Eron Rezende

Por Eron Rezende

20/02/2017 - 11:07 h
Mascarados na Praça Castro Alves, no Carnaval de 1992
Mascarados na Praça Castro Alves, no Carnaval de 1992 -

Num pequeno ponto comercial no Beco do Adão, no bairro do Comércio, Afonso Albergaria, 75, maneja pregos, porcas e serrotes. Os tons são metálicos e ocres. “Mas venha cá, ao fundo”, ele convida, como quem quer partilhar um segredo. Num minúsculo banheiro desativado, no fim da loja, um armário é aberto. Ali estão as vestes de pierrôs, apaches e caretas (o pierrô mascarado, feito para assustar criancinhas na esquina). As fantasias, malhadas pelo uso e pelo tempo, já serviram a Afonso em carnavais de outrora. “São como um parque de diversão da memória”. O último uso das vestes, no entanto, não faz assim tanto tempo. Em 2015, Afonso rompeu um hiato de quase 30 anos longe da avenida e as roupas puderam se alforriar da poeira. Ele foi de apache e o filho, de pierrô. “As roupas continuam ótimas; o velho aqui, nem tanto”.

A ligação de Afonso e de seu ponto comercial com o Carnaval é, também, a relação de Salvador com a sua festa. Originalmente uma loja de roupas e calçados, o empreendimento, no verão, transformava-se numa confecção de fantasias por encomenda. Foi assim dos anos 1950 a 1980. A loja mudou de ramo, como o Carnaval de Salvador mudou de forma: da fantasia à mortalha, da mortalha ao abadá, do abadá à camisa do camarote, às cordas e à cervejaria. O retorno de Afonso à avenida não deixa de ser um símbolo. No vácuo gerado pela bancarrota do modelo de negócio em que o Carnaval de Salvador se sustentou nas últimas décadas (bloco + estrelas do axé), abriram-se alas para os fantasiados.

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Neste ano, o Carnaval terá 120 blocos independentes e não comerciais, de acordo com dados divulgados pela prefeitura. O número é o maior dos últimos 22 anos. Muitos desfilarão nas festas pré-carnavalescas Furdunço (que ocorre desde 2014) e Fuzuê (desde 2016). Outros, em festas de bairro. E pipocam as iniciativas que os dados oficiais não medem: aquelas de última hora, blocos que de tão independentes são rodas de amigos e que de tão desconhecidos desfilam onde der.

“A fantasia carnavalesca revela muito mais do que oculta”, diz Adriano Sampaio, 39, filósofo e folião do microbloco A Bagaceira, que desfila há três anos nas ruas de Itapuã. “Pode-se ser quem se quer ser”. Em casa, Adriano guarda registros em vídeos de carnavais de Salvador dos anos 1940 e 1950, quando sair fantasiado era um princípio. O material, que servirá para um artigo acadêmico, é um passeio por um mundo de monstros, colombinas, cowboys, piratas e mercenários orientais. Uma Disney dos desajustados.

Nos vídeos, podem-se ver referências aos filmes de inspiração oriental nos desfiles de blocos, como Mercadores de Bagdá, Cavaleiros de Bagdá, Filhos de Gandhy e Império de África. Alguns integrantes recriam cenas, como a corte aos imperadores, com serviçais e odaliscas e, às vezes, figurações de animais – fantasias de cisnes, elefantes, serpentes e camelos. Os blocos de índio vão para os westerns e chegam com as franjas das calças, os cocares, os esparadrapos fazendo as vezes de pinturas tribais. O Ilê Aiyê, o bloco afro que primeiro se celebrizou, invoca uma África antepassada, representada por escudos, objetos de cerâmica e palha.

“Um dos usos mais comuns da fantasia é a inversão de papéis”, diz Adriano. “No Brasil colônia, por exemplo, eram comuns festas onde escravizados se vestiam de senhores, quando lhes era permitido participar, e ricos se vestiam de pobres. As fantasias eram como uma ferramenta que proporcionava mudança na vida de um indivíduo. Durante o Carnaval, o homem reescrevia a própria história”.

Mortalha

Na história do Carnaval de Salvador, a fantasia nunca deixou a avenida, mas deixou o protagonismo. A mortalha, peça fundamental na mudança, surgiu nos anos 1960. Era uma fantasia prática e barata, contrapartida aos pierrôs e caretas que ainda povoavam uma festa rococó. “O careta é o pierrô mascarado; a mortalha é a liberdade descarada”, cantava-se. A mortalha surgiu com um capuz, mas logo o governo militar proibiu as máscaras. E as mortalhas trocaram suas cruzes e cores fechadas pelo colorido psicodélico. Isso até início dos anos 1990, quando o abadá desfilou no bloco Eva e, no ano seguinte, todos os blocos desfilaram o mesmo.

“A mortalha foi a fantasia prática e livre. Podia-se tudo”, diz Walter Queiroz, 72, que, em 1964, com um grupo de jovens, pôs nas ruas um bloco com a seguinte provocação na faixa que ia à frente dos integrantes: “Há Jacu no pau”. As famílias tradicionais ficaram indignadas com a estreia do Bloco do Jacu. A polícia prendeu boa parte dos que participavam do evento. Um evento que durou 22 anos e retornou há três, na festa Furdunço. “Com a introdução do trio elétrico nos blocos, o som frenético das guitarras já não combinava com uma enorme túnica hippie. Foi o fim da mortalha, mas não o fim de toda a fantasia”.

Máscaras

Num sobrado no bairro de Santo Antônio, a fotógrafa Tereza Lara, 55, é uma guardiã de registros que mostram como a fantasia atravessou o mercado dos abadás. Numa caixa de madeira, guarda fotos da passagem d’Os Mascarados. Criado em 1999, o bloco nasceu para comemorar os 450 anos de Salvador. Mas a festa nunca mais saiu da avenida. “No primeiro ano, foram convidadas 500 pessoas, e os organizadores fizeram as fantasias. Mas as pessoas customizaram tudo. Aí resolveram liberar. Hoje, cada um vai fantasiado como quer e a fantasia é o único ingresso exigido”, diz Tereza, que frequenta o bloco desde a fundação.

Nas fotos dos desfiles d’Os Mascarados, há presidiários, policiais, anjos, diabos, reis, rainhas, princesas, bobos da corte, super-homens e supermulheres, além de adaptações de personagens – os marinheiros são gays ou mesmo marinheiras. Numa faixa carregada por um integrante, num desfile de 2002, recorre-se a uma marchinha para se dizer a que veio. “Quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só”.

“A fantasia não é um adereço, mas a própria festa em si. Ela nos lembra que o Carnaval é produzido pelos indivíduos, não pelo governo nem por uma empresa”, diz Luciano Paganelli, 47, sócio do bloco As Muquiranas, que, com seus travestidos, desfila desde 1965. Um empreendimento que cresceu com a indústria do axé (no esquema bloco e corda), mas que não dá nenhum sinal de sucumbir. “As Muquiranas equilibra-se entre o mercado e a irreverência. Talvez seja o que tenha faltado a Salvador nas últimas décadas e que, agora, seja necessário buscar. A percepção de que o Carnaval é um outdoor ambulante joga contra a cidade”.

Este ano a prefeitura destinou R$ 10 milhões para as festas de bairro, a organização do Furdunço e do Fuzuê (incluindo os editais de convocação dos blocos) e para a contratação de trios independentes que desfilarão ao longo da festa. A quantia se insere nos R$ 50 milhões em que o orçamento está estimado – o valor exato, bem como a parcela arrecadada com a iniciativa privada, será divulgado num balanço pós-festa.

Com o crescimento do Carnaval de rua no Rio de Janeiro – só este ano, 462 blocos se cadastraram na prefeitura para ir às ruas – e em outras capitais (como Belo Horizonte e São Paulo), o movimento da prefeitura de Salvador em espraiar os investimentos, olhando para fora dos circuitos tradicionais, pode ser visto como a busca por fazer a festa sobreviver.

“O Carnaval de Salvador se tornou tão grande que cada pessoa tem uma percepção de uma parte deste elefante”, diz Isaac Edington, da Saltur, responsável pela organização do Carnaval. “Nenhuma cidade oferece uma gama de opções tão ampla. Nesse sentido, o poder público precisa agir para garantir a pluralidade. Ninguém está contra o bloco ou o camarote. Mas só com eles a festa não fica em pé”.

As ações para reavivar a plasticidade da festa em Salvador coincidem com a própria mudança no modelo de negócio do Carnaval, que tem migrado dos blocos para os camarotes. Uma alteração nos ventos que, na visão do professor Paulo Miguez, que pesquisa o Carnaval há quase 30 anos, pode resultar, ironicamente, em mais democracia.

“Se os grandes blocos deixam as ruas, isso aumenta o espaço para o folião-pipoca. Mas a dimensão plástica do Carnaval, como a fantasia, não se reanimará apenas por geração espontânea. Ela precisa ser estimulada pelo poder público, seja via editais ou por meio das organizações carnavalescas. E é a partir desse estímulo que a cidade poderá vivenciar uma contaminação positiva”.

Banho de mar

Foi o estalo para os rumos do Carnaval de Salvador que fez com os organizadores do Banho de Mar a Fantasia recuperassem a festa histórica. Evento que nasceu e cresceu na Ladeira da Preguiça e pontuou o calendário da cidade por quase 90 anos, o Banho de Mar a Fantasia deixou de acontecer em meados dos anos 1980. Em 2012, o bloquinho foi ressuscitado por Marcelo Teles, idealizador do centro cultural Que ladeira é essa?, e pelo morador da região Gabriel Silva.

O nome evoca a proposta: a caminhada, que na edição deste ano acontece exatamente neste domingo, 19, começa na Ladeira da Preguiça e termina na praia que leva o mesmo nome, na Avenida Contorno, próximo à Bahia Marina e ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Dos 300 participantes há quatro anos, o Banho de Mar passou a quase mil. A manutenção da festa, que inclui uma banda de sopros, não conta com recursos públicos. Entram no orçamento as doações (como a feita pelo bloco As Muquiranas, que também nasceu na Ladeira da Preguiça), assim como a contribuição de moradores.

“Há alguns anos, no Carnaval do Rio de Janeiro, houve um intenso debate sobre ter ou não fardas nos blocos de rua. Um movimento chamado ‘O Rio não é Salvador’ fez a defesa de que o ideal seria uma festa sem cordas e com fantasia, mas a ideia minguou”, lembra Gabriel, 51. “É claro que o nosso Carnaval não é um território totalmente segregado, mas a imagem que a festa passa diz muito sobre como vem sendo conduzida nas últimas décadas”.

Palco

Na verdade, a utilização das ruas da cidade como palcos gratuitos, onde brincam apaches e marinheiras, soa, no Carnaval de Salvador, como a reconquista de um território. Mas cabe lembrar que a festa, seja aqui ou em outras plagas, nunca foi totalmente livre de tensões e de disputas.

A época de ouro das fantasias, por exemplo, é atrelada aos bailes fechados da primeira metade do século 20. Tais bailes floresceram como uma resposta da elite à violência e aos perigos das ruas. E mesmo os blocos primordiais, dos anos 1940 e 50, já saíam às ruas com cordas para demarcar os seus.

“O Carnaval de hoje não é menos democrático do que foi na primeira metade do século 20, quando blocos populares eram impedidos de desfilar na Avenida Sete”, diz o historiador Itamar Anunciação, autor do artigo Ecos da folia (2007). “Às vezes, nos escapa que o Carnaval é um terreno de grandes conflitos – pelo espaço público, pela visibilidade e pelos negócios. E é, ao mesmo tempo, o espaço para práticas absolutamente democráticas. Em que outro momento do ano, em Salvador, um grupo de jovens negros da periferia pode descer em frente ao Shopping Barra sem ser abordado por policiais?”.

Itamar, que participa do Magrela na Banguela, bloco de ciclistas fantasiados, é fundador do Perdendo a Linha, que circula nas ruas do Santo Antônio desde 2015 e que reúne pouco mais de 100 pessoas – as fantasias são livres, mas quase sempre têm conotação política; há quem vá de Aedes aegypti, de Cláudia Cunha (mulher do ex-deputado Eduardo Cunha), de Dilma Rousseff e de petroleiro (nesse caso, acompanhado da frase “tô igual à Petrobras, não tô valendo nada”).

“A gente se inspira, mas não com o sentimento saudosista, de querer reviver o que existiu”, diz Itamar. Na verdade, o que a gente quer é a mistura, a mixagem, as novas possibilidades dentro do que existe. Não é uma postura romântica”.

Num ensaio do Perdendo a Linha, realizado no primeiro domingo de fevereiro, o grupo se concentrou no Largo de Santo Antônio. Num muro, uma pichação traduzia a farra em rima. Adotada pelo pequeno bloco como o lema do Carnaval deste ano, dizia assim: “Por mais que queriam domesticar Momo, não conseguem. Momo rompe e a folia segue”.

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