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Medicalizacãoe mal-estar

Publicado segunda-feira, 07 de setembro de 2015 às 08:21 h | Atualizado em 07/09/2015, 10:57 | Autor: Emiliano José | Jornalista e escritor | [email protected]

Há zonas de sacralização do conhecimento, a pretender impedir os chamados leigos, pobres coitados, de opinar, sob pena de serem jogados à fogueira. A área da saúde, uma delas. Sempre me incomodou o termo paciente - cheguei a discutir isso uma vez com minha médica, Mônica. Por que paciente? E fui entender por caminhos próprios - quem vai ao consultório terá de ser sempre paciente, por todas as razões, inclusive pela indiscutível autoridade à sua frente, cujo diagnóstico dificilmente é alcançável pelo senso comum. E curioso é que o tal diagnóstico muitas vezes é controverso, quanto mais se o paciente for a mais de um médico. Faço a introdução, para entrar no assunto da medicalização. Havia conversado com meu amigo Cláudio Carvalho, psicanalista, disposto a compartilhar um artigo tratando do tema. Me sentiria mais seguro, questão de autoridade. Como não conseguimos encontrar tempo para compatibilizar agendas, me arrisco sozinho. Evidentes os avanços da medicina e o quanto os medicamentos contribuíram para prolongar a vida, para enfrentar as doenças. No entanto, absorvidos pela acumulação de capital, transformados num dos negócios mais lucrativos do mundo, os medicamentos, alçados à condição de mercadoria, passam a entrar na dança diabólica do mercado, cuja preocupação não está propriamente voltada para o bem-estar do paciente. A produção de medicamentos, que cresce em proporção espantosa, hoje volta-se, em inúmeros casos, para atender à expansão do negócio, não necessariamente para a saúde em sentido integral.

A automedicação tornou-se uma prática comum, e isso, longe de atingir as causas mais profundas da doença que pretende combater, ataca tão somente o sintoma. E, ao invés de promover a cura, acaba por prolongar o sofrimento do paciente, que volta ao remédio para atenuar os efeitos já crônicos. Há médicos que mal ouvem seu paciente - ei-lo de volta, sempre paciente - e logo prescrevem o medicamento, às vezes amostra grátis fornecida por um laboratório. E o paciente, então, muitas vezes, acostuma-se com o remédio prescrito, e tome-lhe automedicação na sequência. O corpo nunca tem tempo para reequilibrar-se com seus próprios recursos. De meu pai, sempre ouvi frase sábia, quando o via com alguma coisa que o incomodasse: "a natureza reage". Na sociedade contemporânea ocidental, a natureza não tem mais essa chance. Pretende-se sempre ter a medicação como uma muleta da natureza. Christian Ingo Lenz Dunker, autor do recente "Mal-estar, sofrimento e sintoma", livro estimulador de tantas controvérsias, fala da tendência do crescimento generalizado da medicalização e das intervenções farmacológicas no âmbito da saúde mental, especialmente a partir dos anos 2000. O início do novo milênio é marcado pela expansão desmedida da medicalização, e Dunker ressalta o aspecto da saúde mental em sentido amplo, ao dizer que não se podem desconhecer os reais efeitos "de modulação da experiência subjetiva induzidos pelas substâncias farmacológicas".

Aquilo que chamamos personalidade, a experiência subjetiva de cada um, com toda sua carga cultural, psicológica e social, o sofrimento inevitável da existência humana, tudo isso passa a ser modulado pelos mais diversos medicamentos. Estes podem ajudar a refrear a tristeza, a produzir tranquilidade, a refrear emoções, a ajudar o sono, contribuir para energizar, enfrentar traumas, superar decepções, a gosto do freguês. O amplo mercado de medicamentos mergulhou no cérebro humano disposto a fazer modulações ou produzir o que Dunker chama de "zonas artificiais" de contenção, de excitação, de anestesia - muros de proteção contra o mal-estar e zonas de exceção contra o sofrimento. A espécie humana vai perdendo o direito de enfrentar o mal-estar, de superar a angústia que a existência inevitavelmente coloca à sua frente desde que adquiriu consciência de sua finitude. Ao menos enfrentar tudo isso com seus próprios recursos, com sua específica capacidade. Sem muletas. Talvez, quem sabe, até com amuletos. Sobreviver ao sofrimento, ao mal-estar, superando-se em meio a tormentas. Sem as drogarias, salvo excepcionalmente.

EMILIANO JOSÉ ESCREVE 2ª-FEIRA, QUINZENALMENTE

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