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CRÔNICA

Uma noite luminosa

Um dia desses saí da condição de eremita e pus os pés na rua. Às vezes, a vida é sol de rachar; outras, chuva

Por Evanilton Gonçalves*

06/08/2023 - 13:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Uma noite luminosa
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Um dia desses saí da condição de eremita e pus os pés na rua. Às vezes, a vida é sol de rachar; outras, chuva torrencial. Agora, tempo bonito. Era fim de tarde, ocasião em que o céu principia seu modo expressivo de mover as cores. Queria encontrar um velho amigo que, pra minha alegria, também queria me encontrar no bairro do Rio Vermelho.

Vejo meu amigo, aceno pra ele. O mundo é vasto e as pessoas muitas. Seus olhos se esforçam e se perdem entre o sobe e desce da maré de gente, de carros indo e vindo. Ele está acompanhado de um amigo que não me conhece, mas que identifica a vibração do meu aceno. Aponta pra mim. Existir é assim, se perder e se encontrar. Abraço meu amigo, conheço seu amigo. Gostamos de ler, escrever. Ali paramos pra trocar livros, ouvir música.

Tínhamos combinado de curtir a apresentação musical do Jam Delas. Sentamos numa mesa de canto, pedimos. A brisa tornava o diálogo suave. O ambiente se mostrando agradável, acolhedor. Enquanto isso, o coletivo de mulheres instrumentistas de Salvador ia chegando, se juntando, organizando os detalhes do show. Nisso o céu começava a querer esconder o mar. Também a vida é reparar nos mistérios da vida.

Pois é, meu velho, eu disse, retomando a conversa: Elas se juntaram pra fortalecer o protagonismo das mulheres na cena da música instrumental da cidade. Teve quem dissesse que não tinha mulher no jazz aqui, é mole? Tipo os “especialistas” da Rolling Stone surpresos com um prato e um talher como instrumento, né? Imagino Dona Edith do Prato encarando essa galera “entendida” lá do outro plano. Rimos em trio.

A conversa seguiu com palavras seculares que falam do arranjo do agora. Até que o amigo do meu amigo perguntou cadê a luz. Espanto. Observei melhor o ambiente. Quem, em algum momento da vida, nunca disse não é possível pra um acontecimento inegavelmente concretizado? O estabelecimento estava sem energia. As integrantes da banda explicavam aos presentes, de mesa em mesa, o ocorrido: uma falha na rede elétrica da rua, os agentes responsáveis estavam trabalhando nisso. Na minha cabeça, medo do azar. Olha ali, o pé frio. No coração, tímida esperança.

Daniela Nátali, musicista que admiro, e por quem fiquei sabendo do evento, de repente, começa a tocar sua clarineta. É inconfundível e maravilhoso seu modo de tocar. O princípio de escuridão não intimida as artistas. O poema “o não é a palavra mais selvagem”, de Mariana Paim, me vem como memória involuntária. Aqueles versos que falam sobre negar o que é imposto e se impor. Na música executada, a presença forte de Tania Maria, cujo talento inquestionável é pouco conhecido aqui. Outras integrantes pegam seus instrumentos. Aí está, pensei: a vida também é improvisação.

A sonoridade se eleva, busca o infinito. Chamamento sobrenatural. Uma santidade musical parece repousar naquelas notas. Então a magia se fez. A energia voltou. As luzes acenderam. O público gritou e aplaudiu com empolgação.

Meu amigo me diz: Elas tocam muito! Não há surpresa em sua voz, mas encantamento. O outro concorda, tamborilando na mesa. Veja, continua meu amigo: Nada parecido com aquelas apresentações em que o ego transforma o palco em ringue, né? Concordo.

Levanto e me aproximo do palco. As artistas em harmonia fazem a música ressoar com intensidade e emoção. Ritmo dançante. Nesse movimento bem-sucedido, a interpretação dos acordes espalha a mensagem decifrada: seja você em plenitude.

*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)

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