CRÔNICA
Um ateu na Igreja do Bonfim
Confira a crônica do escritor Evanilton Gonçalves
Por Evanilton Gonçalves*
Em um domingo primaveril, fui à missa na Igreja do Bonfim. Coisas que acontecem depois de certa idade. Você deseja fazer algo que nunca fez, se pergunta internamente por que não fazer; o psicólogo, para quem você deposita dinheiro e confiança, é capaz de lhe cutucar do outro lado da tela feito um capetinha e verbalizar: por que não fazer? Então parece que uma ficha cai e tilinta dentro de você. E você pensa é mesmo, e faz o que quer que seja. Eu fui à missa na Igreja do Bonfim.
No dia anterior, céu azul e nuvenzinhas comuns, brancas e delgadas. Ao acordar no domingo para subir a Colina Sagrada, as nuvens cinzas que avistei pareciam cumulonimbus. Pressenti que um ateu ir à missa só poderia resultar mesmo em tempestade, raios, trovões, a combinação perfeita para anunciarem o fim do mundo. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Desliguei a música. Lili e Taniguchi, os gatos aqui de casa, brincando com uma bolinha colorida que faz um barulhinho que eles gostam. Ao fechar a porta, um pensamento: a crônica é um gato arteiro vagando pelas frestas da vida.
No trajeto, o tempo foi mudando rápido. Ou talvez eu não tenha visto nenhuma cumulonimbus e quisesse apenas repetir essa palavra com admiração e assombro. Desembarquei sob um céu de nuvens brancas iguais a camisa que eu vestia. O sol com seus raios luminosos e quentes fazia minhas canelas formigarem sob a calça. Cheguei dez e alguma coisa para acompanhar o movimento. Aqui e ali, devotos, turistas e peregrinos. Ambulantes erguendo as famosas fitinhas do Senhor do Bonfim, quase se estapeando na disputa por clientes.
Sentado num banco e abençoado pela sombra de uma árvore, eu tentava capturar a vida em movimento pelas conversas que se estendiam e se interrompiam como cordas invisíveis que conduzem a nossa delicada existência. Um senhorzinho muito elegante atraiu minha atenção. Compartilhávamos a mesma sombra. Ele trajava um chapéu estiloso, falava com bom humor. Outros senhorzinhos riam do que ele falava, uma mulher com o filho no colo também e eu fazia parte daquele magnetismo. Naquele instante, a vida parecia muito bonita. Aquele estranho aparentava me conhecer, falava e olhava para mim. Entre as coisas que dizia em sua voz de muitas décadas, anunciou o compromisso inadiável: já estava quase na hora da missa das onze presidida pelo carismático padre Edson.
O estilo neoclássico e a fachada em rococó me transportaram para o século XVIII, para um tempo colonial. Olhei para minhas mãos e vi as muitas mãos que ergueram a igreja que, naquele instante, estava lotada com gente de muitas cores, cujas indumentárias apontavam para diversos credos. Da lateral da igreja, acompanhei o rito da missa um tanto distanciado até que pude compreender a fama do padre Edson. Seu discurso era eloquente, carregado de carisma, humildade e muita sabedoria. As pessoas pareciam amansar o coração ali. Bati palmas animado como nos tempos da catequese. Quando dei por mim, estava mentalmente fazendo coro ao padre Edson. É isso aí, padre Edson, eu dizia para mim mesmo, lembrando também do meu irmão que repete como um mantra: “A humildade é a essência da vida”. Saí da igreja sentindo o frescor da água benta que era lançada no ar. Logo avistei o senhorzinho elegante, as costas curvadas pelo tempo. Acenei com a cabeça. Ele ergueu o chapéu, depois desapareceu na multidão. Ateu como sempre, desci os degraus pensando nas alegrias e iniquidades do mundo.
*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)
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