MUITO
Vida Kiriri: no sertão baiano, índios lutam por desenvolvimento e garantia de direitos
Por Tatiana Mendonça
Sheyla caminha por uma estrada de terra com a filha Kyara enganchada nos quadris. Tem o rosto largo e risonho, olhos puxados, cabelos pretos escorridos que caem até a cintura, a pele de um moreno distinto. Quando está longe dali, antes de se apresentar, perguntam se é brasileira. “Geralmente pensam que sou boliviana”, ri. Chegamos ao tempo de tomar o originário por estrangeiro. É quando Sheyla Souza, 23, responde que é Kiriri.
Quando ela nasceu, os 12 mil hectares destinados pelo governo para os Kiriris viverem, no sertão baiano, ainda eram divididos com não índios ou brancos, os dois jeitos que os chamam. A terra indígena foi demarcada em 1981 e regularizada em 1990, mas só em 1998, há exatos 20 anos, foram todos expulsos. Houve conflito para fazer valer o escrito, que vitimou seis pessoas de um único lado, o dos Kiriris, segundo levantamento da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) divulgado na época.
Quem vai em direção à cidade de Banzaê, a cerca de 300 km de Salvador, avista no caminho uma placa amarela indicando o começo da área indígena, que corresponde a 52% do município. Com os dias avolumando-se pacíficos, as histórias das lutas, chamadas de reconquista ou retomada, passaram a morar na memória dos mais velhos, que exaltam bravuras, e nas aulas das escolas, onde passaram a figurar nos currículos.
No Colégio Estadual Indígena José Zacarias, em Mirandela, o maior dos oito povoados que compõem o território Kiriri, os alunos respondem aos bons-dias dos visitantes com um coro de roraty, como o cumprimento é dito na língua nativa. Do ensino infantil ao médio, além das aulas que falam sobre a identidade e a cultura do povo, há aquelas nas quais se aprende o idioma, ou as palavras que restaram dele, embora no dia a dia todo mundo fale mesmo em português.
Maria do Carmo Souza dá aula para os alunos do primeiro ano. Assim que eles entram na sala, ela diz que eles podem tirar as sandálias, para ficarem mais à vontade, e volta e meia troca o quadro, carteiras e paredes por uma caminhada na rua. “Aqui é um lugar de liberdade”.
Quando ela mesma era estudante, em Banzaê, não tinha nada disso. Lembra que precisava usar calça, tênis, e mesmo assim os moradores da cidade apontavam para ela e seus amigos da aldeia dizendo que eram “caboclos”. “Diziam que a gente era ladrão de terra, que não tinha coragem de trabalhar... Os professores ouviam e não falavam nada. Era separado, eles de um lado, a gente do outro”.
A divisão também era reproduzida nos ônibus escolares que os levavam até Banzaê, numa época em que na aldeia só tinha colégio para os primeiros anos do ensino fundamental. Quem era indígena ficava num canto, quem não era ficava no outro. Não era algo dito, combinado ou imposto, como a segregação racial que marcou os Estados Unidos, ou o apartheid na África do Sul. Era o jeito que era.
Decidida a ser professora, Maria do Carmo, que gosta mesmo de ser chamada de Carmen, resolveu fazer faculdade, e aí teve que ir até mais longe. Ela está no último ano do curso de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena, em Paulo Afonso. Assim como ela, todos os 44 professores que dão aulas para os 603 estudantes da escola de Mirandela são indígenas.
Caciques
Perto da escola fica a Rádio Kiriri (88,5 FM). O locutor Gilberto Santos chega lá às 5h da manhã e sai às 9h da noite, primeiro e único funcionário (voluntário) do lugar. Pai de cinco filhos, vive da renda do Bolsa Família. Cerca de 70% das famílias indígenas recebem o benefício, segundo dados da prefeitura de Banzaê.
Gilberto trabalhava como tratorista e em 2012 ouviu falar de uma oficina de rádio que ia ter por lá. Foi. Gostou. Quando o projeto, apoiado pelo governo do estado, acabou, resolveu que ia ele mesmo tocar a emissora, no ar permanentemente desde 2014.
Tem música indígena, naturalmente, mas também sertanejo e forró pé de serra, que o povo aprecia demais. Aos sábados, tem o Momento Kiriri, para falar sobre história e cultura. Volta e meia, alguma liderança pede para dar um pronunciamento.
Gilberto abre o microfone para todos, mas pensa que o principal problema da aldeia hoje é a “desunião”. “Antes, eram só dois caciques. Agora tem muitos. Tinha que integrar mais”, diz, dando a pensar naquele ditado que talvez não seja bom escrever aqui. Pelas suas contas, são 12 caciques, mas ouve-se mais falar de oito, despontando numa população de 2.571 Kiriris, segundo o censo mais recente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. No Brasil, são 818 mil índios.
O antropólogo José Augusto Sampaio, diretor da Anaí, explica que a divisão entre lideranças é comum entre outras etnias na Bahia e no Brasil. Só em Mirandela, são quatro, e há o caso de líderes que respondem por mais de uma comunidade, como Lázaro Gonzaga de Souza, 80, cacique desde 1972. É dele a palavra final em qualquer conflito que envolva os integrantes de 40 famílias em Mirandela e 120 em Marcação, onde Sheyla vive.
Lázaro esteve à frente da ação em que 250 Kiriris armados de arcos e flechas expulsaram em 1998 as famílias de “brancos” que ainda moravam em Marcação, numa das últimas batalhas pela retomada, e participou de muitas outras antes dessa, com fazendeiros locais e políticos em Brasília. Espirituoso e provocador, diz que não dá muita liga aos caciques que surgiram nos últimos anos. “Depois que a onça está morta, todo cachorro vai morder”.
Conflitos
A história desta onça começa ainda no Império. No século 18, o então rei de Portugal doou terras para as aldeias do sertão com mais de cem casais, a pedido dos jesuítas, como um meio de dar cabo aos constantes conflitos com pecuaristas, como conta a pesquisadora Maria de Lourdes Bandeira no livro Os Kiriris de Mirandela: Um Grupo Indígena Integrado, de 1972.
0,15%
Saco dos Morcegos, uma das quatro aldeias ocupadas pelos Kiriris, na época com população estimada em 700 famílias, foi uma das áreas delimitadas, à maneira da época: uma légua (6.600 m) do centro, a igreja, aos oito pontos cardeais e colaterais. Vista de cima – pode fazer o teste pelo Google Maps, mesmo, ou apreciar na página anterior a reprodução do quadro que fica pendurado na escola – a terra dos Kiriris tem a forma de um octógono, pintado de verde-escuro no desenho e nas imagens por satélite.
Aconteceu que a doação não vingou na prática, e Saco dos Morcegos virou a próspera vila de Mirandela. Apenas em 1949, com a instalação em Mirandela de um posto do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a história da posse das terras seria retomada, com a posterior demarcação, em 1981.
Sem ações institucionais para efetivar o papel, um ano depois os Kiriris ocuparam a Fazenda Picos, em Lagoa Grande, a maior da região. Gino Manoel dos Reis trabalhava lá com o pai, que tinha uma dívida alta com o proprietário, Arthur Miranda. Gino conta que era um tempo de muita pobreza, a ponto de não ter roupa nenhuma quando era menino. Tinha que usar os vestidos da irmã quando precisava ir à feira na cidade. Crescido, mesmo doente precisava lavorar.
O primeiro dia de ocupação começou cedo, às 4h da manhã, conta Gino, que estava lá junto a centenas de outros índios, que fizeram pouco caso do dito repetido pelos seguranças de que “nunca um caboclo ia entrar ali”. Foi aquela agonia medonha de cada lado defendendo seu certo, com a polícia e agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) no meio da confusão para impedir o pior.
O fazendeiro foi indenizado pelo governo federal, os índios ficaram. Gino, 71, mora lá hoje com a mulher, cuidando com seu passo ligeiro da plantação de milho, feijão, banana, batata, abóbora, sem luxos de luz elétrica ou água encanada. Passou um tempo aproveitando esses confortos quando por insistência foi viver em Marcação, na “cidade”, como diz, mas não acostumou, não. “Ia ficar lá fazendo o quê? Dou mais pra roça. Aqui não me falta nada”.
Da ocupação da Fazenda Picos seguiram-se as demais, em maior escala: Mirandela, Gado Velhaco, Marcação, Araçá, Pau Ferro, Segredo, Baixa do Camamu, Baixa da Cangalha. Cinco índios foram mortos no confronto com os brancos e um foi assassinado em disputas internas por poder e terras.
A retomada de Mirandela, em 1995, foi a que causou mais estardalhaço. Os colonos, gente nascida ali, com os avós nascidos ali, tiveram que deixar casa, comércio, roça, muitas vezes ouvindo ordens de índios que trabalhavam para eles até outro dia, os homens de peões, as mulheres de empregadas domésticas.
Selma, que aparece aqui com um nome inventado, tinha em Mirandela uma casa, um sítio, uma loja. Lembra que foi seu compadre que apareceu exigindo que entregasse a chave de casa. Ela o enfrentou, disse que não ia dar nada. Ouviu de volta que cuidasse daquela brabeza. O marido já tinha saído para procurar outro meio de vida, não havia jeito senão ir também. Foi morar em Banzaê com os seis filhos e os R$ 6 mil que recebeu de indenização. Até hoje, seus olhos marejam quando conta o caso.
Cerca de 1.500 famílias expulsas foram indenizadas, até 2001, pelas benfeitorias que fizeram nas localidades onde viviam, e não propriamente pela terra que ocupavam, pertencentes à União. Nessas duas décadas da calmaria que sucedeu o caos, o preconceito com os indígenas diminuiu em Banzaê, embora persistam, espraiados, rancores e ressentimentos.
Reconquista
Todo ano, no dia 11 de novembro, os Kiriris comemoram a retomada do território. Passam a madrugada no ritual do Toré. Aos sábados, também se reúnem para fazer a dança na qual se comunicam com os encantados – menos se for agosto, mês de resguardo. Aos fins de semana, costumam ainda jogar futebol, em partidas que juntam meninos e meninas. “A diversão que tem é essa”, diz a merendeira Rosângela de Jesus dos Santos, 30. Seu filho mais velho, Kainan, 13, atalha que prefere mesmo o videogame.
Eles vivem em Mirandela sob a liderança do cacique Marcelo de Jesus. O marido de Rosângela, Manuelino, ocupa o cargo de conselheiro, espécie de braço direito. Abrigados numa casa de taipa ao lado da tricentenária igreja matriz do Senhor da Ascensão – que perece sem telhado, apesar de provisoriamente tombada –, Marcelo e Manuelino contam que a batalha agora é pela garantia de direitos, pelo desenvolvimento da comunidade.
Marcelo tornou-se cacique em 2003, escolhido por parte das famílias pelo papel de destaque que tomava em atividades comunitárias. Reclama que falta apoio para fortalecer a agricultura, quase de subsistência. Quem consegue uma safra maior vende o excedente na feira de Banzaê. “É uma luta para conseguir mais projetos de sustento, mas as portas costumam ficar fechadas pra gente. Depois, saem dizendo que índio não produz. Recurso não tem”.
Muitas mulheres fazem do artesanato a fonte de renda, como a mãe de Rosângela, Marlene, que já viajou meia Bahia mostrando os colares, pulseiras e cocares que faz com o que cata do seu quintal. Pede para adicioná-la no zap. “Índio agora tem celular, internet, mas sem esquecer o que é”.
Antes de discorrer sobre as questões dos Kiriris, Jailma Gama (PT), prefeita de Banzaê pela quarta vez, apressa-se a dizer que tem ascendência indígena. Emenda a crítica de que os órgãos responsáveis por apoiar a população saíram de uma situação “paternalista” para o total “abandono”. “O que a Funai está efetivando de políticas públicas lá dentro? Pergunte ao índio e ele vai dizer: nenhuma”.
À Muito, a Funai afirmou que sabe que “há muito a ser feito” e que apoia diversas propostas, “dentro dos limites de orçamento e recursos pessoais e logísticos”. O órgão enumerou atividades que realizou no território, como a aquisição de sementes de milho e feijão para a safra de 2018, distribuição de cestas básicas e projeto de corte e costura para mulheres.
Há outros projetos pontuais, com apoio do governo estadual, como o que criou um centro de artesanato em Marcação, em 2010. A máquina para retirar a fibra do sisal, que os índios pegam na mata, está sem uso desde que chegou ali, porque ninguém ensinou como o equipamento funciona. Outra iniciativa, de 2012, foi a construção de uma unidade de beneficiamento de mandioca e uma fábrica de biscoitos, ofertados na merenda escolar da rede municipal.
Sheyla, que caminhava no começo da reportagem, trabalhou um tempo na fábrica. Casada com um não índio, está com o coração apertado por ter que sair de Marcação, onde não pode viver com o marido. Se um índio se casar com uma não índia, aí tudo bem. No fim do ano, ela deixará de integrar a diminuta parcela dos indígenas que vivem em terras regularizadas como suas na Bahia (28%) para estar pelo mundo, sentindo-se irremediavelmente estrangeira.
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