ABRE ASPAS
Zezé Motta: "As coisas boas têm que ser comemoradas, senão a vida fica muito amarga”
Na próxima quarta-feira, 20, a luta e carreira de Zezé serão homenageadas pelo Fórum de Entidades Negras da Bahia (Feneba), em Salvador
Por Pedro Hijo
A atriz e cantora Zezé Motta começa a entrevista pedindo desculpas por não ter ouvido o celular tocar e ter demorado algum tempo a mais para nos atender. Nada que tenha feito a reportagem esperar mais do que cinco minutos além do horário marcado, mas o suficiente para notar um detalhe. Nascida no Rio de Janeiro, em 1944, a artista nunca foi afeita às desculpas, apesar do constante sentimento de inadequação que costumava pairar nos ambientes predominantemente brancos que frequentava. Enfrentava com altivez a disparidade que existia em teatros e estúdios de gravação por onde passou. Na próxima quarta-feira, 20, a luta e carreira de Zezé serão homenageadas pelo Fórum de Entidades Negras da Bahia (Feneba), em Salvador.
O evento vai comemorar também o Dia da Consciência Negra – que, pela primeira vez, será feriado nacional – com a realização da 21ª Caminhada da Liberdade, celebrando os 190 anos da Revolta dos Malês. Zezé sempre usou as artes cênicas e o audiovisual como ferramentas de resistência. No começo da carreira, atuou no espetáculo Roda Viva, um marco da luta contra a ditadura militar, e integrou o Teatro de Arena. Na ocasião, levou a peça Arena conta Zumbi aos Estados Unidos, em 1967, época do movimento Black is Beautiful. Quase 10 anos depois, sob direção de Cacá Diegues, interpretou a rainha negra Xica da Silva, que ganhou fama e fortuna ao conquistar o coração de um contratador de diamantes.
O reencontro com a personagem se deu em 1996, no papel de mãe da protagonista, desta vez interpretada pela atriz Taís Araújo. Para Zezé, a homenagem que vai receber na próxima quarta-feira é uma confirmação de que a resistência abriu caminhos. “Tudo isso me ajuda a chegar à conclusão de que valeu a pena toda a luta durante a minha vida”, diz. Um exemplo da importância de Zezé é a renovação de artistas negros em papéis de destaque na teledramaturgia brasileira.
Aos 80 anos, Zezé não dá sinais de que pretende parar de trabalhar. Tem mantido a agenda agitada. Trabalha tanto que, quando tem um tempo, corre para dar atenção à família ou para cuidar de si. Tem mantido uma rotina de musculação e caminhadas que a ajuda a se manter inteira para viajar o país com uma turnê em que canta músicas de Caetano Veloso. Nesta entrevista, Zezé ainda fala sobre a sensação de testemunhar a liberdade das mulheres negras da nova geração, sobre novos projetos e sobre as críticas que recebe na internet pelo ativismo.
Qual é a sensação de estar sendo homenageada em Salvador?
Eu tenho recebido muitas homenagens nos últimos tempos. Esse ano, especialmente, por causa dos meus 80 anos. É um momento de muita emoção e eu fico muito feliz com essa recepção e com esse calor. Tudo isso me ajuda a chegar à conclusão de que valeu a pena toda a luta durante a minha vida. É uma emoção tremenda ser homenageada em Salvador, ainda mais agora em que o dia 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, é feriado na Bahia. E já era hora disso acontecer, né? Eu não conseguia entender isso. Demorou tanto tempo para se estabelecer esse feriado num estado que é o mais negro do país. Mas, não é hora de reclamar. Não vamos ficar agora chorando as pitangas, o importante é que chegamos lá. Eu vejo tudo isso com muita alegria porque essa data é o resultado da nossa luta, é uma conquista nossa. E eu fiz parte dessa luta.
Uma luta que todos puderam testemunhar. Em algum momento a sua carreira de atriz se chocou com a sua atuação política?
Sim. No início da minha carreira, eu ganhei uma bolsa para fazer um curso de arte dramática no Tablado [escola de teatro carioca], que era um dos cursos mais sofisticados na época. Fiz, inclusive, com a dona do Tablado, Maria Clara Machado, que ainda estava entre nós e que dava aula na época. Foi um grande privilégio ter sido aluna dela. Mas, quando eu comecei a carreira profissionalmente, eu esbarrei com um probleminha: eles me davam sempre o mesmo personagem, que eu imagino que você saiba qual é. Não tenho nada contra nenhuma profissão, não tenho nada contra a ocupação da empregada doméstica. O meu problema é que eu sempre era convidada para fazer o mesmo personagem durante algum tempo. Mas, com muita luta e com o apoio do Movimento Negro, que sempre questionou, cobrou e denunciou todas essas questões, eu aproveitei o espaço que eu tinha na mídia para me colocar. As coisas foram mudando ao longo do tempo, e hoje a gente já vê um protagonismo. Há quem diga que a nossa luta é “mimimi”, mas esses comentários negativos que volta e meia surgem na internet são para enfraquecer a nossa luta. O que precisamos é continuar lutando pelos nossos direitos, pelos nossos espaços.
Neste momento, as três novelas inéditas da TV Globo têm mulheres negras como protagonistas. Você acha que as artes ainda enfrentam desafios em termos de representatividade? Como você vê o espaço ocupado por artistas negros nas artes brasileiras?
Eu tenho 54 anos de carreira. Então, se eu disser que nada mudou desde que eu comecei, vou ser falsa. Mas as coisas foram se encaminhando a passos lentos até chegarmos neste momento, onde temos três mulheres negras protagonistas de novela. Demorou muito e acho que temos muito mais luta pela frente. Ainda temos muitos membros da nossa comunidade que estão fora de cena. Mas a cada passo, a cada conquista, é preciso festejar. Acho que o próximo desafio que precisamos enfrentar é ter mais pessoas negras em espaços de decisão. Para realmente se fazer justiça, é preciso que existam negros ocupando funções em todos os segmentos: no cinema, no teatro, na televisão e na política. No poder, de um modo geral.
A autoestima da mulher negra mudou muito desde o começo da sua carreira. Qual é a sua sensação ao testemunhar essa conquista?
Eu percebo que isso é um resultado feliz da nossa luta. Porque se você perceber os atores negros dessa geração nova, a da Taís Araújo, por exemplo, eles têm outra história pra contar. Uma história bem diferente da que a minha geração contava. É uma questão de conquista de espaço de protagonismo, que eu não tinha. Eu, Ruth de Souza, Chica Xavier, enfim, as negras da minha geração e da geração anterior, nós não tivemos esses espaços. Eu vejo esse novo momento com o coração em festa. Ainda temos muita luta pela frente, mas acho que as coisas boas têm que ser comemoradas, senão a vida fica muito amarga. Se não, a gente fica só fechado nas coisas negativas e isso não é bacana. Essa homenagem em Salvador é um desses momentos de alegria. Eu tenho estado bem ausente da Bahia, no início da minha carreira, eu estava direto em Salvador. Mas tinham poucas pessoas no protagonismo para serem convidadas e homenageadas numa data importante como o 20 de novembro. Eu acho legal passar o bastão, dividir o espaço com outras pessoas. E não só atrizes, mas negros e negras de outros segmentos que têm representatividade. Eu vejo com muita naturalidade que eu não estou mais tão presente em Salvador, mas estou acompanhando sempre e torcendo para que a nossa luta nunca esmoreça.
Como tem sido a vida aos 80 anos?
A vida anda agitada! Eu estou gravando a quarta temporada de Arcanjo Renegado [série da Globoplay]. Estou desde a primeira temporada e soube que vamos seguir no ano que vem. Também estou viajando com um show em homenagem a Caetano Veloso, o Coração Vagabundo, Zezé canta Caetano. Além disso, tenho feito participações em filmes e recebi convites para fazer três longas no ano que vem. Tenho trabalhado muito. Mas, aos 80 anos, eu também tenho priorizado meu tempo livre, sabe? Eu faço exercícios, por exemplo. Tem um personal [trainer] que me acompanha nas três aulas que eu faço por semana. Durante os fins de semana, quando eu não estou viajando, eu faço minhas caminhadas. Mas, eu gosto muito de ler. Sou muito caseira e muito mãezona. Eu gosto muito de receber as pessoas em casa para o almoço ou para jantar, eu gosto muito de estar com meus filhos. Sei que não é sempre possível, porque uma das minhas filhas, por exemplo, mora em São Paulo, e eu no Rio de Janeiro. Mas eu amo essa coisa de família por perto.
Como você avalia a sua trajetória como artista?
É muito comum que as mulheres cheguem perto e me reverenciem pela minha luta como atriz, como uma mulher negra. O que eu respondo para elas é que é preciso perseverança. Eu digo que elas não podem nunca desistir de um sonho se ele as preenche, se não há outra forma de seguir existindo. Eu fiz isso, não me arrependo e é assim que eu sou feliz.
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