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14/01/2019 às 10:38 • Atualizada em 14/01/2019 às 13:40 - há XX semanas | Autor: Daniel Oliveira | Foto: Raphael Müller | Ag. A TARDE

MUITO

Tombamento do Ilê Axé Kalè Bokùn garante preservação do mais antigo terreiro ijexá do país

O terreiro, fundado por Severiano Porto, funciona há 85 anos em Plataforma
O terreiro, fundado por Severiano Porto, funciona há 85 anos em Plataforma -

A ialorixá Estelita Lima Calmon recebeu uma visita incomum e ao mesmo tempo emocionante na sua casa, em junho de 2016. Uma comitiva interinstitucional levou, nas suas mãos, o documento que deu início ao processo de tombamento do terreiro Ilê Axé Kalè Bokùn (terra das riquezas profundas), o mais antigo e um dos poucos terreiros da nação Ijexá existentes no Brasil, do qual era a dirigente. Na época, idosa e acamada, estava aos cuidados de seus filhos.

“Ela assinou a notificação e no dia seguinte descansou. Parecia que estava esperando só isso”, conta a ialorixá Vânia Amaral, 55 anos, sobrinha-neta da sua antecessora, enquanto olha, com respeito e carinho, para a fotografia de mãe Estelita exposta no barracão (local das cerimônias) do templo religioso, instalado, segundo o registro oficial, há 85 anos em Plataforma, numa das áreas de Salvador com maior concentração de terreiros de Candomblé.

Naquele momento de reconhecimento, um cântico ecoou no quarto. “Quando pegou no papel, a mãe Estelita começou imediatamente a cantar para Ogum. Foi uma coisa linda”, lembra Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), que estava presente e foi um dos responsáveis pela solicitação de tombamento.

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Durante um período, a casa com muros brancos, numa ruazinha tranquila e serena do bairro, entrou em axexê – cerimônia sagrada cultivada no Candomblé após os ritos fúnebres de uma pessoa iniciada. Um tempo de auto-reflexão interna e reorganização do terreiro. “Apesar da perda, nos sentimos fortes. Sabíamos que o legado deixado estava salvaguardado”, afirma a ialorixá Vânia.

No final de 2018, a Prefeitura de Salvador, através da Fundação Gregório de Mattos, tombou o terreiro Ilê Axê Kalè Bokùn, considerando-o Patrimônio Cultural da cidade de Salvador. É o primeiro Ijexá com tal honraria em todo o país.

“É um reconhecimento desse bem que é histórico, cultural, religioso e afetivo. Garante o nosso direito de segurança e preservação. Nós, ijexás, somos praticamente extintos – exceto os troncos daqui que hoje têm filhos na cidade e em outros estados”, afirma Vânia Amaral, referindo-se a terreiros em Lauro de Freitas e no Rio de Janeiro, conduzidos por iniciados no Kalè Bokùn. Com o tombamento, torna-se responsabilidade do poder público preservar o patrimônio físico e os saberes ancestrais ali perpetuados.

“Hoje há muitas dificuldades por conta da especulação, da densidade demográfica, de obras públicas que chegam nesses lugares. Então, é o principal instrumento de proteção. Quando é tombado, o Estado passa a ter a obrigação, junto com a comunidade, de manter aquele patrimônio e o seu conjunto monumental. E aí pode, por força de lei, investir naquele espaço”, explica Leonel.

Para dar sustentação ao processo, um laudo etno-histórico foi produzido pelo antropólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia, Vilson Caetano. A extensa pesquisa sobre os ijexás, a partir da presença do Ilê Axé Kalè Bokùn na capital baiana, será publicada em livro no final deste mês, com o título Ijexá: o povo das águas, com apoio da Fundação Gregório de Mattos.

De Ilexá ao Subúrbio Ferroviário

As raízes da nação Ijexá remontam à terra de Ilexá, no continente africano (uma região da Costa Oeste, próxima à Nigéria), e chegaram em terras brasileiras, de acordo com Vilson Caetano, “em dois ciclos de africanos”: o da Costa da Mina e o do Golfo do Benin. “Os ijexás estão entre os chamados ‘últimos africanos’. Foram classificados entre os sudaneses, dividiam a língua iorubá e eram conhecidos como guerreiros e guerreiras”.

Em solos soteropolitanos, circulavam inicialmente pela região central da cidade, a exemplo do Dique do Tororó, Vasco da Gama, Mata Escura. No século 19, migraram para a Península de Itapagipe, que agrega, atualmente, os bairros de Boa Viagem, Bonfim, Ribeira, entre outros. O fundador e primeiro babalorixá do Ilê Axê Kalè Bokùn, Severiano Porto (ou Severiano de Logun Edé), viveu nessas paragens e, em 1933, se fixou no Subúrbio Ferroviário.

“Os ijexás nunca esqueceram que Oxum é o próprio rio. Então, é uma nação de Candomblé que depende da água, de espaços marítimos. Veja que a concentração ocorre em torno dos rios: Dique, Vasco da Gama, Queimadinho e Itapagipe”, exemplifica.

Além das especificidades da localização geográfica, os ijexás guardam um legado histórico, cultural e religioso profundo, associado tanto à capital baiana, quanto às suas matrizes africanas. O ritmo homônimo, de toque cadenciado, amplamente conhecido na cidade e vinculado aos afoxés e ao Carnaval, tem as suas origens diretamente articuladas aos integrantes desta nação, que tinham o costume de caminhar em procissão pela cidade – por exemplo, para presentear Iemanjá no Rio Vermelho.

"Foi por causa dessa característica que se confundiu uma nação de Candomblé com um ritmo musical. Os ijexás saíam nas ruas levando os presentes e tocando os tamborzinhos. Aí se dizia: são os ijexás. O rito se confundiu com o ritmo e o ritmo nos anos 80 passou a substituir o rito. Infelizmente, hoje quando se fala ijexá se pensa logo no ritmo e não na nação”, complementa Vilson.

Cidade e resistência

Durante o período de proibição dos rituais, considerados contravenção e, posteriormente, de intensa intolerância e perseguição policial aos terreiros, esses pequenos tambores (ilús) possibilitavam o acontecimento das cerimônias sem chamar a atenção da vizinhança e dos detratores. São até hoje utilizados, sobretudo por mulheres que, por conta de preceitos da religião, não tocam os atabaques.

“Acompanhavam o chamado ‘Candomblé de palma’ (sem o uso de atabaques, apenas com palmas e a cabaça). Isso por si só explica a dimensão simbólica importante dos ijexás. E significa resistência, afirmação das identidades negras africanas reconstruídas na diáspora”, defende Vilson.

A diretora de Patrimônio e Humanidades da Fundação Gregório de Mattos, Milena Tavares, chama a atenção de que, no caso do Ilê Axê Kalè Bokùn, a própria estrutura, que remete a uma residência, já se configurava como estratégia de resistência aos perseguidores. Outros aspectos da edificação também materializam as especificidades da nação.

“O terreiro preserva aspectos construtivos de época e mobiliário antigo. Percebe-se diversos elementos da singularidade do culto ijexá”, diz Milena, listando características como o santo de canudos assentado na cumeeira, os quartos de orixás da nação, o salão de festas, a cozinha do axé (preparo de alimentação ritual), os pejis – formando uma espécie de vila dos orixás –, local de recolhimento (camarinha), fonte sagrada e área de plantas.

No processo de tombamento, tudo isso foi levado em consideração, assim como a continuidade histórica – as três gerações. A atual ialorixá, Vânia Amaral, também é neta do fundador Severiano Porto – filho de uma africana da nação ijexá – descrito por antigos como um homem simples e amigo, porém rigoroso.

Os preceitos e ritos internos também envolvem a singularidade dos ijexás. O período de iniciação e recolhimento no terreiro é mais longo em relação a outras nações – varia de quatro a seis meses, de acordo com o orixá. Mas existe certa flexibilidade, hoje em dia, para a pessoa em iniciação trabalhar fora e, após o expediente, voltar para o Kalè Bokùn.

A razão disso é preservar as tradições e obrigações, os atributos que marcam os ijexás, como diz Vânia Amaral, uma relação diferente com o tempo, seja nos toques, seja nos preceitos.

“Quando outras pessoas, irmãos de outros terreiros e nações chegam aqui, sentem que somos muito calmos. Trazemos a calma e a lentidão também no nosso modo de cantar, de dançar. Realmente somos devagar. E dizem: ‘Vocês dançam mesmo ijexá’”.

No terreiro de Plataforma, Logun Edé e Oxum são os orixás principais desde a criação do terreiro. Vânia acrescenta que Oxalá é patrono da casa, porque a ialorixá de Severiano era filha deste orixá. “Nós temos muita devoção. Aqui existe um Oxalá do tempo da Guerra de Canudos”.

Sociedade de mulheres

Dentre as atividades cotidianas e internas do terreiro, existe o culto, somente de mulheres, o Geledé. A ebomi do Kalè Bokùn e iniciada no terreiro há 33 anos, Márcia Lima, expõe que, por ser interno, não é possível revelar muitos detalhes acerca do rito, mas, de maneira ampla, fala que se trata da sociedade das Ìyàmìs, conjunto de entidades femininas.

“É fechada e cheia de tabus. Só quem participa sabe o que acontece. É uma sociedade feminina que trabalha em prol de união, fraternidade, transmissão de legado, ensinamentos para fortalecer a religião”, conta Márcia, que é ialorixá do terreiro Ilê Axé Ewá Olodumaré, filho do Kalè Bokùn, em Lauro de Freitas. Esse culto, argumenta, entra em consonância com o perfil “matriarcal” do Candomblé como um todo.

“A mulher sempre foi o elemento mais importante da religião, tanto que nos tempos antigos, a mulher está à frente de alguns ritos, de algumas obrigações. É um empoderamento”, afirma.

Ela chegou ao Kalè Bokùn na infância, junto com a mãe, que tinha ligação prévia com o Candomblé (era filha biológica de Juvenal Chame-Chame – o Ogã de Jubiabá, de Baía de Todos os Santos, livro de Jorge Amado), onde também foi iniciada.

Segundo a sacerdotisa, a sua experiência fundamental no terreiro, nesses anos, foi de aprendizado de amor, solidariedade e fraternidade: “São sentimentos verdadeiros e valorosos por pessoas que, às vezes, a gente nem conhecia. Não somos pais, mães, irmãos pelo elo sanguíneo, mas pelo elo religioso. E, sendo assim, o sentimento de solidariedade se fortalece”.

Num processo de entrada diferente, a ebomi Tania Bispo frequentou o terreiro inicialmente como abiã (pessoa da religião, porém ainda não iniciada). De “família do axé”, foi escolhida, há 18 anos, pelo orixá Logun Edé e pelo Kalè Bokùn.

“A minha iniciação foi num terreiro de Ijexá porque Logun Edé é de terreiro de Ijexá. E os conhecimentos que vem, a partir disso, você só adquire quando começa a vivenciar. Não é de livro, mas de uma experiência corporal, de você com seus orixás e a sua energia”, diz Tania, que é funcionária pública, professora de dança e psicoterapeuta junguiana.

Corpo e espiritualidade

Ela entende que há uma complexidade na nação Ijexá – nas suas palavras, “uma alquimia”. Por conta de sua formação, aliada às experiências e reflexões, valoriza a aproximação do processo de individuação (desenvolvimento psíquico) com as múltiplas iniciações no Candomblé enquanto ciclos.

“A reiniciação é sempre algo novo, um processo de amadurecimento biopsíquico, um trânsito entre a consciência e o inconsciente, que leva a um poder de amadurecimento”, argumenta, defendendo também o respeito ao espaço sagrado e às variáveis essenciais que permeiam a conexão religiosa.

O vínculo entre corpo e espiritualidade, como possibilidade de cura, levou também Walter Amaral, conhecido carinhosamente como Bahia, irmão biológico da ialorixá Vânia Amaral, ao terreiro Kalè Bokùn com sete anos. Chegou ao espaço com graves problemas respiratórios, após diversos tratamentos médicos sem resultados positivos.

“Os homens disseram que não tinha mais jeito, que só levando para o outro lado. E aqui encontrei a mãe Estelita, minha madrinha, e vim para os braços dela. Fui melhorando, fiquei, estou até hoje me cuidando. E não tive mais nada. Depois, quando ela estava doente, larguei tudo para ficar cuidando dela. E continuo aqui. Não dou as costas a quem me salvou”, afirma.

Em sintonia com as riquezas profundas, Tania acrescenta: “É como um útero que lhe acolhe. O ijexá é a terra da água, do colo, do amor”.

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