OPINIÃO
Subir a colina:busca da transcendência

Por Maria Stella de Azevedo Santos | Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá

Amanhã, muitas pessoas estarão subindo a "sagrada colina" para louvar o Senhor do Bonfim. É uma emocionante festa popular, de cunho religioso, onde se pode sentir os mais importantes componentes de uma boa prática de relação com o divino: peregrinação (caminhada da igreja da Conceição da Praia até a igreja do Senhor do Bonfim); purificação (lavagem das escadarias), sacrifícios por graças alcançadas ou ainda por pedidos a serem realizados...
Colina, morro, montanha, acidentes geográficos de profundo significado simbólico para diversas e diferentes tradições religiosas e culturais. Enquanto a subida de uma colina é a representação simbólica de uma batalha superada, a subida de uma montanha indica que a guerra foi vencida por completo.
A diferença maior entre uma colina e uma montanha é a altura de cada uma delas, o que demonstra uma menor ou maior dificuldade de chegada até o cume. A tentativa de chegar ao cume significa que a transcendência e a elevação espiritual podem ser atingidas.
Os montes, morros, colinas e montanhas, para a cultura religiosa do povo yorubá, são representados por um orixá que atualmente é muito pouco conhecido e, consequentemente, muito pouco cultuado. Ele é o orixá Òkè.
Conta o mito que antes de se tornar montanha, Òkè era uma simples colina que surgiu do fundo do oceano. Òkè foi a primeira terra firme que a humanidade pisou. Afinal, no início dos tempos tudo era água, e os homens não conseguem viver nem no fundo do mar, nem sobre ele. Em virtude desse feito, Òkè era amado e cultuado por muitos, sendo por esse mesmo motivo invejado por alguns, que desejavam até destruí-lo.
Sabedor de que uma conspiração contra ele estava sendo armada, e como não possuía armas, uma vez que é um orixá funfun, orixá que se veste de branco para propagar a pureza, Òkè buscou ajuda com os divinadores que lhe aconselharam a colocar oferenda nos quatro cantos da cidade, pois o número quatro significa solidez e equilíbrio. Quando Òkè foi atacado, nada de ruim lhe aconteceu. Ao invés disso, seu potencial foi crescendo, crescendo cada vez mais. A colina Òké se transformou em uma montanha, levando consigo seu povo que era pacífico e silencioso.
As elevações montanhosas simbolizam constância, permanência, estabilidade, quietude, equilíbrio... A difícil escalada desses acidentes geográficos implica uma forte determinação, em um movimento firme, preciso, cauteloso e constante, onde a força de vontade é imperiosa. Afinal, elevar-se espiritualmente não é uma tarefa fácil, mas a chegada ao cume, que implica um encontro com um estado absoluto de pureza, é uma felicidade ímpar, intransferível e incomensurável.
Os mitos podem ser aproveitados de formas múltiplas por todos que os conheçam: religiosamente, psicologicamente, culturalmente e pelo sistema educacional. As escolas encontram nos mitos de orixá Òkè uma verdadeira fonte de conhecimentos a serem transmitidos nas aulas de geografia.
Não mais é possível ignorar a lei 11.645/2008, que determina que o ensino da cultura negra e indígena seja obrigatório nas escolas. Ensinar cultura não é doutrinar religiosamente ninguém. Repito, sem cansaço, que fé não se impõe, ela é uma bela flor que não precisa ser plantada, ela nasce naturalmente nos terrenos férteis.
Aproveitando o momento em que os brasileiros sobem a "colina sagrada" transmito um interessante mito de orixá Òkè, que pode ser utilizado como mecanismo de instrução escolar:
Com o surgimento de Òkè, o nosso planeta que era constituído só por águas, as quais eram comandadas pela deusa Olokun, pôde ser por fim habitado por deuses e homens, tendo todos eles uma função a ser executada. Sentindo seu espaço roubado e seu poder diminuído, Olokun ficou enfurecida e determinou que de suas águas surgissem um tsunami que fosse capaz de invadir as terras, retomando assim o espaço que era anteriormente seu. Olodumare, o Deus Supremo, em nome do equilíbrio universal, nunca pode permitir que suas ordens sejam descumpridas, por isto ordenou que de Òkè fosse formada uma cadeia de montanhas capaz de isolar as águas de Olokun.
Siga o A TARDE no Google Notícias e receba os principais destaques do dia.
Participe também do nosso canal no WhatsApp.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes