OLHARES
Tempo e memória em exposições na cidade
Confira as opções de arte em Salvador
Por Cristina Damasceno*
Uma das características essenciais da fotografia é que ela sempre se refere ao passado. A imagem fotográfica, na maioria das vezes, ultrapassa o tempo de vida do seu referente e se transforma em vínculo afetivo que perpetua uma memória. Suas potencialidades como um meio de registro de lembranças da vida individual ou coletiva envolve muitos artistas contemporâneos que, como em uma viagem imaginária pelo tempo, se deparam com suas reminiscências, tornando-as ponto de partida para a criatividade.
Deste modo, seguindo o fluxo dos seus antepassados, a artista Shai Andrade desenvolveu uma pesquisa sobre as matriarcas de sua família em que os resultados são possíveis ver na exposição intitulada Oráculo da memória. Depois de uma temporada em São Paulo, na Galeria Verve, a mostra está em cartaz no Instituto Cultural Brasil Alemanha (Goethe Institut Salvador), até 15 de junho.
Natural de Candeias (BA), Shai é uma artista que transita em várias linguagens. Nesta exposição, denominada como uma instalação expográfica sensível, ela traz majoritariamente obras com a técnica fotográfica, mas também apresenta uma ambientação com objetos, vídeo, performance e escultura.
Na busca por sua linhagem, Shai mergulhou no passado revisitando os álbuns de família. Achou com a avó uma fotopintura de sua bisavó e conseguiu localizar uma foto de sua tataravó, oriunda de uma carteira de trabalho.
Memória afetiva
Ela afirma ter poucos registros de sua ascendência, pois a família só teve uma câmera fotográfica depois de seu nascimento. Esse vazio foi o ponto de partida para Shai se interessar na reconstrução de suas memórias: “É uma estratégia para impedir o apagamento dessas mulheres que formaram quem eu sou, e quem eu sou reverbera na minha arte. Mas é também uma forma de fazer com que outras pessoas olhem para seus antepassados como presença. A memória é a presença”.
Na exposição, fotografias da artista estão emolduradas ao lado de uma carta de tarô. Os oito quadros foram idealizados a partir dos arquétipos particulares de cada mulher de sua família. Os detalhes da representação dos elementos e cores das cartas foram pensados de forma a sugerir características de suas personalidades. A ideia de um oráculo, segundo a artista, foi criar memórias vividas, que carregassem um ensinamento, uma força, uma mensagem para o futuro.
Em uma das composições exibidas, Shai aparece ao lado de uma carta vazia e justifica a razão: “A carta vazia da obra Oráculo representa essa divindade maior, o antepassado primeiro o qual eu não sei o nome, nunca vi, mas que de algum modo conduz todas as outras coisas a convergiram no que é, no que se tornou e se tornará o Oráculo da memória”.
Os objetos presentes na instalação estão todos ligados aos retratos e suas memórias. No centro da sala de exposição, em um tapete circular de terra, pode-se ver um ferro de alisar cabelo que, conforme a artista, era da tia; agulhas que representam o quarto de costura de sua avó, local onde passou grande parte de sua infância; uma pedra, que antes do seu nascimento, já pertencia à casa de sua avó; e por fim, uma folha de espada de Ogum, planta que em suas recordações crescem de forma viçosa no quintal da avó. Com a colaboração e sintonia do fotógrafo Hugo Martins, Shai Andrade traz um trabalho intenso e rico de lembranças.
Reverberações
O tema memórias também está presente em outra exposição importante na cidade. Intitulada Reverberações – Refletindo a impressão da memória africana, a mostra do artista nigeriano Mudi Yahaya, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), retrata a influência dos retornados brasileiros nos países africanos. A mostra pode ser visitada até 29 de junho. As 46 fotografias promovem uma reflexão sobre nossa história, particularmente, a atuação dos negros muçulmanos na Revolta dos Malês, ocorrida na Bahia em 1835.
A exposição é fruto de 15 anos de dedicação do fotógrafo com o tema. Ele percorreu durante 2003 a 2018 o seu país natal, assim como o Benin, Gana e Senegal tentando reconhecer e discutir as diversas experiências e pontos de vista culturais, em comum entre africanos e brasileiros, em decorrência do comércio transatlântico de pessoas que foram alvo da escravidão.
Para Mudi, identidade e história estão interligados: “A minha fotografia sempre se preocupou com questões de identidade porque a política de identidade visa alcançar uma sociedade mais equitativa e inclusiva. Ao aprofundar a conversa sobre equidade e inclusão, a câmara torna-se um instrumento muito crítico e útil que pode oferecer à sociedade a capacidade de ‘ver’”.
Ao entrar na sala de exposição, o visitante passa por uma reprodução de um arco intitulado como “Porta dos Retornados”, que faz alusão à Porta do Não Retorno, ponto situado na costa oeste do continente africano conhecido pelo embarque dos escravizados que eram enviados para o continente americano.
Fui guiada pelo mediador Vitor Arcanjo que, com muita habilidade e simpatia, me forneceu detalhes sobre o bairro brasileiro em Lagos, na Nigéria, os hábitos, tradições e herança arquitetônica importados do Brasil pelos ancestrais libertos que retornaram aos seus países de origem.
Fluxo e Refluxo
Foi impossível, para mim, ver o conteúdo da mostra e não me lembrar de Pierre Verger. Prontamente me recordei de uma visita que fiz à Casa do Benin, há muitos anos, em que fiquei admirada pela rica documentação fotográfica exposta, que pode ser vista hoje no site da Fundação Pierre Verger. Lá percebi como eram profundos os laços culturais entre a Bahia e a África.
As imagens feitas no Benim de um homem tocando berimbau, ao lado de uma cena semelhante na Bahia; a vendedora africana de acarajé, junto da baiana; as similitudes nas cerimônias religiosas dos orixás, entre outros aspectos. Uma verdadeira aula de história!
Por meio das suas fotografias e escritos, Verger foi um dos primeiros pesquisadores a seguir o caminho de ida e volta de descendentes dos escravizados e mostrar parte de nossas raízes culturais, como a influência africana nos cultos do candomblé, trazida pela primeira geração dos filhos de africanos que retornaram no século 19 à Bahia, depois de terem sido iniciados nos ritos e mistérios da religião em Lagos, no Golfo da Guiné.
Verger foi um dos primeiros autores na língua portuguesa a investigar os aspectos históricos sobre o tema da religiosidade afro-brasileira. Concluindo, fica aqui uma dica para os amantes do tema e as novas gerações visitarem as exposições de Shai Andrade, Mudi Yahaya e a exposição virtual Fluxo e Refluxo, de Pierre Verger.
Cristina Damasceno é doutora em Artes Visuais e professora de fotografia na Escola de Belas Artes (Ufba) - [email protected]
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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