Menu
Pesquisa
Pesquisa
Busca interna do iBahia
HOME > MUITO
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

MUITO

Uma história do Maciel: a saga de Dona Morena

Dona Morena, que completa 103 anos de idade no próximo dia 15, vivenciou a malandragem do antigo Maciel

Por Gilson Jorge

09/02/2025 - 7:00 h
Dona Morena
Dona Morena -

Na noite de 21 de dezembro de 2024, um sábado, o olhar quase sempre sereno de Dona Morena se tornou pura angústia. Enquanto os clientes do Bar do Fua, como era conhecido o seu falecido marido, se divertiam ao som de uma banda, um policial à paisana, aparentemente embriagado, cumpriu suas antigas ameaças de atacar o estabelecimento, um bar LGBTQIA+ desde 2019.

O homem avançou armado sobre um dos músicos, agarrou-lhe a camisa à altura do peito e disparou o revólver por baixo do queixo da vítima. O artista conseguiu inclinar a cabeça para trás a tempo de se esquivar e o projétil atingiu apenas a aba do seu boné. Por muito pouco, o bar fundado por um espanhol em 1950, localizado na esquina da Rua Frei Vicente com a Rua João de Deus, não via uma tragédia.

"Eu passei mal, quase morri na hora. Com medo que ele fizesse algo com minha filha, com o rapaz. Eu estava aqui sentada", conta a comerciante, apontando para uma cadeira e um isopor na quina do bar, onde Dona Morena vende cerveja em lata aos transeuntes. "Eu não gosto de ficar dentro do bar, nunca gostei", diz ela, que se considera pioneira na venda de churrasquinho na Bahia, nos tempos do Bar Galícia, nome dado pelo seu finado marido, torcedor fanático do azulino.

Dona Morena, que completa 103 anos de idade no próximo dia 15, vivenciou a malandragem do antigo Maciel – como se chamava a região, Pelourinho era apenas o largo – mas não acreditava que a violência bruta pudesse, a essas alturas, ameaçar o seu estabelecimento. Menos ainda que a violência viesse por parte de um agente da lei.

No coração do Maciel, o Bar Galícia acompanhou as transformações do Centro Histórico. Com a expansão urbana de Salvador, a elite branca que ocupava os casarões foi se mudando para outros bairros e deixando espaço para pessoas pobres que iam se chegando.

Casada com Fua, Dona Morena passou a fazer comida para o bar quando o Galícia ainda era do espanhol, que vendeu o bar para Fua, com pagamento dividido em três vezes. E tinha como parte da clientela os fora-da-lei que moravam na região. "Aqui tinha muito ladrão naquela época, agora não tem mais. Mas eram clientes, a gente servia", lembra a comerciante. "Eles pagavam direitinho e uns ainda me davam dinheiro. Também, quando eles tinham fome e não podiam pagar, eu dava comida", completa Dona Morena, ressaltando que todo mundo se conhecia, as mães dos ladrões todas se davam com ela.

Há cerca de 60 anos, quando ainda não era proprietária do boteco, junto com Fua, Dona Morena ganhava dinheiro costurando e vendendo churrasco e amendoim torrado na rua. Um dia, ela abrigou em sua casa de então, o casarão número 10 da Rua Frei Vicente, um pré-adolescente que apareceu no bairro fugido de casa. Um menino negro chamado Antônio, que cresceria na balbúrdia do Centro Histórico e, muitos anos depois, na efervescente década de 1980, ficaria conhecido como o criador do samba-reggae. Pois é. Neguinho do Samba, no início da ditadura militar, foi um dos 10 integrantes do pequeno exército de garotos que saíam pelo Centro vendendo amendoim para Dona Morena.

"Ele viajou comigo para Feira de Santana para vender churrasco na micareta. Mas ele não gostava de vender, queria ficar na rua", lembra a comerciante.

Em 1976, era filmado no Centro Histórico o filme Dona Flor e seus dois maridos, baseado na obra de Jorge Amado, e José Wilker descia em direção ao largo nu, ao lado de Sônia Braga e Mauro Mendonça. Nesse mesmo ano, em combate à ditadura, era aberta na Rua João de Deus, bem em frente ao Bar Galícia, a sede do jornal alternativo Boca do Inferno, projeto do jornalista João Santana Filho, que depois se tornaria o famoso marqueteiro político Patinhas.

O jornal ficava ao lado dos bregas que marcaram o Maciel até os anos 90, quando houve a grande reforma do Centro Histórico, os prostíbulos foram fechados e deram lugar a negócios voltados para a classe média e os turistas.

Um dos leitores do jornal e frequentador da boemia no Maciel dos anos 70, o cineasta Antônio Olavo, eventualmente passava pelo Bar Galícia para tomar um café. "Eu conhecia Fua de fama e tinha muito respeito por ele", conta Olavo, à época um estudante de geologia que revendia o Boca do Inferno e ganhava uma comissão.

Em outubro de 1976, quando foi pegar exemplares da quarta edição do jornal, que era mensal, Olavo encontrou a sede fechada. "Fui ao bar e Fua me contou que de madrugada a Polícia Federal destruiu tudo", lembra o cineasta.

Em 1991, quando começaram as obras de revitalização do casario no Maciel/Pelourinho, durante o governo de Antônio Carlos Magalhães, parte dos operários ia almoçar no Bar do Fua. "Tinha que botar duas panelas de feijão de noite para dar pra esses homens tudo", lembra a comerciante.

Dona Morena tem duas idades e dois nomes. Morena é o apelido que ganhou na adolescência. Uma homenagem à senhora que a hospedaria numa pensão no Taboão e que se chamava Morena. Nascida em Palmeiras, na Chapada Diamantina, a jovem Helena veio para Salvador aos 14 anos, escondida na carroceria de um caminhão que partiria para a capital às seis da manhã.

O registro civil da pequena imigrante feito em Salvador, quase 15 anos após o seu nascimento, está em nome de Helena Soares de Oliveira e aponta 88 anos de idade. "Naquele tempo, não tinha essa obrigação de registrar quando nascesse", conta a filha Tatiane Dórea, que assumiu a administração do bar em 2009, quando Fua adoeceu.

Pagode

Quando assumiu o negócio, o bar era um reduto do pagode. Com o tempo, Tatiane percebeu que uma parte da clientela era GLS, como se dizia na época. "Era uma clientela que consumia muito e que não dava trabalho, não quebrava coisas", relata a comerciante, que decidiu adotar a marca da diversidade e estendeu na fachada do imóvel bandeiras do arco-íris.

Parte da decoração interna foi mantida como nos tempos de antigamente, inclusive o galo desenhado no balcão. O Galo do Maciel, como era conhecido Luiz Dórea. "Ele ganhou esse apelido porque tinha muita mulher", conta a resignada Dona Morena. Mas há uma outra versão, de que o apelido também se refere às brigas em que o comerciante se metia. Além disso, Fua não permitia confusões na área de seu estabelecimento. Ali, só ele cantava de galo.

Apesar de ter aceitado os constantes adultérios por parte do marido, a comerciante de vez em quando entornava o caldo com as amantes. "Uma vez, eu peguei ele com a mulher de um polícia. Eu peguei ela e bati. O polícia queria descontar em Fua", lembra.

Com seu bar, Fua era uma referência na comunidade em que uma das grandes atividades econômicas do Maciel era a prostituição. As ruas João de Deus (Maciel de Cima), Frei Vicente (Maciel de Baixo) e das Laranjeiras (atual Alaíde do Feijão), eram repletas de bregas, bordéis e quartos alugados para o sexo. Em meio a tanta gente batendo às portas em busca de prazer, moradores recorriam a uma placa na fachada onde se lia: Família.

Futebol

Ex-militar e lutador de boxe, Fua conviveu por muito tempo com Clarindo Silva, com quem compartilhava o gosto pelo futebol. Ambos costumavam pegar o bonde para assistir os seus times, Galícia e Botafogo de Salvador, jogar no Campo da Graça.

"Eu cheguei aqui no Bazar Americano (negócio que precedeu a Cantina da Lua) aos 12 anos e ouvi a fama de Fua, de brigão, que era caceteiro e tinha marcas de balas no corpo. Eu não sei, não vi", descreve Clarindo.

O empresário e símbolo do Centro Histórico afirma não saber o quanto há de verdade e de folclore em torno da imagem de Fua, mas ratifica que o homem era "tirado a valente". O Galo do Maciel tinha uma liderança inconteste. Durante anos, no período de Carnaval, a comunidade organizava um desfile do comerciante em carro aberto pelas ruas locais.

Mas Clarindo aponta outra face de Fua, o interesse pela conservação do patrimônio do Centro Histórico, a grande luta da vida do dono da Cantina da Lua. No período em que o Maciel/Pelourinho era marginalizado, e com os antigos casarões que abrigavam uma só família transformados em unidades plurifamiliares, Clarindo saiu batendo de porta em porta reivindicando apoio e encontrou um Fua disposto a colaborar.

"A sociedade via o Centro Histórico como um lugar de prostituição e roubos. Mas eu via diferente. Tinha isso, mas tinha gente séria, tinha escolas. Liga-se a cor da pele à marginalidade, mas na Casa das Sete Mortes, na Rua do Paço, havia 38 famílias", aponta Clarindo. A Casa das Sete Mortes é uma mansão do século 17 onde um padre, dois escravos e um liberto foram assassinados em 1755, um crime de autoria desconhecida. Há versões diferentes para outros três homicídios cometidos no imóvel, que ganhou fama de mal assombrado, e foi tombado pelo Iphan em 1943.

Raízes locais

A identificação do antigo Bar Galícia, atual Bar do Fua, com a diversidade sexual tem suas raízes locais. Antes da chamada revitalização dos anos 1990, o Maciel/Pelourinho foi, durante décadas, um abrigo para travestis de outros bairros soteropolitanos rejeitados por suas famílias.

Na comunidade em que conviviam trabalhadores formais, ladrões e prostitutas, ter uma sexualidade explicitamente divergente, antes que se falasse em identidade de gênero, não era um problema na vizinhança mais marginalizada do Centro de Salvador.

"Travesti naquela época era o quê? Um homem que botava uma roupa de mulher, uns limões, e ia", define o técnico administrativo Joselito Bispo dos Santos, o Quinho, que chegou ao Maciel em 1969, com seis anos de idade, vindo com a família, que morava antes na Rua do Julião, Comércio. "As famílias deles não os queriam desse jeito. Mas aqui não tinha discriminação. Era normal.”

Quinho lembra de algumas das travestis que circularam pelo Maciel. Como Floriano, que sempre carregava uma faca dentro da sua bolsa. "Era uma faca de sete tostões, dessas de descascar laranjas, que fazia uma punctura em partes perigosas do corpo e o sangue não aparecia", lembra Quinho.

Pelo seu relato, Floriano chegou a matar, na Baixa dos Sapateiros e no Comércio, indivíduos que o agrediam em razão de ser travesti. "Eram pessoas de fora. Gente que queria deixá-lo acuado. Aí ele partia pra cima. O pessoal daqui tinha respeito por ele", conta o morador.

Houve outros travestis notórios da área. Como Carlete, um ex-marinheiro, que por anos alugou quartos de sua casa para outras travestis e depois passou a trabalhar como ambulante. "Ele também não comia reggae", destaca o morador. Havia ainda Martinha, uma travesti que se destacava por seus olhos verdes, que chegou a morar na Europa.

Quinho considera que o Maciel era evitado como lugar de passeio a partir de uma fama injusta, que só começaria a mudar com o show de Paul Simon com o Olodum em Nova York, em 1991. Cabe notar que o músico gringo apareceu antes no bairro, procurando por Neguinho do Samba, sem aparatos de segurança.

"Se você pegar a maioria das pessoas que moraram aqui, todo mundo trabalhava, todo mundo se formou", afirma, ressaltando que, assim como seu próprio núcleo familiar, chegava gente de fora para morar nos espaçosos casarões do Centro Histórico.

"Quem vinha de outros lugares era abraçado. A gente falava: ‘Oh, minha mãe, esse é um amigo meu’. A pessoa passava a morar na casa", conta Quinho.

Depois de anos de padecimento em razão de problemas cardíacos, Fua morreu em 2020. Sem as brigas e confusões que ficaram no passado do Maciel, Dona Morena e Tatiane esperam ter paz para seguir esse novo momento no Bar do Fua, um ponto que abriga a comunidade LGBTQIA+. O grande objetivo agora de mãe e filha, que cuidam do legado de Fua, é que o local não seja ameaçado. Menos ainda por um policial.

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Cidadão Repórter

Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro

ACESSAR

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
Dona Morena
Play

Filme sobre o artista visual e cineasta Chico Liberato estreia

Dona Morena
Play

A vitrine dos festivais de música para artistas baianos

Dona Morena
Play

Estreia do A TARDE Talks dinamiza produções do A TARDE Play

Dona Morena
Play

Rir ou não rir: como a pandemia afeta artistas que trabalham com o humor

x

Assine nossa newsletter e receba conteúdos especiais sobre a Bahia

Selecione abaixo temas de sua preferência e receba notificações personalizadas

BAHIA BBB 2024 CULTURA ECONOMIA ENTRETENIMENTO ESPORTES MUNICÍPIOS MÚSICA O CARRASCO POLÍTICA