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Um jardim no museu: revisitar histórias e reescrever sonhos
Confira a coluna Olhares deste domingo
A visita à exposição O Jardim de Luís Dias, do artista Paulo Coqueiro, é um presente para a imaginação de qualquer pessoa que experimente Salvador em suas mais diferentes facetas urbanas. Instalada no Museu de Arte da Bahia (MAB), com curadoria de Isabel Gouveia e texto crítico de Priscila Miraz, o encontro com o jardim do considerado primeiro arquiteto brasileiro, ou mestre de obras, faz parte da iniciativa de (re)abertura do acervo do museu.
Luís Dias é considerado o primeiro mestre de obras de Salvador, pois trabalhou na construção da cidade a partir dos planos de Miguel de Arruda, que sequer chegou até aqui. Luís Dias executou a planta baixa da cidade, enfrentando as injúrias do tempo com seus deslizamentos de terra e serviços perdidos, situação até hoje de conhecimento da população.
Ao imaginar o seu jardim, Paulo Coqueiro apresenta criações com referências bibliográficas, artísticas e de materialidades outras que expressam a pluralidade temporal da/na primeira capital do Brasil.
Nesse jardinar, exercício de criação em multiplicidade por parte de Paulo Coqueiro, experimentamos em duas salas povoadas de arquivos, estudos sobre eles e as obras inventadas que, de maneira instalativa, criam ambiências que nos acolhem ao narrar o que se lembra existir para estarmos aqui.
O que se lembra existir é mais do que o que está registrado nos arquivos, de outrora e de ontem, sobre as vidas em território soteropolitano. Entre as paisagens imaginadas que compõem Salvador, Paulo nos apresenta sua pesquisa nos livros, quadros, impressões, projeções e outras fontes dispostas nas salas do primeiro museu da Bahia. A interação com as janelas que nos separam das árvores do Corredor da Vitória e prédios também dialoga com o trabalho do artista desde dentro.
Na frente da janela ao fundo e à esquerda há uma muda de palmeira, dentro de uma lata de tinta de “super rendimento”, que está apoiada em outra lata, esta redonda e laranja, com a borda marcada pelo escorrer de tinta branca. A montagem da existência dessa planta na sala interage com pranchas de gravuras de Régis Debret e com as 13 peças de Paulo Coqueiro: o Panorama 035 e Atualizando Debret, com suas 12 peças.
As 12 peças são quadradas, do tamanho de azulejos e a partir de fotografias de variadas espécimes tropicais, as peças trazem em seus centros um recipiente mais improvisado do que o outro, contendo as plantas. Desde a abertura de uma calçada, passando por latas e potes reciclados, incluindo tijolos de pré-moldados a copos de água, a exuberância das plantas repousa na monocromática condição dos vários cacos que nos impulsionam a verdejar.
Paulo Coqueiro nos informa sobre essa série: “Cabe observar que uma dessas imagens que produzi nessas placas está impresso em um livro antigo e colocado em uma das vitrines, misturado com os livros da própria biblioteca. De forma similar trago uma chapa de cobre onde produzi uma fotogravura, tendo como referência a ilustração exposta em um livro sobre a mesa, de um gravurista inglês do século XVIII que produziu uma imagem de Salvador sem nunca ter vindo aqui. Com estas duas peças apresento um resumo da exposição, a noção de que o tempo e as instituições legitimam narrativas, como aquela que o próprio MAB apresentava em sua exposição permanente”.
O artista tem formação em agronomia pela Ufba, na qual atua há 25 anos na área de desapropriação de imóveis rurais “para fins de reforma agrária e comunidades quilombolas e em ações de desenvolvimento para famílias assentadas”, explica ele em entrevista, na qual explicita também o mestrado em Geografia na mesma universidade e o doutorado em curso em História da Arte, em Santiago de Compostela, Espanha, em coorientação com a Facom (Ufba).
“De forma abrangente, meu trabalho artístico explora as incertezas ligadas à produção, uso, circulação e política de imagens, tendo a fotografia como sua base de referência”, completa o artista, que atualmente coordena o projeto de educação no campo na Bahia.
A preocupação com a educação é premente em O Jardim de Luís Dias, já que o cotejamento nas obras que reverenciam a história da construção da cidade de Salvador faz parte da expografia, evidenciando momentos históricos pouco conhecidos do grande público, como o quase um ano de invasão holandesa vivenciado na capital.
A monitora do Museu de Arte da Bahia, Cristiane Lopes, chama a atenção para a falta de fidedignidade do desenho do frontispício, ilustrado a partir da descrição dada por holandeses quando aqui estiveram. “Natureza e história entrelaçam-se na construção do imaginário sobre o país, em que o visual tem uma força imensa porque age de forma contundente na formação de nossa identidade”, escreve Priscila Miraz.
O trabalho de Paulo Coqueiro, ao abrir o acervo do MAB e remontar os modos de habitar Salvador por meio de montagem de fotografias sobre as chapas de metal, proporciona um acúmulo de tempo nas imagens que são formadas nestes encontros de camadas. O tempo que vai se sobrepondo expande o entendimento sobre ações e desejos que se desenvolvem no mesmo espaço.
Pode-se tomar como exemplo a obra que recria a ocupação dos arredores da Igreja de Santo Antônio da Barra, a região da Ladeira da Barra e a área ocupada pelo Yacht Club, hoje. Na criação de Paulo Coqueiro, diversas moradas simples preenchem os espaços ocupados por prédios e promovem, em alguma medida, um gesto de justiça social pautada pelo enfrentamento do racismo ambiental, proposição cunhada por Malcom Ferdinand. O aglomerado de construções vernaculares proporcionam uma ocupação do espaço branda em relação ao que existe hoje naquela área da cidade.
Paulo Coqueiro declara: “A iconografia que sempre representou a cidade ou que traz uma ambiência e que reflete uma forma de gestão e de planejamento da cidade está presente nos objetos, nas pesquisas bibliográficas e na forma como estas coleções, majoritariamente do século XIX, sempre foram apresentadas, refletindo mais o modo de vida de uma aristocracia baiana. A exposição mostra como a concentração de renda e de privilégios na forma de governar gerou uma cidade fragmentada e de uso desigual do espaço”.
Tal uso desigual intensifica uma mirada crítica para a cidade ao mesmo tempo que possibilita encontros com narrativas diferentes das que coexistem, de maneira privilegiada, sobre a cidade, como a da cidade para o consumo turístico.
Outro diálogo possível em O jardim de Luís Dias é entre as materialidades que estruturam a exposição. Coqueiro declara que “as peças do Museu trazem um refinamento no uso de materiais nobres enquanto as minhas imagens, em sua maioria, são impressas em materiais reciclados, em placas recolhidas de ferros velhos e mais recentemente em papelão. Aqui, o entendimento da imagem que se superpõe à outra, de uma cidade em transformação contínua, de camadas superpostas, de palimpsesto, de evolução do material com o tempo, considerando as mudanças graduais da oxidação sobre a impressão foi a tônica. Salvador é essa cidade de forte intempérie trazida pela umidade, pelo sal e pelo sol. Esse aspecto é muito evidenciado nesse material metálico que escolhi para imprimir as imagens e demonstrar essa ação do tempo. A vulnerabilidade da cidade a estes agentes também é mostrada aqui de forma intensiva”.
Para compor esta expedição pela cidade, condensada nas duas salas do Jardim, Paulo Coqueiro acionou um trabalho anterior, exposto na Paulo Darzé Galeria de Arte, que tinha como título Expedição à Cidade da Bahia e Arredores, tendo contado com um acervo de mais de 10 mil fotos da capital baiana impressas em papel.
Para a experimentação da atualização da exposição, o artista visitou bairros não tão usuais na produção artística para museus na cidade, bem como desenvolveu a técnica de impressão de imagens fotográficas em chapas de metal encontradas em sua maioria em ferros-velhos.
Paulo Coqueiro conta que esteve no Alto de Santa Terezinha, Fazenda Grande III, Paripe, Subúrbio Ferroviário, Parque da Pedra de Xangô em Cajazeiras e Calçada, em diferentes situações, e que possibilitaram uma expansão de suas derivas e bem como do desenvolvimento conceitual da obra.
Em uma das impressões podemos ver a plataforma do antigo trem do subúrbio partida sobre a Baía de Todos-os-Santos, lembrando a interrupção do serviço de transporte público para uma grande parte da cidade. Na pesquisa de imagens de referência, os encontros com acervos da cidade percorreram, para além do MAB, o site da Biblioteca Nacional e do IMS, da Fundação Pierre Verger, na Fundação Gregório de Matos, no Museu Tempostal e no Instituto Histórico e Geográfico, em Salvador.
A exposição que marca a reabertura do acervo do MAB, o primeiro museu da Bahia, permanece em cartaz até 1º de dezembro de 2024.
*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal | [email protected]
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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