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"Vamos ver jovens correndo atrás de seus sonhos", diz a pedagoga Elizangela Santos

Publicado domingo, 24 de outubro de 2021 às 06:00 h | Autor: Marcos Dias
Pegadoga e psicopedagoga Elizangela Santos fala sobre a disciplina Projeto de vida, que vai permitir mais maturidade e segurança para os estudantes escolherem a profissão
Pegadoga e psicopedagoga Elizangela Santos fala sobre a disciplina Projeto de vida, que vai permitir mais maturidade e segurança para os estudantes escolherem a profissão -

Escolher uma profissão não é algo simples. Pressões familiares, transformações aceleradas do mercado, novas profissões e até os efeitos da pandemia sobre o humor da juventude precisam ser levadas em consideração. Com o cronograma do Ministério da Educação que determinou para o próximo ano a implementação dos referenciais curriculares do Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415 de 16 de fevereiro de 2017) nas escolas públicas e privadas do país, a pegadoga e psicopedagoga Elizangela Santos, do Colégio Montessoriano de Salvador, acredita que a disciplina Projeto de vida, que será desenvolvida a partir do 1º ano do novo formato, vai permitir mais maturidade e segurança para os estudantes escolherem os rumos da vida adulta, além de minimizar a evasão escolar. "A possibilidade desse aluno estar muito mais preparado para o mundo do trabalho depois desses três anos, com certeza, é infinitamente maior do que o modelo atual do ensino médio”, diz Elizangela, que é especialista em gestão, coordenação e orientação educacional. Nesta entrevista, ela fala sobre caminhos profissionais, a realidade que vivencia numa instituição privada, protagonismo juvenil, a recepção da série Round 6 (Netflix) entre crianças e a responsabilidade das famílias em relação às redes sociais.

Como essa disciplina, Projeto de vida, será implementada?

Vai acontecer de forma gradativa, a partir de 2022 para as turmas do 1º ano, em 2023 para as turmas do 2º, e em 2024 para as turmas do 3º ano. O Projeto de vida está relacionado com a capacidade dos nossos estudantes refletirem sobre o que desejam, os seus sonhos, os objetivos para o futuro. Eles precisarão planejar o que farão a cada ano, aprendendo a se organizar, estabelecer metas e definir estratégias para atingi-las. O que vemos muito hoje em dia, nas maiores escolas principalmente, é um foco muito maior em preparar os jovens do ensino médio para o mercado de trabalho, para o vestibular, para o Enem. O Projeto de vida vem trazendo a possibilidade de o aluno ir fazendo seu planejamento junto com um professor para estabelecer suas metas de vida, independentemente do Enem ou do vestibular. Quantas vezes, como orientadora educacional, recebi alunos na minha sala dizendo que não querem fazer Enem, não querem vestibular. O projeto vem trazendo outra configuração: o que é que eu quero para a minha vida, o que é que me faz feliz?

Há outras justificativas para essa nova orientação?

A mudança também ocorre por conta da estagnação dos índices de desempenho dos estudantes brasileiros. Os índices não subiam. O ensino médio é a etapa da educação básica que tem as maiores taxas de abandono e reprovação, além do indicador distorção idade-série, aquela coisa: tenho 15 anos, deveria estar no 1º ano mas estou no 8º ano do fundamental. Então, essa distorção a partir de dois anos é muito grande. A ideia é dar significado ao ensino médio, o que os estudantes querem para a vida, e essas metas serão trabalhadas com os professores nos três anos do ensino médio.

Geralmente, já era um dilema para os jovens escolherem tão cedo um curso universitário ou a profissão. Por que essa antecipação para o 1º ano é produtiva?

No primeiro ano do ensino médio eles ainda não fazem essa escolha. O Projeto de vida tem três pilares: o pessoal, um trabalho de autoconhecimento em que eles têm que se reconhecer como sujeitos; o social, aí vêm as questões interpessoais; e o profissional, que é o mundo do trabalho. Nos 1º e 2º anos eles vão estar trabalhando tudo isso, e apenas no terceiro essa escolha acontece efetivamente. Com o ensino médio padrão que temos hoje não existia esse trabalho anterior, só acontecia no 3º ano. Então, se eu consigo trabalhar essas dimensões, vou estar mais maduro e seguro das minhas escolhas.

Mas eles não devem escolher desde o primeiro ano qual itinerário que querem fazer? [De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o currículo do Novo Ensino Médio será composto pela formação geral básica (60%), articulada a itinerários formativos (40%): linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas, e formação técnica e profissional].

O itinerário não tem diretamente um foco com o futuro. O estudante pode escolher um itinerário no 1º ano do ensino médio e fazer a troca desse itinerário no ano seguinte. É o momento da experimentação, de começar a se identificar com uma área de interesse. De repente, ele acha que é da área de exatas e percebe no itinerário que não tem muita vocação; ele volta para outra área, para empreendedorismo, por exemplo. Nem sempre o aluno tem como foco o vestibular.

Em relação a esses estudantes que não querem fazer um curso superior, isso se deve a quê?

Acho que cada pessoa tem uma aptidão para uma determinada área. O que vejo muito é que muitas famílias e a sociedade estão sempre direcionando o aluno para a universidade. A gente vem de uma época em que para você ser alguém na vida, precisava estar numa universidade. Mas isso já caiu por terra, há muitos profissionais que são formados, especializados, com doutorado e pós-doutorado e que estão fora do mercado de trabalho. A família muitas vezes projeta no filho aquele desejo de ser médico ou engenheiro e, às vezes, termina encaminhando erroneamente aquele estudante para fazer algo que não é o seu desejo, que não é o que vai lhe fazer feliz, isso confunde a cabeça deles e algumas vezes acaba direcionando-os para escolhas que não são as suas efetivamente. O trabalho com o Projeto de vida é como se você estivesse trabalhando com o aluno a sua aptidão, para trazer o aluno para o protagonismo. Precisamos ter um olhar muito apurado para o perfil do profissional que vai aplicar esse conteúdo porque ele vai atuar como mediador, estimulando o aluno a assumir o protagonismo de suas escolhas.

Uma vez que escolas públicas e privadas têm realidades tão diferentes, e a pandemia agudizou isso, é possível que o Projeto de vida seja trabalhado de forma diferente em instituições em que estudantes precisam trabalhar mais cedo?

Não acho, sinceramente. Acho que o que pode fazer diferença nesse Novo Ensino Médio e, especificamente com o Projeto de vida, é o trabalho que vai ser desenvolvido pelo profissional. Se o trabalho for bem desenvolvido e o aluno estiver engajado – porque você pode estar na melhor escola de Salvador, mas se o aluno não fizer sua parte, não vai para lugar nenhum. Às vezes, as pessoas gostam muito de apontar o dedo para a instituição e nem sempre é assim. Se os profissionais que estiverem envolvidos nesse processo fizerem um trabalho de qualidade e se os alunos estiverem engajados nesse protagonismo, com direcionamento dos professores e apoio da família, vamos ver jovens correndo atrás dos seus sonhos, independentemente de universidade, Enem, vestibular. Hoje muitos dizem: ‘Por que vou estudar isso, isso não vai me servir para nada’. A diferença é que agora, além das disciplinas básicas, vão estudar muitas coisas que têm prazer. Vivo numa área que tem alunos com rendimento baixo em toda vida escolar mas quando chegam na universidade e escolhem o que querem, às vezes até um curso técnico que têm interesse, ficam entre os melhores porque começaram a estudar algo que dá significado para a vida.

Você disse que, algumas vezes, os estudantes são levados a escolhas que são projeções dos pais. O que isso provoca?

Isso é muito comum, acredito que se você não viveu isso, teve colegas que viveram. Eu vivi isso, o sonho do meu pai era que eu fosse advogada. Fui estudar e minha opção foi pedagogia. Sou educadora por desejo. Pessoas acham que pedagogia seria uma segunda opção, você tentou uma, não conseguiu e caiu na segunda. Mas a minha opção foi a primeira. Se eu fosse seguir o que meu pai queria, não estaria tão feliz como estou hoje. Sou muito feliz, apesar de todas as dificuldades que conhecemos da desvalorização da educação, mas faço o que me faz feliz, isso é muito importante. A família ainda projeta, às vezes, sonhos frustrados nos filhos, e às vezes isso não se concretiza porque não faz os filhos felizes. Para que ter filhos no mercado de trabalho infelizes, que vão estar lá exaustos, de repente saindo de uma área para outra porque não se identificam, ou já saem dos cursos depois de dois ou três semestres? Porque foram fazer para agradar a família e esse não é o caminho.

Como foi sua experiência com o retorno às aulas presenciais?

Os estudantes voltaram da pandemia extremamente mexidos, e não só os do ensino médio. Os alunos que estão concluindo o 3º ano, quando você junta as questões emocionais da pandemia com a cobrança dos pais pelo vestibular e a cobrança deles mesmos para o Enem, que ocorre agora em novembro, tudo isso tomou uma proporção maior. Retomamos para o presencial em maio, hoje sinto que estão muito melhores, mais focados, porque chegaram muito dispersos, estavam há mais de um ano com foco total nas telas, que já um problema para crianças e adolescentes.

O colégio foi uma das instituições baianas que, recentemente, orientou as famílias sobre os efeitos nas crianças da série coreana Round 6, a mais visualizada da plataforma Netflix. Por que?

Alertamos as famílias porque estávamos percebendo que as crianças, em especial, sinalizavam que estavam assistindo a série e muitas em companhia da família. O mais grave é que elas estavam na escola reproduzindo aqueles atos da boneca que vira e mata, com a mãozinha como se estivesse com uma arma matando os colegas. A brincadeira da batatinha frita 1, 2, 3. Mandamos uma carta de recomendação porque, apesar da indicação de 16 anos, ainda questiono se adolescentes com 16, 17 e 18 anos realmente deveriam estar assistindo. Acabamos de falar dos efeitos emocionais nos estudantes por causa da pandemia, imagine um aluno que está tão fragilizado emocionalmente estar assistindo uma série dessa? Um aluno que muitas vezes não tem maturidade, não sabe fazer abstrações ainda. O que recomendamos é que, a partir dos 16 anos, a família pudesse avaliar a condição do aluno e, se realmente é o caso de assistir, que a família possa estar acompanhando para fazerem juntos reflexões críticas em relação à série.

A série é ficcional, numa plataforma paga, e todos têm exemplos reais de violência no cotidiano, por exemplo, em certos telejornais da TV aberta ou com o presidente da república que também faz a " mãozinha" por aí. Isso também não afeta as crianças?

Sim, com certeza. Isso já é outra questão, de quem está no poder ter uma atitude como essa. Quando falo da série em si não é só sobre ela diretamente, são os próprios jogos online entre crianças e adolescentes, há jogos extremamente violentos, não é só o Round 6. Às vezes, a gente pensa em proteger os filhos e eles estão expostos dentro dos quartos, em casa, a esses jogos, reproduzindo atitudes e falas violentas por causa de TikTok e outros. Há algumas questões que precisam ser vistas num âmbito mais amplo para podermos estar direcionando e orientar melhor. O acompanhamento das famílias precisa ser realmente de perto sobre o que os filhos fazem nas redes sociais.

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