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Príncipe da matemática deixou grande legado para a humanidade

Publicado segunda-feira, 02 de abril de 2018 às 12:08 h | Atualizado em 02/04/2018, 12:17 | Autor: Marcio Luis Ferreira Nascimento*
Gauss se tornou um dos maiores matemáticos da história
Gauss se tornou um dos maiores matemáticos da história -

Deve ter sido um dia daqueles naquela escola... Crianças por volta de dez anos, correria, gritos, muito barulho, bagunça – até a chegada de um professor. Austero, de forma a deixar todos concentrados numa tarefa, pediu silêncio e que somassem todos os números inteiros entre 1 e 100, escrevendo o resultado em placas de ardósia situadas em suas carteiras assim que terminassem. Com isso, imaginou, teria paz e tranquilidade por pelo menos meia hora.

No entanto, um garotinho levantou-se em poucos minutos e escreveu o resultado: 5050, dizendo no dialeto alemão local: ligget se! (algo como “aqui está!”). O professor, provavelmente entre atônito e irritado, perguntou como ele teria feito a conta em tão pouco tempo. E a resposta foi mais ou menos assim: a maioria pensa na solução mais simples de somar, que é efetuar 1+2 = 3; (1+2)+3 = 3+3 = 6; (1+2+3)+4 = 6+4 = 10, e assim por diante. No entanto, há outras maneiras de se fazer esta conta. Uma delas é observar que a soma dos números extremos da sequência, 1 e 100, resulta na mesma soma que o segundo e o penúltimo números, 2 e 99; e é o mesmo resultado da soma entre o terceiro e o antepenúltimo números, 3 e 98, e assim por diante, até a última soma: 50+51. Como todos resultam em 101, e existem cinquenta pares de números somados, basta apenas multiplicar 101 pelo número 50, totalizando 50 ´ 101 = 5050.

O menino em questão era nada mais, nada menos que o jovem Johann Carl Friedrich Gauss (1777 - 1855), que se tornou um dos maiores matemáticos de todos os tempos. Nascido de uma família muito, muito, mas muito pobre de camponeses – pai jardineiro e pedreiro (Gerhard Dietrich Gauss, 1744 - 1808), mãe tecelã e analfabeta (Dorothea Benze Gauss, 1742 - 1839), tinha praticamente uma vida direcionada aos trabalhos manuais. No entanto, pelo brilhantismo e precocidade, esta criança muito especial encontrou suporte e apoio de sua espirituosa mãe e de um inteligente tio (Johann Friedrich Benze, c. 1759 - 1808) que fizeram de tudo para que o menino fosse estudar numa escola, e não trabalhar na colheita, livrando-o, e consequentemente seus pais e irmãos, da pobreza quase absoluta.

Num golpe de sorte, através do mesmo professor da escola, Jürgen G. Büttner (faltam registros detalhados sobre sua pessoa), e seu jovem assistente (Johann Christian Martin Bartels, 1769 - 1836), Gauss ficou conhecido pelo duque de sua cidade natal, Braunschweig. Assim, Karl Wilhelm Ferdinand (1735 - 1806) ficou impressionado por este e diversos outros feitos do então garoto, protegendo-o até sua morte, tornando-se seu benfeitor. O duque garantiu portanto recursos na forma de uma pensão para que Gauss continuasse a estudar e tivesse meios de subsistência, não só para si como para toda a família - mas sem luxo.

A história da soma dos primeiros cem números descrita acima é incerta. Foi registrada pela primeira vez pelo geólogo alemão Wolfgang Sartorius (1809 - 1876) no livro Gauss zum Gedächtnis (algo como “Gauss, um Memorial”, vide pág. 12) em 1856. Esta foi a primeira biografia, publicada um ano após o falecimento do grande matemático. Sartorius foi colega de Gauss na mesma universidade onde trabalhou uma boa parte de sua vida, e o descreveu como uma criança-prodígio (wunderkind), mas não detalhou a história envolvendo a soma dos cem primeiros números, escrevendo apenas eine arithmetischen Reihe (ou “uma progressão aritmética”) na primeira versão, o que não diz muito. Muitos outros autores, em diversas épocas, recontaram a história da célebre soma gaussiana.

No entanto, foi a bisneta do próprio matemático, Helen Minna Worthington Gauss (1881 - 1970), que traduziu o livro de Sartorius para o inglês em 1966, e quem portanto muito mais tarde forneceu detalhes da conta envolvendo a célebre soma dos 100 primeiros números, conforme observou o escritor americano Brian Patrick Hayes (c. 1952) em sua prestigiada coluna no volume 94 da revista de divulgação científica Scientific American (Gauss’s Day of Reckoning, 2006).

Então, de acordo com Sartorius, na nova versão, traduzida pela bisneta de Gauss, a história foi contada pelo próprio menino, mas muito, muito tempo depois, já muito, muito velho, aos seus entes queridos e amigos. Certamente o jovem Gauss, enquanto prodígio, poderia ter efetuado tal conta em tão tenra idade. No entanto, a história é provavelmente apócrifa devido à tendência de pessoas de mais idade, em geral, ressaltarem atributos e ações que não devem ter correspondido exatamente aos relatos.

Tanto que o matemático e historiador escocês Eric Temple Bell (1883 - 1960) registrou em sua biografia do grande Gauss que o mesmo gostava de admitir, já velho, ter aprendido primeiro a contar antes mesmo de falar (conforme o livro Men of Mathematics: The Lives and Achievements of the Great Mathematicians from Zeno to Poincare, de 1937). Mas isto não diminui em nada o exemplo em sala de aula – qualquer professor pode utilizar esta curiosa e inspiradora história para ilustrar e ensinar como somar rapidamente números em sequência de um modo curioso e elegante.

Gauss contribuiu, em sua vida longeva, com diversas áreas das ciências, dentre elas: teoria dos números, análise matemática, estatística, geodésia, geometria diferencial, geofísica, astronomia, eletroestática e óptica, influenciando vários campos do saber humano. Por exemplo, tomou conhecimento, por volta de 1801, de uma incrível descoberta astronômica – alguns chamavam de asteróide, outros de planeta-anão – denominado Ceres, situado entre as órbitas de Marte e Júpiter. Havia pouquíssimos dados e uma grande reticência a respeito – mas nada disto impediu Gauss de propor um novo método matemático para traçar a trajetória do planeta com o que se tinha em mãos, elaborando pela primeira vez o hoje denominado método dos mínimos quadrados, muito útil em várias aplicações científicas. E sim, o astro foi observado novamente tempos depois na órbita sugerida pelo jovem matemático, totalmente de acordo com sua predição.

Gauss não era apenas teórico. Em 1833 propôs e construiu, junto com seu colega alemão e também professor de física Wilhelm Eduard Weber (1804 - 1891), o primeiro telégrafo eletromagnético, permitindo a comunicação entre ambos a partir de uma distância de 1,2 km – e muito tempo antes do físico e inventor americano Samuel Finley Breese Morse (1791 - 1872). Em particular, há uma importante lei do eletromagnetismo que leva o seu nome, estabelecendo uma relação entre o fluxo de campo elétrico, que passa através de uma superfície fechada, com a carga elétrica que produz tal campo e se encontra dentro do volume limitado por esta mesma superfície.

Em linhas gerais, Gauss contribuiu para a medida do mundo, pois observou as estrelas e planetas, auxiliando na construção de uma nova matemática para o delineamento de quaisquer órbitas; desenvolveu uma lei da natureza que explica o funcionamento de máquinas eletromagnéticas; pode-se ainda destacar sua busca de um modelo acurado para determinação de posições geográficas no globo terrestre... em 1817 – algo bastante comum de fazer no presente, precisamente duzentos anos depois – através de ferramentas como o Google Earth ou Google Maps. Em conversas com o amigo Sartorius, Gauss admitiu que a matemática deveria ser considerada a “Rainha das Ciências”, e assim foi lembrado em suas memórias. E não por acaso foi intitulado Princeps Mathematicorum, ou “príncipe da matemática”.

A vida do nobre matemático não era apenas feita de glórias. Gauss passou por grandes dificuldades familiares quando adulto – talvez a mais traumática tenha sido a morte da primeira esposa, Johanna Elizabeth Rosina Osthoff (depois Gauss, 1780 - 1809), com quem teve três filhos. Desenvolveu um quadro de ansiedade e depressão que parcialmente foi resolvido ao se casar novamente, mais precisamente com uma amiga da esposa (Friederica Wilhelmine Waldeck – depois Gauss, 1788 - 1831) no ano seguinte, e teve com ela outros três filhos. O lema preferido de Gauss, como gostava de dizer para todos os jovens que lhe procuravam, ao fitar seus belos e penetrantes olhos azuis, era: “Pauca Sed Matura”, que pode ser traduzido por “Pouco, mas Maduro”.

Diferentemente da maioria das pessoas, assim são os matemáticos: escrevem pouco, de modo sucinto, e ao mesmo tempo estabelecem regras e leis absolutamente gerais, válidas para todo o universo. Em particular, neste período incrível na história humana, de informações cada vez mais rápidas, e também de falsas noticias, verdadeiros venenos da mente, a mensagem de Gauss é bastante útil e atual: escrever pouco, de forma sucinta. O volume de informações deveria crescer, mas em termos de qualidade, não com tantas bobagens e inverdades misturadas a informações relevantes. Em suma, não se pode esperar muitas mensagens de qualquer rede social provenientes de um matemático...

Gauss imaginava o conhecimento como uma árvore que deveria fornecer poucos frutos, mas maduros. Para ele, o esforço de cada cientista em busca da perfeição deveria seguir este lema, passo a passo: um, depois dois, depois três... – talvez aprendendo primeiro a somar rapidamente números em sequência, para depois, quem sabe, progredir...

*Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA

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