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CRÔNICA

Uma outra conversa com o barbeiro

Confira a Crônica deste domingo

Por Evanilton Gonçalves*

05/05/2024 - 5:32 h | Atualizada em 05/05/2024 - 14:42
Imagem ilustrativa da imagem Uma outra conversa com o barbeiro

Estamos sob o coreto do Dois de Julho. As placas agonizantes no teto pretendem barrar o ponto mais quente do dia. A estrutura precária sustenta muitas vidas. Pelo bairro, pessoas diversas se movimentam. Outras, no chão, fazem gestos de alerta no horário do almoço. Enquanto aguardo a minha vez de cortar o cabelo, tento imaginar o que se passa na cabeça e no coração daquelas pessoas que estão paradas no tempo, ou têm pressa, ou andam devagar. Eu mesmo tentava investigar o que se passava em minha cabeça e em meu coração no caminho até o coreto. Então lembrei das sábias palavras do meu amigo Antonio Marcos: “Às vezes a gente acha que a coisa é enigmática e na verdade é misteriosa, não há solução no sentido de ter chave ou decifrar nada, somos só nós atônitos diante do mistério do coração da outra pessoa e do nosso próprio coração”.

Penso na destreza do barbeiro em sua ação profissional. Há também nele um vasto mundo por conhecer. Como chegou nessa profissão? Como fazer bem aquilo a que nos propomos fazer? Somos formados igualmente daquilo que não fomos. O barbeiro me conta de seu curso profissional de barbeiro (que não serviu de nada, como sentencia). Aprendeu mesmo com os meninos do bairro que também cortam cabelo e lhe passaram as manhas: você faz assim, assim e assim, irmão. Não tem erro. Ele compreendeu que era possível, seguiu na atividade e se desenvolveu.

Faz anos que marca ponto no coreto e tem uma clientela fiel. Ele também me conta de seu desejo não realizado em uma outra profissão. Como uma espécie de filme, projeta para mim a imagem de um profissional distinto trajando roupas sofisticadas. Quem nunca projetou uma vida não vivida? Ele realmente parece conhecer todo o bairro. Embora, descubro em nosso diálogo, ele não mora no bairro. Como muitos trabalhadores do centro da cidade, precisa enfrentar uma longa jornada entre diferentes transportes públicos para realizar o seu trabalho.

Como sempre, faz calor sob o coreto. O barbeiro dá uma pausa para beber água. Estende a garrafa para mim. Agradeço, mas recuso. Ele lembra que é importante tratar bem o cliente. De repente, dois fatos inusitados se sucedem. Uma turista nos olha com curiosidade. Ela acena, sorri e dá a entender que quer autorização para tirar uma foto nossa, do barbeiro cortando meu cabelo. Dizemos que sim, que tudo bem. Essa é até educada, diz o barbeiro.

Pouco tempo depois, um casal de alemães, uma espécie de torre gêmeas dourada, se aproxima e a mulher vai direto ao assunto a partir de um inglês que pesa muitas toneladas. A mulher de cabelo loiro faz gestos de tesoura com os dedos, simulando cortar as pontas do próprio cabelo. Parece impaciente. Do turbilhão de sons pesados, ela repete: “Cut hair”, “Cut hair”. Ao lado dela, um homem de braço engessado e mudo. O barbeiro diz: desculpe, senhora, não entendo. “No inglish”.

Por fim, ela forma o número dez com as duas mãos estendidas e pronuncia uma palavra conhecida para nós: “deiz reaish”. A proposta o indigna. Não é o cliente que dá o preço pelo seu serviço. Responde: no, no, no. Aponta para um salão que fica próximo do coreto e se chama Mademoiselle, ainda que não haja qualquer francês trabalhando lá. O casal caminha em direção ao salão. Refletimos sobre a petulância da gringa. A irreverência da situação.

Os dois episódios tão recentes já foram superados pelo tempo. O barbeiro volta a cortar meu cabelo com diligência. A conversa sempre cordial e cheia de humor me leva de volta à interação com meus amigos de adolescência no bairro periférico de São Caetano, em uma época em que eu não tinha noção do que o mundo reservava para o meu eu adulto. Eu simplesmente existia. Vivia. A vida era apenas abrir os olhos. Agora não, agora é diferente. É preciso manejar a curiosidade como parte de uma aposta. Escolha e renúncia. Busco agarrar o pedacinho de vida a que tenho acesso e que faz sentido para mim.

Levanto da cadeira de cabelo cortado. Dessa vez, não me olho no espelho, mas sei que volto a me mover pelo mundo de um jeito diferente. A mesma pessoa. Outra pessoa. Um pensamento intempestivo: Akai Ito, ou “Fio vermelho do destino”, algo que me parece agora uma grande bobagem em meio às urgências da trama ordinária de minha vida, mas é uma lenda oriental que ainda me fascina.

*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)

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