MUITO
Versos de guerreiras: a vida poética de mulheres que viveram em Alagados
Por Gilson Jorge
Dois dos quatro filhos de dona Elza Candido Barros, 69 anos, vieram ao mundo quando ela morava em uma palafita, nos Alagados de Itapagipe. Uma área de maré da Enseada dos Tainheiros que começou a ser ocupada em 1943 por famílias paupérrimas, algumas chegadas do interior, que fincavam estacas no fundo da baía, presas a entulho e lixo não reaproveitável, e sobre elas juntavam pedaços de madeira que, depois, recebiam o nome de lar.
Às vezes, acontecia de algum morador tropeçar nas tábuas, ver um dos pés do único par de sapatos cair na água e ficar sem ter o que calçar até conseguir comprar um novo ou ganhar um outro par de doação. Às vezes, acontecia pior e era uma pessoa que ia parar dentro da água misturada ao esgoto e lascas de madeira.
Em sua segunda gravidez, em 1979, dona Elza levou um grande susto. Com a barriga já proeminente, colocou-se dentro da água para empurrar entulho com um pedaço de madeira para a base de sua casa. Não percebeu que a maré estava puxando e, quando se deu conta, o entulho estava sendo tragado de volta para dentro da água com uma força que a jogou no chão. Levada ao hospital, tomou pontos e teve que ficar de resguardo, como se tivesse parido.
Antes, na primeira gravidez, em 1978, presenciou um menino de 9 anos, vizinho, tropeçar de uma ponte e ficar pendurado por uma tábua enfiada à sua barriga. Um grupo de moradores foi resgatá-lo pela ponte e outro por baixo, pela maré.
“Os intestinos, como a gente fala, as tripas, ficaram pra fora. Ele teve que levar um monte de pontos”, relembra a mulher que desde a juventude se engajou na luta pela moradia digna na região.
“Tinha como não lutar por moradia? É triste, menino. A vida na maré [em Alagados] é triste. Mas, graças a Deus, está acabando”, afirma Elza, sobre as quase 100 famílias que ainda aguardam para sair das palafitas.
Desde a década de 1980, Elza é uma agente de divulgação de programas (ADP) da Conder, encarregada de fazer a ponte entre o governo do estado e a comunidade sobre as intervenções na área.
Mas, com o início da quarentena, em 2020, o acompanhamento in loco de atividades oficiais, naturalmente, foi cancelado. Nesses dias de confinamento, Elza tem se dedicado à casa, à família e a uma de suas paixões: a poesia.
Há quatro anos, depois de participar de uma oficina de escrita criativa ministrada pela jornalista Bruna Hercog, junto com outras mulheres da vizinhança, dona Elza tem se dedicado a colocar no papel em forma de versos as emoções que a acompanham ao longo da vida.
“A importância da poesia em minha vida, menino? Ave-maria... A poesia é minha vida”, afirma, com força tônica no é. Elza diz que se está feliz, quer fazer poesia. Se está triste, também.
No próximo dia 7 de abril, dona Elza participa de uma live no Instagram, @minhahistoriacontoeu, junto com outras três mulheres poetas da região, para divulgar o e-book do livro Assoalho de Lembranças, com poemas de todas elas.
O livro físico foi lançado em 2017, com recursos do edital Arte Todo dia, da Fundação Gregório de Mattos, que teve como contrapartida as oficinas criativas. Agora, através da Lei Aldir Blanc, estão sendo lançados o e-book e o projeto Mulheres Marés: da lata d’água na cabeça à luta pelo chão, que consiste em quatro performances virtuais com poemas escritos pelas mulheres de Itapagipe.
“O nome do livro foi inspirado por dona Elza, que ao ver objetos pessoais dispostos no chão, durante uma conversa, disse que ali estava um assoalho de lembranças”, conta Bruna Hercog.
É a terceira etapa do programa Minha História Conto Eu, idealizado pela jornalista e multiartista Alessandra Flores: “Uma coisa que, para mim, foi muito forte é que essas pessoas construíram o seu próprio chão”, diz Alessandra.
A primeira etapa foi em Mata São João, em 2014, por meio do edital Calendário das Artes, e a segunda em 2016, em parceria com a Fundação Pierre Verger.
A obra física, Assoalho de lembranças, com 100 exemplares, é chamada por Alessandra de livro-ponte, em função da arte de desdobramento nas páginas finais, que remetem às pontes, tanto a que liga Alagados ao continente quanto as pequenas pontes de madeira que ligavam as casas.
A arte do livro-ponte foi feita a partir do desenho de uma ponte vista de cima, elaborado pela também poeta e educadora comunitária Ana Rosa dos Santos, 71 anos, nascida em Serrinha e que aos 10 anos já morava em Alagados. Fundadora do Grupo Consciência Negra (Grucon), Ana atualmente está afastada das atividades do coletivo por questões de saúde.
Viver da fé
Alagados ganhou atenção nacional em 7 de julho de 1980, quando recebeu a visita do papa João Paulo II. Seis anos depois, viraria nome de uma canção dos Paralamas do Sucesso, sobre “a arte de viver da fé”. Mas são versos de outra banda, a Legião Urbana, que traduzem a crença no poder da arte.
“Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar no sonho que se tem, que seus planos nunca vão dar certo e que você nunca vai ser alguém”, diz trecho de Mais uma vez, recitado por dona Josilda Moura do Nascimento, 73 anos, viúva, mãe de seis filhos.
Ela se considera privilegiada por morar em Itapagipe e enxergar poesia em movimentos cotidianos, como “desfrutar do pôr do sol à beira do mar, o cheirinho de maresia, pescadores que saem com suas redes e retornam com o barco cheio de peixes, os peixes pulando na areia, ver marisqueiras agachadas”.
Uma verdadeira extração de poesia de uma vida que pode ser bem dura, em um bairro pobre e, como tantos outros, vulnerável à violência. A maré, que traz o sustento dos pescadores e, às vezes, leva pertences de quem mora nas palafitas, trouxe na manhã de 22 de agosto do ano passado o corpo de um homem crivado de balas na Baixa do Petróleo.
Aos 72 anos, Maria Lindalva dos Prazeres considera gratificante o reconhecimento, em livro, da luta de mulheres que classifica como fortes, guerreiras, vitoriosas: as mulheres de Alagados.
“Eu nunca pensei que participaria de um livro”, afirma a mulher que morou durante três anos, dos 16 aos 19, na Maré, quando seu pai comprou uma casa. Depois, mudou-se com a família para o Lobato, mas diz guardar boas lembranças da Maré. “Era tranquilo, a gente podia dormir de porta aberta”, assinala. Susto mesmo foi quando viu seu irmão de criação, então com 7 anos, quase se afogar na maré e ser resgatado por vizinhos.
Um dos poemas escritos por Maria do Amparo destaca: “Andei muito em cima de ponte, mas em água nunca morei. Carreguei muita água na cabeça, mas nunca desequilibrei”. Na década de 1990, Maria do Amparo trabalhava em duas frentes na região da Mangueira, localidade vizinha ao bairro do Uruguai. Através da Visão Mundial, ONG inglesa que atua em parceria com o Unicef e a Organização Internacional do Trabalho, visitava famílias em trabalho de campo, tirando fotografias e distribuindo presentes.
Além disso, dava assistência no posto de saúde local e em um programa de saúde bucal para crianças na escolinha do bairro. “Me convidaram para fazer parte do Biogênese, que era o grupo de mães, para fazer um projetinho e cuidar da saúde de todas as mulheres”, lembra. Elza também fazia parte da equipe que cuidava da saúde no bairro. Quando uma mulher do bairro adoecia, Amparo era acionada e ia com seus equipamentos, um tensiômetro, um glicosímetro e um caderno de anotações.
Com o passar do tempo, estabeleceu-se a rotina de uma reunião semanal na sede do Grucon, na Baixa do Petróleo. Maria do Amparo chegava às sete da manhã empurrando um carrinho de compras, desses de supermercado, com biscoitos, sucos e frutas, para oferecer a quem tinha necessidade, além de tirar a pressão e medir a glicemia.
Em 2015, as atividades de saúde passaram a acontecer duas vezes por semana, às terças e quintas, no final de linha de Massaranduba. Os encontros também tinham sessões de fisioterapia, palestras e atividades literárias. “Foi a partir daí que, em 2017, surgiram as oficinas de escrita criativa”, destaca.
Nascida em Santo Antônio de Jesus, Maria do Amparo foi morar em Alagados em 1955, aos 5 anos, depois de perder a mãe. Foi criada pela família de um primo carnal que não tinha filhos.
“A Mangueira era só água, mas a casa em que morava foi construída sobre entulhos”, lembra. Casou, criou três filhos e orgulha-se de ter sido uma mãe vigilante, que mexia na mochila do filho mais velho até quando ele tinha 29 anos, para se certificar de que ele não estava envolvido com atividades ilegais. “Eu deixei de trabalhar para cuidar dos meus filhos. Quando engravidei, não tive confiança em deixar meu filho com ninguém”, pontua.
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