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Ditadura e ordem para matar

Publicado segunda-feira, 27 de julho de 2015 às 10:10 h | Autor: Emiliano José | Jornalista e escritor | [email protected]

Nos últimos dias, divulgou-se que telegrama sigiloso liberado para consulta em maio deste ano pelos EUA apontava que as forças de segurança do Brasil, no início da década de 70, tinham ordem de matar militantes da esquerda armada logo após suas prisões. Não se trata, como é obvio, de qualquer novidade, mas interessante que tal confirmação venha dos EUA. Como se sabe, o país do Norte foi um entusiasmado patrocinador da ditadura, como largamente demonstrado em vasta bibliografia e mesmo em fontes jornalísticas. "É ordem permanente entre as forças de segurança de que qualquer subversivo treinado no exterior que retorne ao Brasil será assassinado, após interrogatório, se for pego vivo", escreve em junho de 1972 o cônsul americano em São Paulo, Frederic Chapin, morto aos 59 anos em 1989. Outro telegrama, de abril de 1971, da embaixada dos EUA em Brasília, informa que "há fortes indicativos provenientes de várias fontes de que as forças de segurança estão agora mais inclinadas a eliminar terroristas importantes do que mantê-los presos depois de interrogatório".

A embaixada associou o recrudescimento da repressão à execução do empresário Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz, financiador da Operação Bandeirantes (Oban), depois DOI-Codi, e articulador de dinheiro de empresários para os órgãos de repressão. Era dinamarquês e deliciava-se em participar diretamente das torturas a prisioneiros políticos. Foi executado por militantes da esquerda armada, parece-me que da Ação Libertadora Nacional e Movimento Revolucionário Tiradentes, no dia 15 de abril de 1971. Quem quiser conhecer sua personalidade, sua história assista ao filme Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski. Ali desnuda-se não só a história de Boilesen como, também, a participação decisiva de parte importante do empresariado na sustentação da ditadura. No telegrama de Frederic Chapin, revela-se que há "vários relatos" que chegaram ao consulado sobre maus tratos de presos políticos, "ou seja, tortura, negativa do devido processo legal e outros abusos". Segundo o cônsul, a principal fonte de tais informações era a Igreja Católica. Ele afirma: "as alegações das autoridades da Igreja têm sido confirmadas por outras fontes em alguns incidentes específicos". Não creio possa a morte de Boilesen ter sido a responsável pelo recrudescimento da repressão. A escalada começara logo após o AI-5, de dezembro de 1968, ainda sob Costa e Silva, e ganha intensidade com Garrastazu Médici, que não relutava na ordem para matar.

Para citar nomes famosos, Marighella já havia sido assassinado em novembro de 1969 em São Paulo, Lamarca será morto em setembro de 1971, tantos outros tombam sob Médici. Para não ser injusto, Geisel, que sucede Médici, também vai dizer que tinha que continuar a matar, como está registrado em livro de Élio Gaspari. E matar não só militantes da esquerda armada. A ditadura viveu uma primeira fase, com Castello Branco, onde já se matava, menos do que na sequência. Médici foi o ápice. Geisel prosseguiu. Com Figueiredo, as pressões do movimento popular fizeram com que a ditadura apressasse a política da distensão iniciada com Geisel, e aqui a repressão recuou. Em 1979, veio a anistia. Em 1985, fim do reinado de terror. Curioso, como disse no início, sejam os EUA a revelar meio envergonhadamente crimes da ditadura. Tais crimes, no entanto, nem sequer arranhavam as relações privilegiadas com o regime militar. A ditadura brasileira, contando para o seu surgimento e continuidade com o indispensável apoio norte-americano, abriu as portas para uma sucessão de regimes militares no Continente. Chile, Argentina, Uruguai sofreram os rigores do terror patrocinado abertamente pelos EUA, cujo apreço pelos direitos humanos e pela liberdade nunca ultrapassou os limites da retórica. Torcemos para que mais e mais documentos como estes sejam revelados de modo a que muita coisa ainda não divulgada, e vinda de fontes insuspeitas, possa desnudar as veias abertas da América Latina, e fortalecer nossa convicção de que ditadura nunca mais. A democracia é o único caminho para os povos latino-americanos.

EMILIANO JOSÉ ESCREVE 2ª-FEIRA, QUINZENALMENTE

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