RETOMADA
Após 10 anos, estaleiro Enseada volta a produzir no Recôncavo
Processo de contratações já começou e projeta um novo ciclo de desenvolvimento após os prejuízos causados pela operação lava-jato
Por Alan Rodrigues
No distrito de São Roque de Paraguaçu, município de Maragogipe, um gigante está prestes a despertar de um sono de mais de 10 anos. O estaleiro Enseada, onde já trabalharam mais de 7 mil pessoas, se prepara para voltar a produzir embarcações. E reacende a esperança de quem viu seus sonhos se desmanchar.
Desde o encerramento das atividades da planta, o contingente de operários foi drasticamente reduzido. Toda movimentação hoje se restringe à operação do Terminal de Uso Privado (TUP), com a carga e descarga de imensas carretas que transportam minério e grãos.
Por quase dois anos, os trabalhadores do Enseada puderam participar de um grande projeto de desenvolvimento que atraiu para São Roque e o Recôncavo, um grande número de pessoas e de investimentos. Os maiores beneficiados, claro, foram os moradores locais.
Rafaela Carqueija, 40 anos, saiu do curso de técnica em segurança do trabalho para o estaleiro, por indicação de um de seus professores que trabalhava na planta. “Eu fiquei aí um ano e oito meses, até o momento de levantar o Goliath (guindaste com capacidade para 1.800 toneladas)”, lembra Rafaela, que esperava concluir sua casa com a renda do seu trabalho. Mas os planos ficaram pelo caminho.
“Eu também tinha a pretensão de fazer uma faculdade e tive que deixar isso para trás. Com a parada do estaleiro, em São Roque não tinha mais expectativa nenhuma de trabalho. Muita gente investiu nisso aqui. Investiu em hotéis, mercados, todo mundo parou por um tempo de ter seu sonho ali realizado” relata a técnica de segurança, que guarda na memória as demissões em massa dos colegas. “Foi um momento bem marcante assim, foi triste, você ver pais de família tendo seus sonhos indo por água abaixo”.
Vou correr trecho
Para muitos, a demissão não deixou alternativa senão sair da cidade em busca de sustento. Como diz a música ‘Curvas do Rio’, de Elomar, a solução foi correr trecho e procurar uma terra para poder trabalhar.
Foi a saída encontrada pelo soldador Edelvan de Assis, 38 anos. Pai de três filhos, ele teve que deixar a família. “Aquilo ali foi um momento muito triste da nossa vida, não só da minha, mas de todo pai de família aqui do nosso Recôncavo Baiano. Quando fechou as portas, infelizmente a gente ficou desempregado. Quem é do trecho sabe quanto é difícil você largar sua família para passar 90 dias longe”, desabafa.
Conteúdo nacional
O Enseada é fruto de um investimento de cerca de US$ 1 bilhão, sendo provavelmente o maior investimento realizado em estaleiros no Brasil. O local foi escolhido devido ao calado (profundidade) da enseada que dá nome ao terminal, que iria integrar um projeto de expansão da Petrobras, com foco na produção nacional.
“Aqui estamos falando de um investimento de mais de 1 bilhão de dólares, feito justamente para atender grandes encomendas da Petrobras, a partir da Sete Brasil, que seria uma grande empresa de sondas de perfuração, que tinha na sua composição acionária nada mais, nada menos que Petrobras, Funcef, Previ, Bradesco e outros bancos que faziam parte dessa grande empresa”, contextualiza Deyvid Bacelar, presidente da Federação Única dos Petroleiros (FUP).
Com apenas 3 estaleiros funcionando no país até 2002, foi durante os dois primeiros governos do presidente Lula que a indústria naval alcançou a marca de 12 estaleiros e saltou de cerca de 2 mil trabalhadores para 84 mil pessoas empregadas em 2013. Destes, mais de 7 mil no estaleiro Enseada, oriundas do Recôncavo Baiano e Região Metropolitana de Salvador.
Lava-jato
A maré começou a virar em 2014, com o surgimento da operação Lava Jato. As investigações de corrupção envolvendo contratos da Petrobras atingiram em cheio as empreiteiras, sobretudo da construção pesada, e as obras do estaleiro foram interrompidas após mais de 85% concluídas.
“Infelizmente, com o ataque que nós tivemos à economia nacional, à indústria nacional, à engenharia brasileira, por conta dos reflexos da operação Lava Jato, a Sete Brasil tem os seus investimentos interrompidos, os aportes financeiros que eram necessários não foram feitos e, por tabela, quando a Sete Brasil deixa de fazer as encomendas aos grandes estaleiros, ela deixa também de fazer encomendas, infelizmente aqui, ao estaleiro Enseada, e temos essa repercussão negativa que completa 10 anos, inclusive, nesse ano de 2024”, lamenta Bacelar.
Segundo o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Sócio Econômicas, o Dieese, a Lava Jato custou 4,4 milhões de empregos e 3,6% do PIB do país. Deixaram de ser arrecadados R$ 47,4 bilhões de impostos e R$ 20,3 bilhões em contribuições sobre a folha. A massa salarial circulante recuou R$ 85,8 bilhões
As mudanças que se seguiram na política da Petrobras, priorizando distribuição de lucros aos acionistas, acelerando privatizações, reduzindo e cancelando investimentos, deixaram o horizonte ainda mais nebuloso em São Roque do Paraguaçu.
Recuperação
Com a retração dos investimentos e sem perspectivas de novos contratos, o Enseada, administrado pela Novonor (antiga Odebrecht), entrou em recuperação judicial em 2019 com dívidas acumuladas em R$ 3 bilhões.
Em nota, a empresa informa que “tem cumprido de forma satisfatória seu Plano de Recuperação Judicial” e confirma que “existe a possibilidade de venda de partes do ativo para pagamento dos credores”, sobretudo do Terminal Portuário.
Um fato novo, no entanto, aumentou as expectativas de retomada das atividades do estaleiro. Um contrato com a ‘LHG Mining’, mineradora que integra o grupo J&F, prevê a construção de até 80 barcaças no Enseada, com capacidade para 2.900 toneladas, cada.
O projeto deverá contar com financiamento do Fundo da Marinha Mercante e pode ser colocado em prática já em 2025, uma vez que a infraestrutura do estaleiro está pronta, dependendo apenas de pequenas adequações.
A previsão é iniciar a produção nos primeiros meses de 2025 e, no distrito de São Roque, o processo de recrutamento já está em curso. “São 300 contratações diretas e 900 indiretas”, projeta Bernardo Júnior Brasil, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Recôncavo (Stim), que acompanhou todo o drama dos trabalhadores demitidos.
A categoria está esperançosa com a possibilidade de novos contratos. Segundo a empresa, há editais para a construção de embarcações de apoio ‘offshore’ e de novas FPSOs (Floating Production Storage and Offloading) ou navios-plataforma com capacidade de produzir, armazenar e transferir petróleo e gás, que estão sendo avaliados pela companhia.
Perspectivas
Bernardo sabe que dificilmente o ritmo de 10 anos atrás voltará a ser alcançado, mas ver o Enseada voltar a produzir anima os trabalhadores e abre novas possibilidades para a economia local. “Acreditamos que não cheguemos aí a 7 mil (empregos), mas vamos chegar próximo. Acho que mais longe nós tivemos, né, agora mais perto de que nunca”, diz o sindicalista.
“A gente está nessa mesma expectativa aí de que os empregos voltem, que o estaleiro dê essa retomada, que a gente conquiste mais algumas coisas aí pela frente”, projeta Edelvan.
Junto ao desejo de recuperação dos investimentos, Deyvid Bacelar especula onde a política de investimentos poderia ter chegado se não houvesse esse hiato de 10 anos. “O Brasil, se não tivesse sofrido esse ataque, teria hoje sem dúvida uma indústria naval que estaria competindo com a China, o Japão, Cingapura e Coreia do Sul”.
Para quem esperou e acreditou um dia voltar a trabalhar no Enseada, o importante é estar pronto para esse novo momento. “A gente esperou tanto e agora vem a melhor parte né?”, diz Rafaela, que já está se capacitando para voltar a trabalhar. “Eu sabia que esse momento ia chegar e eu tinha que estar preparada”.
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