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EXPOSIÇÃO

Uma paisagem jazz: a exposição Língua vegetal

Considerações sobre a exposição da artista visual Lia Cunha

Por Priscila Miraz*

11/09/2023 - 11:00 h
O livro Etnografia do barranco (Duna / Tiragem, 2023), com fotografias, desenhos em carvão e textos
O livro Etnografia do barranco (Duna / Tiragem, 2023), com fotografias, desenhos em carvão e textos -

Donna Haraway diz no início de Quando as espécies se encontram: “Eu sou uma criatura da lama, não do céu”. Dénètem Touam Bona, em Cosmopoéticas do refúgio, afirma: “Toda paisagem é rosto”. Essas frases ficaram comigo enquanto percorria Língua vegetal, exposição individual de Lia Cunha, com curadoria de Joyce Delfim e Lia Krucken, que aconteceu entre 14 e 28 de agosto n’A Galeria, no Ativa Atelier Livre.

Em um dos cantos do espaço expositivo estava o livro Etnografia do barranco, com suas capas de barro, com seu peso e temperatura de barro. Ao chegar nesse ponto da exposição, era possível se sentar nas almofadas rosa com serigrafia de uma grande folha em azul, ao lado do livro, suspenso em um suporte na altura de uma mesa de cabeceira, e ficar ali um tempo com esse livro, suas fotografias e textos.

E alternado os olhos entre ele e o entorno da exposição, nos encontrávamos imersos na proposta de “seres-em-encontro”, ou ainda de “figuras-fazedoras-de-sentidos”, como quer Haraway, ou no “pluriveso ondulante”, se vamos com Bona.

De qualquer forma, entramos em contato direto com as habilidades do barro em manter as coisas em contato, criar passagens para o vivo, porque ser é sempre devir com muitos.

As fotografias do livro se expandem em lambe-lambes enormes nas paredes, mata em tramas de folhas de diversos formatos, em que adivinhamos os tons de verde, a quentura do estar lá, ouvimos o barulho da paisagem viva, que se replica em uma cianotipia menor, Trocar de pele com a mata, sobreposta à grande imagem e tendo no canto inferior esquerdo um corpo humano inserido sob a vegetação espessa. E ainda nas plantas, elas mesmas ali, em kokedama. Uma delas, avermelhada, posta sobre cerâmica, com pêndulo de botões de flores por abrir. Ao seu lado, uma serigrafia: uma pessoa com a boca aberta, com a língua brotando em rama que se eleva, Oscilações: corpo-território.

Das muitas conversas estabelecidas por Lia em sua pesquisa poética, está Ailton Krenak, na série Conversa selvagem, uma delas com a antropóloga Nastassja Martin, intitulada Os elementos estão falando. Krenak diz da capacidade das plantas de furar as paredes, os muros da cidade de cimento e configurar outros lugares, com seu tempo de crescimento e de força, agenciando as estruturas existentes para subvertê-las para além delas mesmas, criando espaços, reconfigurando territórios.

A resiliência e força desse crescimento lento e contínuo brotando da língua, propõe o rompimento do cimento duro de uma forma muito específica e situada no tempo, que pensa conceitos como cultura, civilização em contraposição à natureza de maneira hierárquica, em que tudo que não é humano, está posto como recurso a ser explorado pelo humano em seu excepcionalismo dado e sustentado pela filosofia ocidental.

O broto que rompe o cimento e expande a língua, no entanto, afirma que esse tudo, é na verdade todos, com agenciamentos e formas de vida próprias, das quais somos codependentes para existirmos.

Lia iniciou essa pesquisa em antropologia especulativa em seu mestrado no Programa de pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes (Ufba), em tempos de isolamento social pela pandemia de Covid-19. Nesse momento de nossa história muito recente, a relação predatória com o planeta, assim como a racionalidade que estrutura essa relação foi posta em questão diante das catástrofes que promove há séculos.

Estamos em tempos de nos conectarmos com o mundo ouvindo outras propostas ancestrais de se entender ser vivo com a terra. É um tempo de reimaginar que não pode ser restrito ao que chamamos humanidade, mas que deve estar em oposição ao excepcionalismo humano para ser possível seguirmos com o “mundo mais que humano”, termo cunhado pelo ecologista e filósofo David Abram na busca por revogar a tendência humana de nos separar de todas as outras formas de vida.

As perguntas que Lia colocou nesse momento – “Como experimentar o corpo como um território de encontro? Como seria conduzir um processo artístico colaborativo com quem estamos habituadas a chamar de natureza?” – foram estabelecidas tendo como ponto de partida o entendimento de que o território e as vidas múltiplas estão em perpétuo movimento de coexistência.

Existe no conjunto das obras apresentadas um ir-e-vir do micro ao macrocosmo que vivenciamos no movimento risomático que criamos entre a casa, a cidade e o fora dela, movimentos/respirações que foram muito bem expressos pela curadoria no espaço da galeria.

Foram explorados os cantos das paredes em um diálogo de fragmentos entre objetos de cerâmica como bule e xícara, entre o canto de almofadas para leitura de um livro que tem a terra como tema e matéria, que é papel e árvore, espaço aberto e íntimo que estabelece com outro canto à sua frente uma fala escrita por um fio invisível de conexões: um monte de terra que se esparrama preenchendo o canto por onde é proposto que iniciemos o percurso de visita, e sobre esse barranco o micro-poema-objeto-pirofílico Lamber o sol(o), uma caixa de fósforos feita de papel-semente, em que se lê “Lamber o sol/o solo”. Uma caixa de fósforo “aguável” em poema, um ritmo que necessariamente considera os sons antes das palavras, porque, como afirma o texto curatorial, “a língua vegetal não se pretende um tipo de linguagem vegetal. A língua vegetal transpõe a divisão organismo/linguagem (ou natureza/cultura). Ela é contra a superioridade do verbo e do logos. A língua vegetal lambe o chão, fala às avessas, germina e vira folha”.

Aqui eu volto a Bona, ao texto que ecoou em mim enquanto andava pela exposição: “Mas como alguém pode crer que a natureza não tem voz e não tem o que dizer, quando a primeira música é a da terra! É em função da rapsódia dos ventos e das águas, dos movimentos do solo, dos acidentes de relevo, da umidade e da seca, que são modulados os assobios, os estalidos, os gritos, os grunhidos, os bzzz da grande orquestra dos animais. E o conjunto dessa biofonia forma uma paisagem jazz. Aqui, nenhuma partitura escrita de antemão, antes um improviso, uma variação contínua, a do próprio vivo. A vida é artista, de modo que as verdades só fazem sentido se restituídas a esse movimento perpétuo de criação”.

É logo mais que Bona diz que toda paisagem é rosto, porque os traços de um território remetem ao da partitura que seus habitantes humanos e não humanos tocam e retocam para a criação de uma esfera de existência cosmopoética. O improviso musical aparece em Lia todo o tempo, mas diretamente, de maneira lúdica, com o lambe Jam, que foi colado do lado de fora da galeria, na varanda do Ativa, ao lado de uma árvore. É uma fotografia de paisagem em que temos no primeiro plano um microfone com um cartaz: “Jam com as cigarras do barranco. Toda quinta às 17h (microfone aberto)”.

É ainda interessante notar o uso da cianotipia para as imagens das plantas. Lembrei do trabalho da inglesa Ana Atkins, Fotografias de algas britânicas (1843), considerado pioneiro nas publicações de livros fotográficos. Atkins foi apaixonada por botânica e fez parte da Sociedade Botânica de Londres, uma exceção no mundo vitoriano em que associações científicas não admitiam mulheres entre seus membros.

O uso da cianotipia então desenvolvida no período de múltiplas criações de novos processos fotográficos, segue em Atkins justamente o movimento cientificista de seu século, criando uma taxonomia das algas, um catálogo a mais do mundo natural. No caso das cianotipias de Lia, vemos folhas e raízes advindas dos encontros desses corpos que resultou no desejo da imagem. Uma mesma tecnologia usada para criação de imagens que apenas superficialmente podem parecer a mesma, porque o caminho que as instrui é diverso.

O artista visual James Bridle propõe em suas pesquisas poéticas pensar sobre a agência das tecnologias somadas à equação humano e não-humano: “A tecnologia incorpora as ideias e metáforas da sua época, mas esses instrumentos podem ser convertidos para outros fins, assim como nós mesmos”.

A fotografia, tecnologia que foi fundamental para a racionalidade exploratória, é reimaginada, afirmando que o mundo mais que humano não é um jogo de palavras filosófico, mas é manifestação da nossa consciência e de nossas atitudes.

*Doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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