CRÔNICA
Vida alheia
Confira a crônica deste domingo
Por ró-Ã
Nos tempos do velho Orkut, recebi certa vez um convite para integrar comunidade destinada a falar da vida dos outros. Apesar de ter ficado perplexa com o fato de a criatura imaginar que o tema poderia ser de meu interesse, declinei com muita delicadeza e nunca mais tive notícias do indivíduo.
De outra comunidade, entretanto, eu tinha muito gosto em participar: chamava-se “Meu C* não tem Acento” e era comandada por um amigo sempre tão espirituoso que me causou assombro ao publicar um livro em que a mais profunda depressão se estrebuchava ao longo de cem pesadas páginas.
Provavelmente, foi do que precisou a fim de dar conta daqueles sentimentos. Ainda mantemos contato e ele continua vivaz como o conheci primeiro. Não me surpreenderia se tivesse sido o autor de uma frase que um dia vi estampada numa caneca e ainda me faz rir: JESUS TE AMA PORQUE NÃO CONVIVE COM VOCÊ.
Uma coisa é querer o bem da humanidade, acreditar que todos merecemos respeito e consideração. Outra é compartilhar seu dia a dia com alguém que nem a paciência de mil Jós seria capaz de suportar, conforme me foi relatado por uma conhecida, residente nesta mesma rua há mais de três décadas. Quando me mudei pra cá, no ano em que o Baêa foi bicampeão nacional, ela dividia um apartamento com o marido e um bebê que haveria de se tornar um homenzarrão de dois metros de altura.
Nos encontrávamos esporadicamente, eu perguntava por Otávio e pelo menino, depois rapaz, hoje quase um gigante. Da última vez, quando comentei que nunca mais tinha visto o marido, fiquei sabendo que estavam separados há mais de dois anos!
Creio que eu não caberia mesmo no tal grupo sobre a vida dos outros. Sou completamente desantenada a esse respeito, embora as histórias das pessoas muito me interessem como material de escrita. Me chamou pra um café e bolo de iogurte com casquinha de açúcar, irrecusável.
— Tem muita coisa ruim no mundo — disse ela — mas certamente uma das piores é ter que viver com alguém chegado a calundus.
— E é? — perguntei, ávida por informações sobre a natureza de tal experiência.
— Imagine o que é estar curtindo a vida que pediu aos céus, nenhuma grande preocupação, tragédia na família nem perrengue financeiro. Daí acontece de passar um vento mau e o sujeito fica uma semana sem lhe dirigir palavra. Não teve desentendimento, não teve discussão, não teve nada, apenas o vento mau.
— Como assim?
— Só assim, não tem como. A pessoa invoca, fecha a cara e você é excluída, sem saber por quê, sem existir por quê.
— Mas não era chateação no trabalho, investimento mal feito, pelo encravado?
— Não. E ainda se fosse, o que é que eu tinha a ver? Era só isso: o bicho se fechava, ficava dias calado, daí soprava o vento bom e tudo voltava ao normal. Você não pode imaginar o que é ser ostracizada de repente, a troco de nada.
— Não ouso imaginar.
— Aí acontece uma, duas, trezentas vezes. Sempre da mesma maneira. Aparece sem motivo, some do mesmo modo.
— Mas nem uma palavra ele dizia?
— Nem uma sílaba! Era como se eu não estivesse. E aí você começa a perceber que, caso um amigo dê as caras – amigo dele, naturalmente –, o calundu se dissolve num instante e ele se exibe todo flores. Pede até pra você fritar uma calabresa na cebola pra acompanhar a cerveja. E você faz, toda pimpona, achando que vai contar ponto a seu favor. Mas basta o amigo ir embora pra voltar tudo de novo.
Com o passar do tempo, começou a botar Otávio contra a parede, exigindo explicações que ele não tinha. Parecia sequer se dar conta das ausências e o quanto a magoavam. Mandou que se tratasse, e com alguma relutância ele acabou procurando um psiquiatra. O psiquiatra passou um remédio que lhe causava ansiedade, depois outro que cuidasse da ansiedade. E mais um para dar conta dos efeitos colaterais do segundo. A instabilidade permaneceu. O psiquiatra morreu num acidente de automóvel a caminho da Chapada Diamantina, junto com a mulher e o cachorro. Otávio se sentiu livre. Ela entregou a Deus, ficou esperando que Ele trouxesse solução.
Foram anos convivendo com os calundus. Declarou mais de uma vez que se recusava a seguir daquele jeito, que ia se cansar. Ele não acreditou.
Quando, finalmente, decidiu que não merecia mesmo aquilo, o mundo do homem veio abaixo. Ameaçou se matar e chegou perto, sendo salvo pelo filho grandão.
—Não sei o que teria sido de mim se ele tivesse morrido. E vou te dizer, amiga: a grande lição que aprendi, da qual depende sua felicidade com alguém, é procurar logo saber se o elemento é de calundu. E, mesmo que ele não confesse, até porque não saiba, ao primeiro episódio trate logo de cair fora!
Conselho que passo adiante, para o bem da humanidade.
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