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TV Pelourinho: um presente nos 80 anos de Caetano Veloso

Cinco integrantes da TV viajaram ao Rio para registrar os bastidores do show em homenagem aos 80 anos de Caetano

Publicado domingo, 07 de agosto de 2022 às 00:00 h | Autor: Gilson Jorge
Equipe da TV: Rafael, Daniel, Thiago, Lyu, André e Salém
Equipe da TV: Rafael, Daniel, Thiago, Lyu, André e Salém -

Cinco integrantes da TV Pelourinho viajaram ao Rio de Janeiro nos últimos dias para registrar os bastidores do show em homenagem aos 80 anos de Caetano Veloso, que acontece hoje, às 20h30, com transmissão ao vivo pelo Globoplay, serviço de streaming da Rede Globo. A convite da empresária Paula Lavigne, companheira do cantor, e com despesas pagas pela emissora, eles também registraram os ensaios na casa do casal e no teatro do Centro Cultural Cidade das Artes Bibi Ferreira, onde também acontece a apresentação de hoje, com os três  filhos de Caetano,  Moreno, Zeca e Tom, além da irmã Maria Bethânia.

 O evento no Rio, que já estava programado, acabou se tornando o ápice da campanha de doação que o astro baiano promove nas redes sociais em favor da ONG, desde que conheceu as suas instalações em junho deste ano, quando veio tocar na cidade.

Criada em 2008 pelo produtor cultural André Actis, a instituição se dedica à formação de profissionais no setor de audiovisual, com cursos gratuitos de dois anos para jovens entre 15 e 29 anos de bairros pobres da capital. Alguns jovens egressos da TV Pelourinho tornaram-se profissionais de grandes emissoras, incluindo afiliadas da própria TV Globo.

Mais de 2 mil moças e moços da Federação, Boca do Rio e de muitos bairros periféricos tiveram a chance de aprender teoria e prática de vídeo na TV Pelourinho, ao longo de 14 anos. Um desses meninos é Emerson Miranda, nascido na Boa Vista de São Caetano (onde mais?), que sempre sonhou trabalhar com comunicação.

Ele conheceu a TV através de um cartaz na escola, inscreveu-se, tomou gosto pela coisa e, já atuando no setor de audiovisual, cursou faculdade de comunicação.  Há um ano e dois meses, é repórter da TV Centro América, afiliada da Globo no Mato Grosso.  "Foi uma das experiências mais incríveis da minha vida. Ter um curso de audiovisual para comunidades periféricas, e de graça, era algo que não existia".

Emerson, que às vezes aparece no Globo Rural, nas manhãs de domingo, sente-se grato por ter podido aprender a filmar, editar e falar diante de uma câmera numa época em que não tinha dinheiro para bancar um curso particular para obter a DRT de cinegrafista.  "Se não fosse a TV Pelourinho, talvez eu não tivesse hoje no lugar em que estou", afirma.

O profissional lembra que, na época do curso, muitos jovens nem tinham ideia do que estavam fazendo ali ou do que era o setor audiovisual, mas acabavam se identificando. "Eu torço para que a TV continue recebendo recursos do poder público e oferecendo alternativas de trabalho que afastem os jovens do mundo das drogas", afirma o jornalista.

Direitos humanos

De acordo com André Actis, a maioria dos egressos conseguiu formar uma fonte de renda, ou com trabalho em empresas do setor ou montando suas pequenas produtoras. Mais do que formação profissional, a TV Pelourinho tem uma marca de promoção dos direitos humanos, como o combate ao racismo e à homofobia. 

Estima-se que a TV Pelourinho produziu mais de 5 mil conteúdos, desde a produção de programas educativos para a TVE Bahia, CNT- BA e TV Futura, até documentários focados em direitos humanos, como O Que é Ser Negro na Bahia (parceria com a Uneb)  e Tráfico de Pessoas (parceria com a Secretaria de Justiça do Estado da Bahia). Cinema transcendental.

A TV Pelourinho, que sempre se manteve com apoio de editais e leis de incentivo, entrou em franca decadência com as mudanças de políticas públicas implementadas no Governo Temer. "Nós sofremos um golpe nas finanças em 2016", afirma Actis. Veio a pandemia e a instituição teve que fechar as portas. A duras penas, A TV tenta retomar as atividades desde março deste ano, quando passou a contar com o trabalho voluntário de uma equipe.

O ator carioca Luís Salém, amigo de Actis e morador de Salvador desde 2017, virou diretor artístico, e o também ator Lyu Árisson ficou encarregado da direção de produção.  Foi ele que entrou em contato com Paula Lavigne para assinar a rifa de um quadro cedido pelo artista plástico Washington Arleo.

A rifa, sugerida por Salém como medida emergencial, seguiu adiante. Mas Paula Lavigne e Caetano avaliaram que poderiam fazer mais pela instituição.  "Ele disse assim: eu vou aí ver a situação", conta Lyu, que chama ambos de tios.

Em 27 de junho, alguma coisa aconteceu no coração do autor de Sampa quando ele subiu as escadarias de madeira do casarão de número 16 da Rua das Laranjeiras, sede da TV. Logo depois da visita, iniciou-se uma campanha em que o cantor pede aos fãs como presente de aniversário de 80 anos doações à TV Pelourinho.

Em um depoimento gravado em vídeo e publicado no Instagram, Caetano declarou seu apoio à TV Pelourinho, que qualificou de "um esforço de saúde social e humana". A iniciativa recebeu a adesão de artistas e celebridades, como Wagner Moura, Astrid Fontenele, Nando Reis e Sonia Braga, entre outros.

O prédio da TV Pelourinho, tombado pelo Ipac, sofre com uma infestação de cupins e, para economizar, permanece a maior parte do tempo com as luzes apagadas. "Eles acendem e eu saio atrás apagando", brinca Salém.

Na última segunda-feira, a conta de energia permanecia inerte, depositada, como uma carta portadora de más notícias, sobre um balcão no hall de entrada do imóvel, que a TV divide com um restaurante do térreo.

A última conta aberta de luz aberta trazia uma fatura de mais de R$ 600. "Paula Lavigne nos emprestou dinheiro para pagarmos a conta", diz Actis.

Os diretores da TV estimam que o orçamento ideal para a instituição seria de R$ 500 mil anuais ou R$ 1 milhão para cada biênio, tempo que leva a formação de cada turma. No site www.vakinha.com.br, a campanha estipula uma meta de arrecadação de R$ 250 mil. Até a manhã da última sexta-feira, o valor obtido figurava em R$54 mil.

Para Luis Salém, ademais da doação em si, a campanha iniciada por Caetano ajuda por dar visibilidade à instituição.  "É uma responsabilidade social de toda a sociedade", afirma.

Uma responsabilidade assumida por alguns jovens que passaram pela ONG, encontraram seu caminho no mundo do audiovisual como contratados ou prestadores de serviço, e resolveram depois dedicar algumas horas do seu tempo para ajudar outros jovens.

Aos 27 anos e no último semestre do curso de jornalismo de uma faculdade privada, Daniel Silva já passou pela TV Aratu e pela CNN e hoje presta serviços à TV Bahia como editor de vídeo. Desde maio, regressou à TV Pelourinho como voluntário para dar a sua contribuição.

"Todos os vídeos produzidos aqui passam pelas minhas mãos para editar", orgulha-se o jovem, que destaca sua gratidão pela oportunidade que teve de aprender o ofício na instituição.  Outros ex-alunos que estão nesse momento de retomada são Rafael Paixão e Thiago Verdelho.

O abraçaço de Caetano à TV Pelourinho traz na prática o desejo de sua música Santa Clara, padroeira da televisão, de 1991, "que o menino de olho esperto saiba ver tudo, entender certo o sinal, certo se perto do encoberto, falar certo desse perto e do distante porto aberto”.

Sustentabilidade

André Actis e os outros diretores pretendem levar a TV ao caminho da sustentabilidade.  Para isso, está sendo criada uma produtora social, ainda sem nome, que deve atuar profissionalmente no mercado, trazendo recursos para financiar os cursos gratuitos.  "A TV Pelourinho vai adotar o slogan A TV da Nova Era. Nunca mais vamos fechar as portas por falta de apoio governamental", decreta Actis.

Por enquanto, é a era das parcerias, como brinca Lyu Árisson, referindo-se ao apoio que a TV tem recebido da comunidade do Pelourinho.  O Olodum bancou a pintura do imóvel e a instalação de internet. Marcas como a Soul Dila e a Meninos Reis fornecem roupas. Em retorno, a TV Pelourinho cria conteúdo para elas. Um tipo de colaboração iniciado em março com o Projeto Axé.

"Curiosamente, uma ONG ajudou outra ONG", aponta Salém que intercedeu junto à direção do Axé para que o desfile de moda da entidade tivesse a cobertura dos meninos da TV Pelourinho.

Vamo comer?

No Pelourinho, o show de Caetano vai ser exibido em alguns bares e restaurantes, que se engajaram para auxiliar a ONG, como o Boteco do Viajante, que fornece alimentação a integrantes da TV em horário de expediente e, como contrapartida, tem seus eventos gravados pela instituição, que também auxilia na divulgação de conteúdo em redes sociais.

 Para este domingo, o Boteco destacou como prato em homenagem ao aniversariante a frigideira de maturi, receita à base de pele de caju verde, muito apreciada no Recôncavo.  "Eu procurei fazer um prato que Dona Canô preparava para os filhos", explica a proprietária do bar, Takuyra Costa.

Ela cita ainda como pratos do gosto do cantor que estão em seu cardápio a feijoada, a maniçoba, o bobó de camarão e a moqueca de tainha. Vamo comer? Vamo comer?

No Largo do São Francisco, o Cuco Bistrô aposta na Moqueca Mista, com camarão, coco verde, pescada amarela e maturi. "Caetano ama Maturi", afirma o proprietário do Cuco e com sobrenome de cantor espanhol José Iglesias. Referência em comida do Recôncavo no Centro Histórico, o Ponto Vital aposta na Anduzada, uma espécie de feijoada com andu. A Padaria Santo Antônio vai passar a vender o seu pão de alho artesanal de sabor queijo sob o nome de Alegria, Alegria, sucesso dos anos 1970. Por que não?

Até o fim do show de hoje no Centro Cultural Cidade das Artes, será um dia inteiro de devoção a Caetano no Centro Histórico e de luta para que as doações à TV Pelourinho permitam à instituição continuar ajudando a jovens negros e pobres de Salvador tornarem-se cinegrafistas, editores, repórteres, apresentadores. Qualquer coisa que se sonhara.

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