MUNDO
A demolição do maior mito chinês
Por Agência Estado
Mao Tsé-tung, o líder chinês que derrotou o regime de Chiang Kai-shek, não foi o stalinista que muitos imaginam nem pretendeu instalar na China uma ditadura similar à que Stalin implantou após a vitória da Revolução Russa. Foi pior. Segundo a chinesa Jung Chang e seu marido, o historiador inglês Jon Halliday, autores do livro Mao: A História Desconhecida (Companhia das Letras, 960 págs., R$ 70), Mao sempre dependeu de Stalin, mas sua sede de poder era tamanha que não passou despercebida pelo ditador russo. Conclusão: o líder chinês conseguiu superá-lo em brutalidade, arbítrio e sadismo, segundo os autores, que o responsabilizam pela morte de 70 milhões de pessoas em tempos de paz. Jung Chang, a autora do autobiográfico Cisnes Selvagens, pertenceu na juventude à Guarda Vermelha.
Afirma, nesta entrevista conjunta com seu marido, de Londres, que Mao Tsé-tung nunca se importou de fato com os camponeses chineses. Ambos culpam o ditador pela grande epidemia de fome que matou mais de 30 milhões de pessoas nos anos 1950. De acordo com a dupla de autores, Mao, em sua pretensão de expandir o império chinês, exportou a produção de alimentos básicos para a antiga União Soviética em troca de armamentos e tecnologia nuclear. Essa é apenas uma das revelações bombásticas de Mao, que retrata o líder chinês como pai omisso e camarada detestado por seus companheiros da Longa Marcha.
P - Uma das revelações mais escandalosas do livro é que Mao teria insistido em sua desastrosa política de exportação para a antiga União Soviética em troca de armas e tecnologia nuclear, condenando milhões de chineses à fome absoluta. A senhora classificaria Mao de um psicopata comparável a Hitler ou Stalin?
R - Mao nunca foi bom economista, mas reafirmo o que escrevo em sua biografia: ele matou 38 milhões de pessoas de fome entre 1958, quando iniciou o programa chamado de Grande Salto Adiante, e 1961, quando começou a enfrentar a oposição de seus comandantes mais próximos como Liu Shao-chi, perturbado justamente por testemunhar as conseqüências dessa epidemia de fome. Liu pôde perceber em suas viagens por que as pessoas odiavam os comunistas. Mao, em 1961, ainda comandou o confisco de alimentos para exportar, mas teve de se curvar aos 7 mil representantes do partido que se reuniram em janeiro de 1962, em Pequim, e conseguiram estancar a epidemia, forçando Mao a mudar suas diretrizes políticas.
Ele nunca se importou com ninguém. Era um obcecado pelo poder e em transformar a China numa superpotência militar, nem que para isso tivesse de condenar camponeses a morrer de fome ou torturar inimigos. Não sei se o termo psicopata é suficiente para definir Mao, pois ele foi mais que isso. Foi responsável pelo extermínio de 70 milhões de pessoas em tempos de paz, como digo no começo do livro. Desconheço qualquer outro líder que seja responsável por tantas mortes.
P - A senhora defende que ele não foi um comunista verdadeiro, nem mesmo um líder que inspirasse confiança de seus companheiros comunistas. Quem foi, então, responsável pela construção do mito Mao?
R - Embora tenha nascido numa família de camponeses, Mao odiava os camponeses, especialmente o próprio pai, a ponto de lembrar dele quando outros chineses eram humilhados publicamente durante a Revolução Cultural, obrigados pela Guarda Vermelha a ficar na posição de jato (nela, os braços das vítimas são presos às costas e a cabeça, forçada para baixo). Ele costumava dizer, nessas ocasiões, que gostaria de ter visto o pai nessa posição.
Estou certa de que Mao adorava a violência do modelo stalinista, a brutalidade de seu mentor, repetindo passo a passo sua trajetória. Mao chegava ao êxtase ao testemunhar cenas de violência e, nos documentos que pesquisamos, não encontramos nada que revele sua preocupação com camponeses chineses. Ele se tornou comunista por puro oportunismo, não por ideologia. A Longa Marcha constitui a prova máxima de que até seus companheiros mais próximos o repeliam. Mao não era popular entre eles e Stalin teve de intervir para que não fosse alvo de vinganças. Acho que um dos responsáveis pela criação do mito Mao foi o jornalista americano Edgar Snow, autor do livro Estrela Vermelha sobre a China. Snow descreve-o como herói e inventa incidentes históricos como o da travessia da ponte sobre o Rio Dadu, uma batalha que nunca aconteceu de fato, porque não havia tropas nacionalistas quando os vermelhos chegaram, em 1936. Inventou também um herói que percorreu a pé as 6 mil milhas da Grande Marcha, quando agora se sabe que ele foi carregado por seus companheiros, pois Mao era preguiçoso e não tinha preparo físico.
P - Por falar em Stalin, o livro mostra como os dois tiveram uma relação próxima demais para dois líderes que, todos sabem, tinham o mesmo objetivo, o de se tornar a figura máxima do mundo comunista.
R - Até começar a pesquisa com meu marido Jon Halliday, isso há dez anos, não tinha idéia de como esse era um relacionamento tão estreito e intrincado. Havia até um plano para dividir a China, aceito por Mao para avançar e conquistar depois o mundo. Não se deve esquecer que, ao ser invadida pela Alemanha, em 1941, a União Soviética ficou enfraquecida. Muitas das esperanças de Mao caíram por terra, pois isso significava menos ajuda. Embora precisasse de Stalin, ele não seguiu suas ordens para manter os japoneses ocupados enquanto o líder russo combatia os alemães. Ele imaginava que Stalin não pudesse resistir a Hitler. Mao era impiedoso.
Aproveitou esse momento para crescer dentro da China e, depois da guerra, foi a Moscou para tratar de um novo acordo sino-soviético. No entanto, para realizar seus projetos industriais, teve de renegar valores culturais da China, pois Stalin, para conceder, quis de fato que a Manchúria ficasse sob influência soviética. Mao queria fazer da China uma superpotência. Stalin queria mantê-lo sob controle. Sua morte significou a libertação de Mao.
P - A nova geração de chineses parece menos impressionada com o passado e mais interessada em ver a China inserida no mapa do consumo, o que pode trazer conseqüências nefastas para a cultura chinesa. Como a senhora vê isso?
R - Mao é apenas um corpo morto no centro de Pequim, mas os jovens ainda são submetidos a uma lavagem cerebral. Eu fui da Guarda Vermelha como muitos jovens da minha idade. Havia pessoas que faziam coisas terríveis em nome da Revolução Cultural. Enquanto Mao nos dizia o que podíamos ou não ler, queimando livros ou fechando livrarias, ele lia todos os livros que queria. Era um cínico, um líder que desprezou a cultura chinesa. Temo que os jovens de hoje possam ser igualmente manipulados. Aconselho que fiquem atentos.
P - A Revolução Cultural de Mao Tsé-tung aconteceu em 1966, há 40 anos. Um ano após seu nascimento, Godard realizou o filme A Chinesa, revelando a influência do pensamento político do líder chinês sobre os estudantes europeus. Em sua opinião, o que fez tantos jovens fora da China acreditar num líder como ele?
R - Prefiro que meu marido responda a essa pergunta, pois não vi o filme de Godard.
P - E o senhor, viu A Chinesa?
R - Não, mas posso arriscar uma resposta, baseado no apoio de grupos conservadores de esquerda que existiam na Europa naquela época. Creio que até mesmo Sartre endossou Mao sem ter conhecimento real do que se passava na China, especialmente das atrocidades que atingiam a dignidade do povo chinês. Faço uma distinção entre pessoas como Sartre e Godard e outras que, efetivamente, queriam livrar a sociedade chinesa do jugo de um ditador.
P - A biografia de Mao incomodou editores de esquerda, que acusam o senhor de ex-maoísta arrependido, um colaborador da New Left Review que fez vista grossa e foi acrítico com relação a Mao. O que o senhor diz disso?
R - Nunca mencionei Mao num único artigo de jornal ou revista, nem mesmo na New Left Review. Tampouco sou maoísta ou fui maoísta. Descobri fatos impressionantes nos arquivos russos e não poderia ignorá-los de forma nenhuma, como, por exemplo, a antipatia que Mao despertava não só entre os russos, mas entre seus mais próximos camaradas. Isso pode ser conferido na biografia no episódio que descreve a Longa Marcha. Também não poderia apoiar um líder que condenou camponeses a morrer de fome e massacrou opositores religiosos e políticos.
P - A China é o país com maiores condições de ser a superpotência do futuro. O livro tem a intenção de usar seu passado para alertar os leitores do presente sobre as conseqüências desse poderio econômico e militar?
R - Não sou futurólogo, mas posso prever que os comunistas ainda dominarão a China por mais uma geração. Acho que os passos dados recentemente apontam para uma puxada de freio nessa máquina capitalista, pois o crescimento econômico rápido teria um custo ecológico grande não só para a China como para o restante do mundo. Considero também improvável um regime mais liberal, pois Mao institucionalizou a figura do zelador de que toda sociedade parece precisar, alguém que, em sua época, pertencia à Guarda Vermelha e aterrorizava os vizinhos com punições severas e humilhações durante a Revolução Cultural. Como essas pessoas atenderam ao chamado desses zeladores de quarteirão, engajando-se em rituais de violência? Isso é o que assusta.
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