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A Primeira Doutora

Publicado segunda-feira, 06 de agosto de 2018 às 10:44 h | Atualizado em 06/08/2018, 10:45 | Autor: Marcio Luis Ferreira Nascimento*
Elena Lucrezia Cornaro Piscopia foi a primeira mulher a receber um diploma universitário
Elena Lucrezia Cornaro Piscopia foi a primeira mulher a receber um diploma universitário -

Diziam ser uma charmosa e belíssima mulher, além de extremamente inteligente. Apesar de inúmeros apelos para casar-se, preferiu dedicar-se à filosofia, à religião, à música e à matemática. A primeira mulher a receber um diploma universitário (“La Prima Donna Laureata nel Mondo”) chamava-se Elena Lucrezia Cornaro Piscopia (1646 - 1684), nascida em Veneza, Itália, no seio de uma nobre família por parte de pai (era filha ilegítima).

Aos sete anos iniciou aprendizado em grego e latim, bem como música e gramática. Além de falar fluentemente nestas línguas clássicas, dominou o espanhol, hebraico, francês, árabe e aramaico aos onze anos, recebendo o título de “Oraculum Septilingue” ou oráculo de sete línguas. Aos dezessete já era considerada uma virtuosa musicista, principalmente em cravo, harpa e violino.

Aos vários pretendentes que queriam desposá-la, ainda adolescente, informava que mantinha votos de castidade. Isto a colocava em conflitos com seu pai, Gianbattista Cornaro Piscopia (1613 - 1697), que planejava lhe arrumar um casamento vantajoso. De fato, em 1665, ela adquiriu um hábito negro da ordem dos beneditinos sem, no entanto, se tornar uma freira. Passou então a seguir o princípio religioso fundamental da Ordem de São Bento de Núrsia (480 - 543): “Ora et Labora”, que significa: “Reza e Trabalha”.

Sua vasta erudição e influência, demonstrada por um bom número de trabalhos publicados podem ainda ser mensurados por ter sido admitida em sete academias de cinco cidades diferentes entre 1669 e 1672, escrevendo, entre outras coisas, tratados, poemas e antologias. Tais academias consistiam de grupos de intelectuais (majoritariamente homens) que discutiam temas de literatura, artes e ciências.

Brilhante, extremamente dedicada e caridosa, diplomou-se em filosofia e tornou-se professora de matemática na Universidade de Pádua em 1678. Vale ressaltar que este título não foi fácil de obter, pois precisou de permissão especial para participar de aulas na universidade, que apenas concedia acesso e reconhecia diplomas para homens. Antes disto, havia tentado um diploma de teologia (em fins de 1677), mas a Igreja Católica recusou conferir-lhe tal título por ser mulher. Contentou-se com o diploma de filosofia, após uma defesa pública. Nesta, uma multidão pode ouvir-lhe por mais de uma hora defendendo-se brilhantemente perante uma banca de doutos, e sendo, portanto, laureada.

Ao cabo de sua defesa, que celebra 340 anos em 2018, Elena recebeu de seu tutor de filosofia de um livro como um símbolo por ter se tornado professora, um anel por ter vencido as discussões filosóficas, uma murça cobrindo-lhe os ombros como sinal de distinção, e uma coroa de grinaldas como sinal de triunfo.

Piscopia dominava conhecimentos de astronomia e física, em especial os recentes estudos do brilhante matemático e físico italiano Galileo Galilei (1564 - 1642) por ter como tutor um amigo deste grande cientista. Carlo Rinaldini (1615 - 1698), filósofo, físico, matemático e engenheiro militar italiano, foi um dos mentores da jovem dama e um dos primeiros depois de Galileo (de quem era próximo) a propor uma escala termométrica.

Credita-se a Piscopia uma das primeiras e mais claras noções de estatística, principalmente a que envolve o importante conceito de média, que nada mais é do que a soma de todos os números divididos por quantos números estão sendo considerados. Por exemplo, se um aluno fez quatro provas de matemática num ano, com notas 6, 7, 10 e 9, a média (dita simples) consiste na soma de todas estas notas dividida por quatro: (6+7+10+9)/4 = 8.

Um exemplo mais simples consiste em verificar que a média de três temperaturas, 27, 28 e 29 oC resulta no valor médio entre os extremos. O conceito de média ainda auxiliou astrônomos a melhor precisar os movimentos dos corpos celestes ao permitir escolher valores médios de dados em casos onde haviam muitos de uma mesma fonte, ou ainda de várias fontes diferentes e independentes, combinando-as e assim tornando mais precisas as análises. Tal procedimento auxiliava desconsiderar possíveis resultados dúbios, ou mesmo errôneos.

A origem do termo média é ainda bastante controversa. Alguns apontam o embrião no latim “medianus” (“aquele que está no meio”). A palavra latina “medium” (substantivo equivalente a “metade”) ao que parece provem do grego “meso” (adjetivo que significa entre outras coisas, “modo”) ou ainda de “meta” (“entre”, uma preposição). Muitos cientistas, de diferentes épocas e sociedades, contribuíram com um ou outro aspecto deste conceito, desde os antigos babilônios, passando por Pitágoras, Ptolomeu e os árabes, até chegar no Renascimento.

Pode-se dizer que o doutorado de Piscopia iniciou um lento avanço no reconhecimento das mulheres no seio das universidades. Apenas para se ter uma ideia, a segunda mulher a receber um título universitário foi a física e filósofa italiana Laura Maria Caterina Bassi (1711 - 1778), quase cinquenta anos depois (precisamente em 1732). Laura foi a primeira mulher a ensinar numa universidade (a de Bolonha). Já a terceira foi a advogada e jurista italiana Maria Pellegrina Amoretti (1756 - 1787) em 1777 pela Universidade de Pávia.

Embora grandes avanços tenham ocorrido desde o primeiro título feminino, ainda se ressente, no século XXI, de mais mulheres estudando nas universidades, em especial nas áreas de ciências, tecnologia e matemática. Infelizmente, não se percebe ainda políticas públicas de fomento à uma maior participação feminina. Não à toa, o lema da Universidade de Pádua em latim, “Universa Universis Patavina Libertas” significa “A Liberdade de Pádua é um Benefício Universal para Todos”. Pode-se afirmar que Elena Piscopia estava no lugar certo para receber seu devido reconhecimento.

Piscopia é, portanto, considerada a primeira mulher a obter o título de doutor aos 32 anos, com trabalhos reconhecidos e respeitados em toda a Europa. Dedicou seus últimos anos de vida aos estudos e à caridade, falecendo precocemente aos 38 anos, provavelmente de tuberculose. Foi enterrada na Basílica de Santa Giustina em Pádua, uma abadia beneditina. Há uma estátua em sua homenagem numa das escadas de acesso do Cortile Antico, no Palazzo Bo, dentro da universidade que lhe concedeu o título de doutoressa. Desde então passou a ser conhecida como orgulho e prodígio de Veneza, sua cidade natal, e um símbolo da emancipação feminina para o mundo.

*Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA

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