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Galeria F: memorial da ditadura

Publicado segunda-feira, 24 de agosto de 2015 às 10:39 h | Autor: Emiliano José | Jornalista e escritor | [email protected]

A voz embargou. O secretário de Administração Penitenciária e Ressocialização, Nestor Duarte Neto, não suportou quando tomou a palavra para entregar documentos dos anos 70 da Galeria F da Penitenciária Lemos Brito à Comissão Estadual da Verdade no dia 11 de agosto. Cerimônia modesta, em sala da própria secretaria, cheia de simbolismo, talvez tenha provocado em Nestor lembranças de uma família marcada pela construção da democracia e resistência à ditadura, e também pela repressão, lembranças do pai e professor Marcelo Duarte, do avô e professor Nestor Duarte, os dois de notável presença na luta política e na elaboração intelectual. O avô foi um intransigente defensor da reforma agrária. Os documentos foram compilados, por determinação do secretário, por insistência do diretor da Penitenciária, Everaldo de Carvalho, e especialmente pela dedicação voluntária da historiadora Cláudia Trindade, que mergulhou num amontoado de papéis, completamente abandonados, muitos rasurados, para recuperá-los, digitalizá-los, e entregar assim um legado inestimável para a história da ditadura na Bahia. O lote entregue na cerimônia refere-se ao período 1970-76. O restante do acervo, entre 1977 e 79, será concluído e colocado à disposição da Comissão da Verdade brevemente. A Galeria F, um conjunto de 20 celas situado no chamado Corpo IV da Penitenciária, notabilizou-se por acolher prisioneiros políticos entre 1970 e 79.

Neste jornal, iniciei, em 1999, uma série denominada Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento, depois transitada para livros, a esta altura no quarto volume, sem que até agora tenha conseguido cumprir a promessa de revelar a experiência dos presos no interior da Galeria, com toda sua riqueza, solidariedade, tristeza, aprendizado. Ali cumpri pena de quatro anos, entre 1970 e 74, e depois dediquei-me a recuperar a trajetória de tantos que por ali passaram, e como símbolos dessa época lembro os nomes de Theodomiro Romeiro dos Santos e Paulo Pontes da Silva, os dois do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e que experimentaram o mais longo período de prisão. A compilação de tais documentos talvez apresse a entrega do que prometi há 16 anos. São registros simples. Livros de anotações diárias sobre os presos políticos feitos pelos guardas plantonistas: duas, três, quatro linhas, passagem de trabalho de um para outro, indicando normalidade ou alguma "alteração", saída de presos para médicos, visitas recebidas, e em tais registros vão saltando os nomes de todos os que por lá passaram. E também prontuários dos presos, o que permite uma leitura mais ampla sobre cada um deles, sua circunstância histórica, naturalmente sob o olhar e visão da ditadura. As tiranias, no entanto, ao desenvolver o seu discurso, deixam-se desnudar, e é o que acontece com tais registros, numa visão ainda aligeirada que seja.

Penso na leitura feita quando chegaram à Galeria F os primeiros revolucionários por volta de meados de 1970 - Rui Pinto Patterson, Nemésio Garcia, Getúlio Gaspar Gouveia, Airton Ferreira, se me recordo bem. Eram então denominados "presos extraordinários". Depois, ganhamos todos a alcunha, esta usada durante muito tempo, de "subversivos". Nunca nos incomodamos com isso. Mais tarde, na fase final, ascendemos: passamos a ser presos políticos, como de fato éramos. A greve de fome que realizamos entre, creio, 20 e 30 de abril de 1974, quando só ingeríamos água, era registrada no começo como "recusa à alimentação", para nos últimos dias ser chamada simplesmente como "greve de fome", como de fato era. São registros de um primeiro olhar. Pretendo voltar a tais documentos. Acentue-se que o secretário Nestor Duarte Neto, animado com os documentos, já concluiu pela não-demolição do prédio onde se localiza a Galeria F, e está disposto a fazer dela um Memorial da Ditadura, de modo a que as novas gerações possam ter conhecimento de um período histórico de terror e de arbítrio, repudiado por todos os que tenham um mínimo de consciência democrática. Por tudo, é necessário insistir, repisar: democracia sempre! Ditadura nunca mais!

EMILIANO JOSÉ ESCREVE 2ª-FEIRA, QUINZENALMENTE

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