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"Tivemos muita influência sobre a comida africana", diz antropólogo

Por Gilson Jorge

25/10/2020 - 6:00 h | Atualizada em 25/10/2020 - 8:59
Moqueca não é considerada por Querino uma comida africana | Foto: Felipe Iruatã | Ag. ATARDE
Moqueca não é considerada por Querino uma comida africana | Foto: Felipe Iruatã | Ag. ATARDE -

A vida do menino negro santo-amarense Manuel Querino (1851-1923) começou a mudar de rumo aos 4 anos de idade, quando seus pais morreram vitimados pela epidemia de cólera que assolou o Recôncavo baiano. Criado pelo professor Manuel Correia Garcia, recebeu educação suficiente para levar uma vida digna, mas teve seu horizonte limitado pelo racismo. Tornou-se pintor, escritor, jornalista e um militante pioneiro da valorização da cultura negra. Seus escritos sobre o que seria a comida típica do povo baiano geraram o livro A arte culinária na Bahia, publicado três anos após sua morte. No livro Manuel Querino, criador da culinária popular baiana, publicado pela P55 Edição no último dia 14, os cientistas sociais e pesquisadores Jeferson Bacelar e Carlos Alberto Dória esmiúçam o receituário organizado pelo homem que antecipou discursos sobre a negritude no Brasil que seriam marcas da produção acadêmica de Gilberto Freyre. A TARDE ouviu Bacelar, pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) e professor da Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Ufba, sobre os escritos que acabaram forjando uma cultura culinária que, um século depois, é a marca de um estado.

Em que momento surgiu a ideia do livro sobre Manuel Querino e sua ligação com a culinária?

A ideia era mostrar a importância da figura de Querino, primeiro, direcionada para um entendimento de por que ele construiu aquilo que nós chamamos de culinária baiana. A ideia, minha e de Dória, era entender o que Querino fazia e por que ele é o criador da culinária baiana. Provavelmente, se Querino não tivesse feito o livro talvez não existissem Tereza Paim (chef), Raul Lody (antropólogo) e Beto Pimentel (chef). Porque, de certa forma, tudo o que se seguiu, todos os autores se pautaram mais ou menos em torno de Querino.

O envolvimento dele com a culinária tinha uma ideologia...

Eu acho que tinha uma ideologia, sim. Querino era um sujeito que vivia numa cidade que, embora a Bahia fosse atrasada, Salvador era uma cidade cosmopolita. Chegava gente do mundo inteiro. A presença estrangeira estava aqui o tempo todo. O que Querino queria fazer era manter as tradições. De certa forma, se ele é revolucionário na questão racial, eu diria que é tradicional ao pensar sobre a comida. Ele é tradicional porque ele observa não apenas a presença africana... assim como Gilberto Freyre. Eu acho que ele se antecipa a Freyre na questão racial. Gilberto Freyre foi revolucionário no seu tempo, pensando em quando saiu Casa-grande e senzala, junto com ele o livro do Caio Prado (Formação do Brasil contemporâneo) e Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda). Foram três livros que, de certa forma, mudaram o panorama de compreensão da sociedade brasileira. Gilberto Freyre chama atenção para a questão da comida. Querino antecipa Gilberto Freyre em mostrar que a contribuição africana para a sociedade brasileira é significativa. Mas, ao mesmo tempo, ele tem o mesmo problema de Gilberto Freyre, minimiza a questão indígena, que eu acho que foi significativa.

Que outras características podemos mencionar?

Há um outro aspecto na culinária de Manuel Querino, em relação à presença africana, que precisa ser compreendido. Eu continuo dizendo que é uma incógnita o que há de contribuição africana na cozinha baiana. Esse é um problema que vem à tona porque os bantos, que vieram da atual Angola e do antigo Reino do Congo para cá no século 17 e ficam até o século 19, de forma ininterrupta, conseguiram ter uma contribuição significativa no português do Brasil, a professora Yeda Castro mostra isso, dez vezes maior do que qualquer outro povo africano. Ao mesmo tempo, têm força para construir uma igreja daquele porte (Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos). Não deixaram nada para a comida baiana? Eu acho isso impossível. Muitos deles se tornaram ascendentes e, de certa forma, devem ter imposto alguma coisa. Depois, há uma confusão entre o que é jeje e o que é nagô. O que é jeje e o que é iorubano. Do que é da atual República Popular do Benin e o que é da Nigéria. Embora os iorubanos também estejam no Benin. Essa iorubalândia se firmou aqui, tomou conta, o nagocentrismo tomou conta, então, nós pensamos sempre que tudo o que tem aqui é nagô. Eu não sei o que é nagô e o que é jeje. Isso quem viu foi o professor Vivaldo da Costa Lima: o primeiro momento em que o acarajé aparece é exatamente no antigo Daomé. São coisas assim. Eles (nagôs e jejes) eram inimigos, mas ao mesmo tempo se influenciavam.

O livro traz essas questões entre jejes e nagôs...

Traz, sim. Não apenas isso. Uma das coisas é que Querino era um homem de candomblé. Ele era ogã do Gantois. Muita coisa que Querino coloca por escolha dele estava no candomblé, já não estava, provavelmente, no gosto da população. E numa sociedade imigrante de forma compulsória, violenta, não se consegue trazer sua comida para cá. Ela traz o que pode. Muita gente ia para lá e voltava. E no final do século 19 muita gente mandou coisa de lá para cá, assim como nós, as Américas e em especial o Brasil, levamos muita coisa para a África. Em especial, a farinha, que lá não tinha. Nós tivemos uma influência muito grande sobre a comida africana. A presença brasileira foi muito marcante tanto na África Ocidental quanto na África Central. Em Angola estava o pessoal do Rio de Janeiro. Mas na região do Benin, Togo, os baianos predominavam. Isso porque tinham um produto que eles adoravam: o fumo de rolo, que é um fumo caramelizado e que ninguém soube fazer no Brasil. Quando eu digo que não existe uma comida africana na Bahia, o pessoal diz “ih, Jeferson está contra a presença africana”. Nada, eu só estou dizendo que ainda é uma incógnita e o que ficou é muito pouco. É não confundir a comida religiosa, que é uma coisa, onde há certos produtos fundamentais na construção da linguagem culinária religiosa, que não estão presentes na vida dos baianos. Por exemplo, o aluá (bebida fermentada). Eu nunca vi ninguém tomando aluá aqui fora. Aluá é uma coisa dos terreiros. Pode alguém fazer aluá em casa. E ele já foi muito mais popular em vários lugares do Brasil. Eu fui descobrir aluá no Ceará, por exemplo. O vinho de palma teve uma presença dentro da Nigéria, no Benim, mas nunca pegou aqui. O que pegou mesmo foi cachaça. O que o africano e o crioulo bebiam, o negro nascido no Brasil, era a cachaça. Não há ainda uma história da comida dos escravos no Brasil.

Nenhum registro?

Quando fizeram, foi sobre determinada região. Na Bahia, não se sabe o que é que os escravos comiam. Outra coisa é que gostam de dizer que moqueca é comida de orixá. Não é, inclusive moqueca não é considerada por Querino comida africana. E extremamente discutível é a questão do vatapá, que Querino tampouco coloca como comida africana. Ele coloca como pratos brasileiros. É uma polaridade, mas não cai numa segregação. Ele diz que tudo isso se junta para formar a comida baiana. Ele selecionou o que ele achava que naquele momento tinha mais expressão, algumas coisas ele deixou de fora. A cozinha de Querino se centra basicamente em Salvador e Recôncavo. Não é uma cozinha que se estenda para o interior. Hildegardes Vianna estende para o interior. O que nós trazemos no livro é que se pensa sempre na cozinha baiana formada por um tríduo: a presença indígena, considerada mínima, e o que eu tento mostrar é que não é verdade. Ela é muito mais ampla e significativa do que se poderia pensar. Um animal que está ali, sua presença é natural. Mas há uma escolha do que você come e o que você não come. Os índios não comiam o tamanduá. Quem comia eram os velhos índios, mas os jovens não comiam. Isso significa que é um processo de culturalização em torno da comida. Vários vinhos que apareciam no candomblé de Olga, que hoje são caros, eram vinhos populares. Havia também o requinte, as champanhas, vinhos franceses, grandes banquetes. Recentemente, lendo a dissertação sobre a família Alakija, uma das coisas que tem é que eles oferecem a um baiano rico criado na África, o Maxwell Assunção, um jantar, e no menu não tem uma só comida de azeite. Não é pensar que essa comida de azeite era bem aceita, que tinha grande repercussão.

O azeite não fazia parte da dieta dos baianos?​

Isso não quer dizer que a comida de azeite não existisse. Tanto é que Vilhena (professor português Luiz dos Santos Vilhena) escreve nas famosas Cartas de Vilhena em 1798 e já fala dessas comidas, inclusive da água suja, como eles chamavam a aluá. Ele era extremamente preconceituoso em relação a isso. Mas o caruru aparece numa recepção que foi dada ao cara que cedeu sua coleção ao Museu de Arte da Bahia, o (Jonathas) Abbott. É sinal de que muita coisa já estava sendo aceita. Agora, não é pensar que tudo o que bota azeite é africano. Isso é uma grandessíssima besteira. Eu gozo, junto com Doria, que dizer que tudo o que tiver azeite de oliva é mediterrâneo (risos). Quando eu estou comendo minha salada, estou comendo uma salada mediterrânea.

Quem era exatamente Manuel Querino?

O Querino teve uma vida intensa. Ao mesmo tempo em que era um homem ligado às correntes políticas principais até determinado momento, depois cai em desgraça. Ele é envolvido com os afoxés, com as irmandades, em muitas confusões com a Sociedade Protetora dos Desvalidos. E onde ele vai encontrar guarida como intelectual no fim da vida? No Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Mas ele é vivo. Esperou Nina Rodrigues morrer para escrever em relação ao negro. Porque ele não ia bater de frente. Um cara que bateu de frente, com a valorização da cultura africana, o instituto simplesmente cortou. Não se conhece muito sobre a vida pessoal dele. Querino ainda dá pesquisa sobre a vida pessoal dele.

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