ARTIGO
In vino veritas, na poesia, desde Baudelaire
De acordo com Plínio, o Velho, o vinho revela verdades
Por Florisvaldo Mattos*
"De acordo com Plínio, o Velho, o vinho revela verdades. Esta expressão é atribuída ao poeta grego Alceu de Mitilene, mas foi bem adaptada ao latim nas obras do naturalista romano Caio Plínio. O estado de embriaguez liberta a autocensura e desbloqueia, até mesmo, os mais primitivos sentimentos. O álcool desinibe, empodera e estimula ações, cuja ética civilizatória obrigaria limites."
Com esse parágrafo, o professor-titular de Gastro-Hepatologia, da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal da Bahia, Raymundo Paraná, abriu seu artigo de fundamento ponderativo e crítico, publicado no Jornal A TARDE, edição de 28/02/2024, contra a nuvem vulcânica de horrores, que na atualidade vem lançando, “na escuridão da noite”, sobre a mentalidade coletiva lavas capazes de forjar “um cidadão temente, submisso e destituído de senso crítico, para entender que é ele mesmo seu algoz”, como aconteceu com Caio Plínio Segundo, que morreu em Pompeia, atingido pela erupção do Vesúvio, em 79, d.C, com 56 anos de idade.
Esse lema veio à tona na Idade Média, evocado por bispos, que cultivavam vindimas e, delas, auferiam proveitos pessoais e místicos, mas já apontavam paralelo em versos de Horácio e em Plinio, o Velho, como tradução de um provérbio originado na Grécia, pelas mãos do citado poeta Alceu, que, ao se assentar no prestígio do Latim, ganharia o mundo, ao ser aclamado em banquetes, como alegre exaltação ao amor e à bebida. Segundo o testemunho de Alceu, em grego o provérbio dizia: Vinho, meu filho, e verdade. E, segundo inúmeras fontes, foi citado por Platão, Teócrito e Plutarco, entre outros. Numa delas (Renzo Tozi, Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, 1991), todos esses ditos que ganharam o mundo, desde a Idade Média, "fazem referência à liberdade com que o bêbado sempre se expressa". aludindo a um trecho de O Banquete, de Platão, citado por estudiosos, que menciona "a sacralidade e a inviolabilidade dos pactos sancionados com o vinho".
Daí para frente, espalhou-se pela Europa, por todo o Ocidente, ao ponto de surgirem variantes, ainda em latim, tais como Vinum laetificat cor homininis (o vinho alegra o coração dos homens), com fundamento na Ilíada, de Homero, e nos Salmos, como um espelho da mente; Nunc est bibendum (Agora é preciso beber). pescado numa ode de Horácio, e Inter pocula (Entre as taças), cuja fonte é um trecho das Geórgicas, de Virgílio e, para mim, a clara origem de nosso popular tim-tim.
Tanto esse lema latino se propalou por todas as línguas modernas, especialmente entre as neolatinas, ao ponto de, na França, tornar-se significativa esta: Avant Noé les hommes, n´ayant que de l´eau à boire, ne pouvaient trouver la verité ( Antes de Noé, os homens, não tendo água para beber, não podiam encontrar a verdade), sendo lógico que a solução seria a bebida, desde que Noé, segundo narrativas assentadas no Gênesis, ao descer da Arca, seu primeiro lavor foi plantar uma vindima.
Passei então a imaginar a presença do vinho na arte, com maior força na poesia e, de início, logo me veio à mente a famosa separatriz, Le vin (O vinho), que consta da obra As Flores do Mal (1857), de Charles Baudelaire, celebrando as virtudes dessa bebida para a vida humana, mas me vi subitamente instigado a buscar a incidência dessa insigne bebida em poetas de algumas línguas, incluso em português, além do francês imperador da modernidade, em tradução do saudoso poeta e crítico literário Ivan Junqueira.
Nesta venturosa temeridade, resolvi também me fixar na figura do naturalista romano Plínio, o Velho, ao recobrar do grego e plantá-lo no Latim esse lema, e, ante tamanha bem-sucedida escolha, lembrar-me a infelicidade que dele se apossou, estando na praia, quando a tragédia da erupção do Vesúvio, levou-o a morrer, desde que na condição de almirante da frota de Miseno, decidiu deixar no porto seus marinheiros, para inteirar-se do horror que se abatera sobre Pompeia.
A partir dessa trágica memoria, subitamente me veio à mente dramático poema de Ruy Espinheira Filho, que tem como referência o destino fatal de Plínio o Velho, naturalista empenhado em descobrir os segredos da natureza, que morreu desamparado pela ciência, sob as chamas do Vesúvio e os gases venenosos despejados pela que ficou com o apelido em latim de nubem inusitata (nuvem inusitada, desconhecida). É esse heroico poema que transcrevo alguns excertos adiante.
CHARLES BAUDELAIRE (1821-1867)
A alma do vinho
A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E sei peito bastante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te da esposa embevecida;
A teu filho farei a força e a cor
E serei para tão terno atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!
Charles Baudelaire , Petits poémes en prose, 1869.
VINHO NA OBRA DE POETAS BAIANOS
GODOFREDO FILHO (1904-1992)
SONETO DO VINHO DO PORTO
Fruto em verde ou de ígneo e azul, tocado
da música da alva. Ó tessitura
de esférico sabor, lúdico aroma
de pomo etéreo. Os beijos que não são.
Desliza em rota insone. E eu te procuro,
ó domador do tédio. E, travo de mel,
e teu conúbio vegetal ressumbram
no liquefeito olhar das feras bravas.
Que do xisto azumbrado a fulva luz
tornada em sumo e veludoso gosto
por sobre a calcedônia do desejo.
Vinho que sabe a amor sem fim, ocíduo
clarão que incide às tardes sobre o Douro,
ou de Andrômeda o riso e o de Canopo.
Godofredo Filho, Irmã Poesia – Seleção de Poemas. 1923-1986, pp. 245-257, 1987
SONETO A DEZ DIAS DE COMPLETAR 60 ANOS
Ruy Espinheira Filho
Esta saudade: a manhã que aporta
como um filhote de dragão marinho
cujo olhar se compõe em terso vinho.
E logo eis que o vinho é árduo. E então aporta
a noite. velas tintas de outro vinho
em que se esgarça a luz do azul-marinho
como que num sabor de lua morta.
E assim é: lago obscuro, um vago vinho
em marulha a voz de outras idades
a recontar os contos do caminho
até este dia: suores, vanidades
- tudo valeu. Um vinho que chora os vinhos
Idos em que se embriaga: estas saudades.
Ruy Espinheira Filho. Estação Infinita e outras estações. Poesia Reunida (1966-2012). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, pág. 347, 2012.
ITABUNA, 1950
(Bar, Jazz, Bogart)
Tinha tempo bastante a desfrutar
Konstantinos Kaváfis (1863-1933)
Florisvaldo Mattos
Baco adora quando desço a praça
Adami, caminho do Elite Bar.
Lá (no bar de Hemetério), busco o morno
canto, próximo às mesas da sinuca;
observo os jogadores do apostado,
os ases das tacadas. O maior,
Zito Maleiro, já tuberculoso,
captura a solidão da bola sete;
o infinito resvala sobre o verde
espaço de luz acabando o jogo.
No ambiente etéreo, Raleu, um Gable
de cabaré no rosto juvenil,
confere ares de sonho ao botequim.
O garçom vem. Peço um vinho do Porto.
Ali, flagro o soluço do gargalo,
o intumescimento da taça e o rubro
trincolejar do vidro satisfeito.
As vitrinas do balcão, as prateleiras
alojando garrafas de bebidas.
A roda de gamão; o espelho e o rádio
Philips. Na sequência das notícias,
um julgado de saxes e trompete:
Duke Ellington, atacando “Perdido”,
acende um risco de néon na noite.
Sorvo o vinho do Porto, calmamente.
Atento o ouvido para o andar de cima,
ouço o ruído abafado da roleta
na sensação das coisas clandestinas.
Chegaram os amigos. Planejamos
o que faremos do frescor da noite.
Saímos. Vamos pela Rua da Lama,
em direção à Zona, ao Bar de Juca.
Lá ficamos até de madrugada.
Por que pensar na ciência dos abismos,
se temos muito tempo pela frente?
Antes fazemos hora, indo ao cinema.
Subimos a praça. Nunca perdemos
em nossa idade um filme de Bogart.
(Florisvaldo Mattos. A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996)
UAÇAÍ MAGALHÃES LOPES
VAMOS BRINDAR NOSSO PORTO
Jamais serás derrotado,
pois de mim és professor.
Contigo sou premiado,
companheiro e trovador.
Amanhã, nós brindaremos
este nosso versejar.
Ora, ambos já vencemos,
resta o prazer de brindar!
E que venham os amigos,
amanhã, à confraria.
A vida, dizem os antigos,
é vivida a cada dia.
Se o que vive estar morto.
Vamos brindar nosso Porto!
Quarta-feira, 7 de maio de 2014, in Tertúlia Democrática, entre telúrica e gustativa.
*Florisvaldo Mattos é jornalista e poeta. Pertence à Academia de Letras da Bahia)
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