CRÔNICA
Uma suruba pós-estruturalista
Clara Cerqueira*
Por Clara Cerqueira*
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Uma sexta-feira dessas, ele me convidou para visitar seus amigos de infância, no mesmo condomínio onde todos foram criados. Eu declinei o convite. Primeiro, pela razão muito pouco pessoal, como tive que explicar posteriormente a meu querido companheiro, de que não gosto de ninguém e não estava disposta a socializar com um grupo de homens héteros.
Ele não ficou satisfeito, me acusou de não gostar apenas de seus amigos, o que tive que rebater com a triste verdade de que eu gosto apenas de alguns de meus amigos, de outros nem tanto, e saio apenas com os que gosto muito. Sou péssima, eu sei, me julguem, mas já sou velha e resolvi aceitar certas facetas de minha personalidade, antes de ter um treco no meio da rua por causa de minha implacável ansiedade social.
Segundo, eu entendi que era um encontro entre amigos, ninguém iria levar companheira, filho, nada, o que eu tinha para fazer lá? Dar uma de estraga prazeres e, por sinal, é exatamente o que eu teria sido, se tivesse cedido, e tenho certeza de que você vai concordar comigo, ou não.
O fato é que ele saiu por volta das 21h ou 22h, com nossos livros recém publicados e assinados debaixo do braço, dizendo que voltava daqui a pouco – levar os livros era a desculpa original. Dado seu histórico, porém, eu sabia que o “daqui a pouco” girava em torno das 7h da manhã e estava tudo bem. Fiz uma pipoca, escolhi um filme e fui viver minha vida de antissocial.
Assisti a uns três filmes indicados ao Oscar e capotei de sono às 3h da manhã, com uma mensagem de meu digníssimo dizendo que estaria em casa “daqui a pouco”. Como já disse, ainda era muito cedo para o “daqui a pouco”, então só aceitei e dormi. Às 7h da manhã, acordei com meu despertador de sempre e vi uma mensagem enviada às 5h e alguma coisa, em que ele declarava estar vivo. Fiz meu café, comecei a estudar o pós-estruturalismo para um artigo de uma matéria da universidade e me perdi nos meandros filosóficos e estéticos do movimento. Ele chegou às 9h da manhã, perguntando qual era a programação do sábado.
Juro que fiquei mais surpresa com a animação matinal do jovem insone do que qualquer outra coisa, e aproveitei para me inteirar das fofocas da extensa noitada. Nada. Ele me disse apenas que conversaram sobre assuntos pessoais e filosóficos. Tentei insistir, afinal eu estava estudando filosofia. Nada de nada. Foi quando comecei a ficar desconfiada. Como é que uma pessoa passa tantas horas fora de casa e não tem uma fofocazinha para me contar? Imperdoável. Do fundo de minha indignação, decidi que só poderia se tratar de uma coisa: sexo. Coloquei o moço contra a parede e perguntei de forma direta se ele estava em uma suruba hétera.
Ele achou muito engraçado e negou, mas a reação só me deixou mais convencida. Fomos à praia com uma amiga e contei a história. Ele continuou negando a história da suruba sem nenhum argumento plausível e minha amiga teve de concordar que minha versão tinha muito mais fundamento que a dele. O dia foi passando e ela só melhorava, enquanto a dele não saia do lugar.
Pois bem, minha narrativa prevaleceu e agora tenho um marido que teve todas as chances de ter uma vida sexual cheia de cor, mas preferiu uma suruba hétera, que só de pensar me dá nojinho. Fico me perguntando onde eu errei para passar por uma decepção dessas, talvez liberdade demais deixe as pessoas quadradas. Ele nega, mas parece resignado com a história que construí. De minha parte, teria ficado mais feliz com sua versão filosófica, mesmo que inverossímil, mas o que posso dizer? A verossimilhança não pertence ao “real” e, de vez em quando, quem ganha é a ficção.
*Escritora
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