MUITO
Uma doce semana
Por Evanilton Gonçalves*
Viver no Brasil é viver atribulado. Para alguns, eu sei. Para alguns muitos, tenho mais certeza. Mas só reclamar não resolve, não é? Então pensei comigo: o que fazer para desgrudar minhas mãos de cima de minha cabeça? Sei que a angústia nos consome quando temos uma perspectiva dúbia dos nossos desejos, quando o futuro se deixa entrever nebuloso e quando o presente é uma esteira que nos empurra para um passado do qual tentamos escapar. A solução: temos que gastar energia para nos mover em direção ao que buscamos, ao que queremos. Sabemos ou deveríamos saber.
Nessa semana, queria algo que me parecia impossível: uma harmonia interior que tem escapado de mim. Como se, no meio do fogo cruzado, fosse possível esticar uma rede e apreciar um bom livro (eu faço isso). Qualquer possibilidade de prazer tem me levado a carregar uma culpa estranha pelas desgraças que assolam o país. Olho para os conflitos na área da Saúde, por exemplo, que resolvi chamar de “Médicos contra médicos” e penso: você entra num consultório buscando solução para problemas do corpo e pode sair com a alma abalada. A sensação que eu tenho é que o Brasil me oferece um cardápio diário: com o que você quer sofrer hoje, senhor?
Mas, independentemente das circunstâncias, temos direito a ser felizes, não é verdade?
Resolvi me imaginar buscando uma cartomante na internet, algo totalmente distante do meu jeito de ser. Falei mentindo para mim: moça, por favor, me diga aí como vai ser minha semana. Todo dia o futuro se desenha cada vez pior. Não aguento mais o amargor desse país. E, para minha surpresa, do outro lado da tela imaginária, ela me disse serena: você terá uma doce semana. A possibilidade imaginada me tocou de um jeito que transbordou para a realidade e então não permiti ouvir mais uma palavra sequer, com medo justamente de algum porém fictício, encerrei a adivinhação (dentro de minha cabeça) e me agarrei a essa nova dimensão de minha vida.
No primeiro dia da semana, o notebook de minha companheira quebrou. Encaramos as moedas que juntamos como reserva de emergência, como aprendemos com a Nath Finanças, e levamos para o conserto. Quatro dias depois, voltou com o mesmo defeito. Ah, essa maravilhosa vida de home office. No mesmo dia, o banco me cobrou uma tarifa indevida. Liguei, conversei com mil robôs e não resolvi o problema. No meio da tarde, uma dor de dente me ameaçava. Oxe, do que tô reclamando? Basta olhar ao redor para ver o mundo de gente que está em apuros pela letalidade que é viver nesse país.
Na sexta, após o expediente de trabalho, resolvi escutar o álbum Sangue Negro, do pianista Amaro Freitas. Foi bom. Senti alguma paz. Pensei, afinal, que a semana estava chegando ao fim e que a cartomante imaginária tinha falhado. Até que eu, que tenho fugido das piores notícias, na tentativa de manter alguma saúde mental, pesquei no ar uma repetição inusitada da TV: leite condensado. Leite condensado. Leite condensado. Tá vendo? Olhei incrédulo para a TV tendo que aceitar a adivinhação. A vida pode ser doce, mesmo no Brasil.
*Evanilton Gonçalves é autor de Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S)
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes