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Virgínia Rodrigues completa 20 anos de carreira

Por Tatiana Mendonça

10/07/2017 - 15:08 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Virgínia Rodrigues no Pelourinho
Virgínia Rodrigues no Pelourinho -

A voz de Virgínia tem a força de um canto do começo do mundo. Há duas décadas foi parar pela primeira vez num disco, para que todos pudessem ouvi-la. Mas quantos ouvem? E onde ouvem? Entre 30 de junho e 2 de julho, Virgínia Rodrigues, 53, fez três shows para comemorar os 20 anos de carreira. Todos em Curitiba, há mais de dois mil quilômetros de casa. Em Salvador, cidade onde nasceu, a cantora, que acumulou elogios de críticos brasileiros e gringos, não conseguiu nem mesmo lançar o seu álbum mais recente, Mama Kalunga, de 2015. Por quê?

Recostada num sofá da loja Katuka Africanidades, na Praça da Sé, Virgínia dá de ombros à pergunta. Diz que vai para onde a chamam e que a Bahia sempre foi o lugar onde menos canta. “Não sei por que isso acontece. O artista vai onde é contratado. Quase todas as vezes que fiz show aqui, eu mesma banquei”. Mas se insistimos numa explicação, Virgínia põe a ausência na conta do jabá, do dinheiro pago para que uns artistas toquem repetidamente e outros não.
Lembra que quando era pequena ia com as amigas até o orelhão da rua para pedir músicas, numa rádio que tocava tanto Elis Regina, que ela amava, como Amado Batista, que não gostava. “Cresci ouvindo Bidu Saião, que até pensava que era homem, por causa do nome, e Melodia Sentimental, de Villa Lobos. E hoje... É uma forma desonesta de lavagem cerebral o que estão fazendo com as pessoas. Tenho muita pena do caminho que a música brasileira está tomando, um caminho muito empobrecido. Estão apequenando a música popular brasileira”.
Antevendo a réplica, adianta que não se trata de saudosismo, mas do fato de que antes era melhor e pronto. “Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Elis Regina, Paulinho da Viola, Maria Bethânia, Luiz Melodia, Luiz Gonzaga... Hoje, a música popular brasileira está retroagindo. É um monte de gente que não fez nada, que não tem nada para mostrar, mas que chega e paga para serem tocadas. Os arranjos são pobres, a poesia das músicas é pobre. Vamos resumir, está uma desgraça”.
Desde aí já dá para reparar que assumir um tom mais popularesco nunca fez parte das suas intenções artísticas. Seu esforço vai em sentido contrário. De não se repetir, de não fazer nada óbvio. “É chato fazer as mesmas coisas. Se já tem alguém fazendo, para que eu fazer? Não vejo graça nisso” .
Não quer, no entanto, abrigar-se na casa dos eruditos, como a fineza do seu canto, comumente dito camerístico, pode dar de longe a entender. “Sou uma cantora de música popular brasileira. Agora, a música popular brasileira é sofisticada, entendeu, tanto quanto a erudita. É muito grande, muito bonita, muito forte”. Parece uma contradição com o que dizia antes, mas, além de falar do passado, Virgínia também fala de potência para o presente.

Cinderela brasileira

Quando começou a ficar conhecida, Virgínia ganhou de jornais americanos o apelido de Cinderela brasileira, mas tinha no fundo uma história comum a muitos artistas negros como ela. Pobre, passou os primeiros anos de vida na Fazenda Grande do Retiro. Ainda estava no começo da adolescência quando deixou a escola e começou a trabalhar, na maior parte das vezes como cozinheira e manicure.
A mãe era feirante em São Joaquim, o pai, depois de aposentado por invalidez, passou a vender picolés. No chuveiro, ela cantava imitando as divas que ouvia no rádio; na sala, dependurava-se numa cadeira com um pente de microfone, para fazer palhaçada e agradar ao pai. A mãe, vendo que a menina era afinada, começou a levá-la a os corais da igreja. Primeiro a católica, depois a protestante. Virgínia ia, sem pretensão de ser nada, o canto um fim em si mesmo.
Já estava adulta quando começou a participar do coral do Mosteiro de São Bento. No Oratório de Santo Antônio, já tinha um “cachezinho mixuruca, pouquinho, mas ganhava”. Numa noite dessas de homenagem ao santo, o diretor teatral Márcio Meirelles estava sentado num dos bancos da igreja. Atento, viu aquela mulher caminhando sozinha até o centro da nave do mosteiro e ouviu sua voz ecoar pelo espaço a capella. “Chorei sem parar. Foi um desses momentos raros de revelação absoluta de beleza”.
Márcio a convidou para trabalhar com ele no espetáculo Bai Bai Pelô, do Bando de Teatro Olodum. Reproduziu no palco o momento em que Virgínia andava só, colocava no colo um menino preto morto e cantava. Na estreia, um ensaio aberto, Caetano Veloso foi assistir. Virgínia entoava uma música em latim batizada com um nome que era quase o seu, Verônica, nervosa por ser a primeira vez em que subia num palco e por ter seu ídolo na plateia. Ao fim, Márcio os apresentou e ela foi cumprimentada de maneira emocionada por Caetano.
Imagem ilustrativa da imagem Virgínia Rodrigues completa 20 anos de carreira
Virgínia e e Caetano Veloso no lançamento de Sol Negro. Foto: Rejane Carneiro / Ag A Tarde / Data: 26/05/1997
Era 1994. Virgínia passou a integrar o elenco do Bando e viu a vida melhorar com os convites que apareceram para tocar em casamentos e outros eventos. Continuava trabalhando como manicure, mas tinha já o luxo de ser chamada para participar de disco de Maria Betânia, como aconteceu em Âmbar, de 1996. Márcio e a trupe do Vila Velha começaram a incensar a ideia de que tinha que gravar um CD seu.
Inscreveram um projeto em um edital da Braskem e Márcio falou com Caetano, que topou fazer a direção, e com Paula Lavigne, que topou fazer a produção do disco. Estava tudo muito bem, mas não foram aprovados no edital. Ele deu a notícia de que tinham perdido, mas logo depois Paula ligou dizendo que iriam fazer do mesmo jeito, com ou sem prêmio.
Virgínia lembra que recebeu a notícia por fax. “Fiquei aérea. Gravar um disco meu? Foi um susto”. Sol Negro saiu em 1997, pela Natasha Records. Foi gravado em 30 dias numa casa em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Dali Virgínia via a floresta e a favela. A canção-título tem participação de Milton Nascimento, e Verônica, a música que a conectou a Caetano, também está no álbum. Foi tudo rápido e tranquilo, menos a parte em que precisou gravar Manhã de Carnaval num estúdio. “Essa foi demorada, porque eu não gostei daquela coisa presa, aquele bando de parede... Foi difícil. Até hoje não gosto de estúdio”.
O disco foi lançado primeiro em Salvador, em cinco noites lotadas no MAM-BA. Foi Caetano quem deu a ideia de fazer num lugar pequeno, para não correr o risco de haver cadeiras vazias. Depois, apresentou-se no Rio e em São Paulo. O show do Rio foi visto por um repórter do New York Times, que o descreveu como algo “de outro mundo”. Na reportagem, contava que pelo menos dois produtores americanos estavam disputando a oportunidade de lançá-la nos Estados Unidos. A Rykodis acabou levando e promoveu o álbum também na Europa e no Japão. Em 1998, Virgínia fez sua primeira turnê no exterior, e aí a coisa começou a “fluir, fluir, fluir”. “Fazia em média duas turnês nos Estados Unidos por ano, e uma na Europa. Me apresentava mais no exterior do que no Brasil”.
E Virgínia não é daqueles artistas que quando fazem shows no exterior cantam quase que exclusivamente para brasileiros. O boa-noite ela sempre dá, mas poucos, geralmente um ou dois, respondem. Também por isso o primeiro impacto nem sempre é lá muito receptivo. Uma vez foi cantar na Inglaterra, já nervosa com a fama que os ingleses têm de serem frios, e no início só pensava: “Ninguém está gostando desta porra, vai todo mundo embora”. Mas ninguém foi. E a aplaudiram. “No Brasil, as pessoas vão ver você porque alguém disse que é bom, ou porque você já está muito famosa, já foi feito um trabalho de mídia grande. Lá fora, eles vão ver você para saber se você presta ou não. É diferente. E aí, se você não for bom, claro, eles não voltam mais. Mas, se gostarem, compram o disco, viram fã”. Um dos fãs famosos de Virgínia é o ex-presidente Bill Clinton, que a conheceu num evento promovido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Num programa de entrevistas, ele declarou que Virgínia é sua cantora favorita de todos os tempos.

Cantora de música brasileira

No seu segundo disco, Nós, de 2000, Virgínia gravou músicas de blocos afros, por ideia de Caetano. Ficou com medo de ficar parecendo que tinha virado cantora de Carnaval, mas uma coisa não podia distar mais da outra. Basta ouvir como ficou quase irreconhecível Mimar você, um dos hits da Timbalada, cantada por Virgínia no disco. Ela na verdade nem gosta do título “música baiana”, nem quando a chamam de “cantora baiana”. “Se eu tivesse nascido no Rio de Janeiro, iam me chamar de cantora carioca? Não, né? Iam dizer a cantora paulista? Eu sou uma cantora de música popular brasileira”, repete.
Na trilha guiada por este norte, viriam Mares Profundos, de 2004, com afrossambas de Baden Powell e Vinicius de Morais, incluindo a pérola Canto de Ossanha, e o álbum Recomeço, de 2008, em que interpreta de modo mais contido valsas e samba-canções de Chico Buarque, Tom Jobim, de novo Vinícius. Coisa finíssima. E aí veio um longo, longo tempo em que Virgínia passou sem lançar outro disco. Foram sete anos. Para conceber e coproduzir o trabalho, ela convidou Tiganá Santana, seu preferido entre os novos artistas “nascidos na Bahia, criados na Bahia”.
Tiganá conheceu Virgínia pessoalmente por intermédio de um amigo em comum, mas antes disso já a admirava. “A aparição de um fenômeno artístico como ela, um dos maiores do país, não tem como passar despercebido. É uma voz absolutamente inexplicável”. Ele lembra que Virgínia queria fazer algo distinto no novo trabalho, mas não sabia ainda que coisa distinta seria essa. Tinha só certo que seria algo “colado com a negritude”, lembra Tiganá. Das treze canções do disco, cinco são de sua autoria, incluindo a que dá nome ao álbum. Algumas são em idiomas africanos, como kikongo e kimbundu. Por ele, seriam menos músicas suas, mas Virgínia bateu pé. “As músicas de Tiganá são liiiiindas de morrer, mas difíceis pra caralho de cantar”. Ele ri quando ouve o comentário e agradece reverente.
Mama Kalunga não é um trabalho declaradamente militante, como hoje se vê muito por aí. Para Tiganá, o disco mostra algumas negritudes possíveis, que se sintetizam em Virgínia. “A gente quis propor algo de fato profundo, reflexivo, complexo”. Tiganá explica que Kalunga pode ser traduzido por oceano, infinito, força que existe por si mesmo, e que o Mama o encabeçando “assenhora” essa força.
Virgínia acredita que ativismo e arte devem estar separados. “Não gosto muito de carregar bandeiras. Eu sou negra, graças a Deus. Não tô cega. Adoro ser negra. Na outra vida, se eu vier, quero vir negra de novo. Mas ativismo não é muito minha praia. Gosto de cantar coisas que falem do meu povo, dos meus ancestrais, para não deixar isso morrer nem passar pelo esquecimento. E também porque me faz bem, são bonitas. E as coisas bonitas têm que ser ditas”.
Ela também não gosta muito de falar sobre racismo, apesar de achar que o preconceito não diminuiu nada do tempo que era criança. “É que nunca vai acabar, em primeiro lugar. O que tem que acontecer é o nosso povo se aceitar como é, exigir respeito, não aceitar ser molestado. Dizer ‘sou negro sim, e daí?’. Quando alguém olhar pra ele e dizer ‘ô macaco!’, responder que macaco é melhor que qualquer ser humano. Qualquer animal é melhor que qualquer ser humano. É parar de se sentir ofendido com essas idiotices. Aí sim a gente vai quebrar a força dessas pessoas”.
Imagem ilustrativa da imagem Virgínia Rodrigues completa 20 anos de carreira
Show em Curitiba, em comemoração aos 20 anos de carreira. Foto: Divulgação
Com Mama Kalunga, Virgínia ganhou o prêmio de melhor cantora na 27ª edição do Prêmio da Música Brasileira, no ano passado. Há ali e nos outros trabalhos dela uma aura sacra, embora não cante mais músicas religiosas, como no embrião da carreira. Ela tem uma explicação fácil para isso. “É porque música é sagrada mesmo. Quando você se posiciona para cantar, tem que lembrar disso, sempre”.
Ainda antes de gravar o primeiro disco, quando cantava no coral do Mosteiro de São Bento, Virgínia encontrou-se com o candomblé. “Apareceu uma pessoa para falar comigo. E eu nunca tinha feito um jogo de búzios, nada, e essa pessoa me disse coisas que só eu sabia, ninguém mais. Aí eu me interessei em jogar e fiz perguntas. No candomblé, encontrei respostas para todas as perguntas que fazia”. Hoje tem nos orixás um guia, seus pés. Frequenta a mesma casa que Tiganá, o Tumbenci, de mãe Zulmira, em Lauro de Freitas, cujo nome significa “Cá te espero”.

Estética, beleza e força

Virgínia passou dois anos vivendo em São Paulo, para saber como era “morar um pouquinho fora”, mas voltou para cuidar da mãe. Hoje, vive no bairro de Sete de Abril e segue viajando para onde a chamem. Torce muito trazer o show em comemoração aos 20 anos de carreira para Salvador e levá-lo também a outros estados do país. E quer também fazer outro disco, mas por enquanto é um desejo, só, por mais fortes que sejam os desejos.
De modernidades de internet, confessa que não entende muito. Seus perfis de trabalho nas redes sociais são administrados pela produtora carioca Casa de Fulô, que a representa. Mas, volta e meia, em sua página pessoal no Facebook, Virgínia compartilha postagens com as quais concorda e dá seus “pitaquinhos”, especialmente sobre política. Está, aliás, achando tudo uma “esculhambação”. “Mas, para mim, a culpa é do povo brasileiro. Porque se chego na sua casa, achando que é minha, faço o que quero e você deixa... Se você não diz: ‘epa, calma aí, eu lhe convidei, mas não meta a mão, não, porque isso daí não é seu’... Esses caras foram eleitos pelo povo, então é o povo que tem que dar o limite. Nós estamos à toa. A verdade é essa”.
Para Márcio Meirelles, a crise que o país está vivendo ajuda a responder o porquê do primeiro parágrafo deste texto. “Esse Brasil louco explica por si só a incapacidade de conviver com a beleza que ela é capaz de construir. Em que fatia de mercado Virgínia se insere? Em que novela vai estar na trilha? Ela propõe e precisa de uma audição e um estado de requinte estético que é raro por aqui. O Brasil é cruel. A Bahia é a essência e semente do Brasil”.
Tiganá explica as ausências de apoio e reconhecimento a Virgínia pela seletividade do mercado, “guiado por questões raciais e de gênero”. “É mais difícil para os artistas negros, é ainda mais difícil para as artistas negras. Com sua estética, sua beleza, sua força, está fora do sistema de pensamento e operação do mercado”. Mas, à parte isso, há todos os sonhos do mundo, e há Virgínia Rodrigues.

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