O PESO DA CANETA
Comércio ilegal de canetas emagrecedoras: um desafio à segurança e saúde em Salvador
Portal A TARDE mostra o que acontece por trás de um cenário marcado por uma sequência de ações criminosas
Por Victoria Isabel

Nos últimos meses, temos nos deparado com um crime até então pouco comum na capital baiana: o roubo a farmácias em busca de um medicamento específico: as canetas injetáveis amplamente utilizadas para emagrecimento. O prejuízo já ultrapassa os R$2 milhões, enquanto o comércio irregular desses produtos põe em risco não apenas a segurança, mas também a saúde da população.
De acordo com especialistas, o aumento dos casos de contrabando e roubos de canetas emagrecedoras em Salvador evidencia a consolidação de um mercado paralelo que, além de movimentar milhões ilegalmente, coloca em risco a saúde pública, uma vez que, além de serem produtos de uso controlado, vendidos somente com prescrição médica e dosagem individualizada, o armazenamento e o transporte das canetas exigem cuidados específicos: caixas térmicas apropriadas, embalagens para cada tipo de substância e dispositivos que monitoram a temperatura em tempo real.
Casos revelam rede criminosa crescente
Dados recentes da Polícia Civil e da Receita Federal mostram uma sequência de ações criminosas bem articuladas e voltadas exclusivamente para a subtração desses medicamentos, principalmente Ozempic, Wegovy, Mounjaro e Synedica Retatrutide.
Em março deste ano, a Receita Federal apreendeu 100 canetas do medicamento Mounjaro no Aeroporto Internacional de Salvador. O material estava escondido sob a roupa de um passageiro de 22 anos.

Já no dia 4 de junho, outro caso emblemático: uma passageira de 31 anos foi detida no mesmo aeroporto com 90 canetas injetáveis presas ao corpo, avaliadas em cerca de R$ 400 mil. Ela havia embarcado em Madri e tinha como destino final a cidade de Fortaleza. A operação foi resultado de um monitoramento da Receita Federal, que já acompanhava os movimentos da suspeita.

Os assaltos também se intensificaram em unidades de farmácias de redes conhecidas. No dia 10 de maio, um homem de 29 anos foi preso após roubar 40 unidades de Ozempic e Wegovy de uma farmácia no bairro da Pituba.
No dia 16 de junho, uma farmácia, localizada na alameda Benevento, também na Pituba, foi invadida. Os criminosos levaram diversos frascos de Ozempic e Wegovy, medicamentos indicados para tratamento da obesidade e com forte apelo no mercado estético.
Mais recentemente, no dia 23 de julho, outra unidade, desta vez no bairro do Candeal, foi assaltada por volta das 21h, a segunda invasão em apenas oito dias. Os bandidos, novamente, tinham como alvo as canetas para emagrecimento, como Ozempic e Mounjaro, e chegaram a roubar também alianças e pertences dos funcionários.
Como os crimes funcionam
Na primeira matéria da série de reportagens intitulada de "O Peso da Caneta", o portal A TARDE, foi em busca de compreender o cenário e ouviu a delegada Mariana Ouais, responsável pela investigação dos casos, por meio da 14ª Delegacia Territorial (DT/Barra), que detalhou a forma como essas organizações criminosas atuam.
Segundo Mariana, os roubos são meticulosamente planejados, com indivíduos agindo em grupos organizados para atacar farmácias em horários de menor movimento e levando apenas os medicamentos com alta demanda no mercado clandestino. Imagine o seguinte cenário:
“Um primeiro indivíduo entra na farmácia, geralmente em um horário que não tem muito movimento, como 23h, finais de semana ou horário do almoço. Ele chama a atenção de um funcionário e pede um medicamento controlado. Enquanto o funcionário está procurando esse medicamento, outros dois indivíduos entram: um geralmente com um saco de armazenamento em bags de delivery e um outro armado, que dá voz de assalto”, revelou a delegada.
Eles não querem mais nada, eles só querem as canetas emagrecedoras
“Eles não querem mais nada, eles só querem as canetas emagrecedoras. Eles já entram dizendo o que querem e rendem os funcionários. Se tiver cliente, eles rendem também, vão até a geladeira e subtraem todas essas canetas. Depois dessa subtração, eles armazenam e levam", completou.
Operação Mirákel: desvendando a estrutura do crime
A Operação Mirákel, deflagrada pela Polícia Civil da Bahia, deu início à desarticulação de uma quadrilha responsável por uma série de roubos a farmácias em Salvador. A primeira fase da operação resultou no cumprimento de 11 mandados de busca e apreensão e na prisão de duas lideranças do grupo, com ações concentradas nos bairros do Nordeste de Amaralina e Pelourinho.

Segundo a delegada Mariana Ouais, 28 farmácias foram atacadas entre fevereiro e maio deste ano, em bairros como Itapuã, Costa Azul, Armação, Pituba, Ondina, Barra, Graça, Cabula e Horto Florestal. O prejuízo causado ultrapassa R$ 2 milhões.
“Nosso primeiro desafio foi identificar esses indivíduos. Então, a Polícia Civil se organizou, concentrou as investigações e fizemos um apanhado de todos esses roubos”, explicou.
A investigação revelou que um dos presos era responsável por cooptar adolescentes para os crimes, enquanto o outro atuava como executor direto dos assaltos. Os criminosos usavam disfarces, como mochilas de entregadores de aplicativo, para entrar nas farmácias e agir em horários estratégicos, como à noite e nos fins de semana.
Na primeira fase, a gente quis identificar quem era o trabalhador braçal, quem eram aqueles que iam até as farmácias e efetuavam o roubo
Estrutura piramidal
De acordo com a delegada, após os roubos, as canetas injetáveis começaram a ser vendidas em grupos de WhatsApp, por preços abaixo do mercado. O que reforça a hipótese de uma rede de distribuição paralela, alimentada por diferentes níveis de envolvimento, como uma espécie de pirâmide. “A gente identificou também que esses medicamentos começaram a ser ofertados até em grupos de WhatsApp por valores menores e por terceiros".
Segunda fase da operação
A Polícia agora avança para a segunda fase da operação, que busca identificar receptadores e intermediários, revelando uma estrutura criminosa em pirâmide. “Além de você ter o braçal, tem um grupo que diz: ‘eu quero X canetas’. É o grupo que faz essa intermediação com o vendedor final. Depois ainda tem o consumidor final. Então é uma operação que não vai terminar por agora, é uma investigação longa.”
Se há roubo, é porque há quem compre
O aumento no número de registros envolvendo o contrabando e o roubo de canetas emagrecedoras em Salvador revela uma realidade incômoda: onde há oferta criminosa, há demanda ativa. E essa demanda, muitas vezes impulsionada pela busca por soluções rápidas para emagrecimento, sustenta uma rede de comércio ilegal que se espalha por bancas de bairro, grupos de WhatsApp e até clínicas estéticas.

A delegada Mariana Ouais, responsável pelas investigações, destacou ao portal A TARDE que o comércio clandestino desses medicamentos é amplo e crescente.
“Durante as investigações, identificamos a venda desses produtos até em bancas montadas em bairros populares, com dias e horários certos para a chegada das ‘encomendas’. Em alguns casos, percebemos que a quantidade de roubos aumentava na véspera da chegada anunciada desses medicamentos".
Esse cenário expõe não apenas o grau de organização dos criminosos, mas também a conivência silenciosa de quem adquire esses produtos sem qualquer garantia de procedência ou conservação. Como ressaltou a delegada, mesmo que os assaltantes utilizem bolsas térmicas durante os crimes, não há controle sobre as condições reais de armazenamento dos medicamentos, que exigem refrigeração rigorosa.
É assustador ver pessoas colocando sua saúde em risco ao consumir um produto que pode ter sido violado, armazenado de forma inadequada ou até falsificado
O impacto desse comércio ilegal vai além do prejuízo financeiro às farmácias. Pessoas que realmente precisam das canetas por motivos médicos, como no tratamento do diabetes, enfrentam dificuldades para obtê-las. A escassez causada pelo desvio dos produtos, aliada ao medo de novos assaltos, agrava um problema que já ultrapassa os limites da segurança pública e se transforma em uma questão de saúde coletiva.
As investigações também apuram se clínicas estéticas estariam utilizando essas canetas, compradas de forma irregular, em procedimentos com pacientes. Embora não haja, até o momento, comprovação direta de que os medicamentos roubados estejam sendo aplicados nesses espaços, a delegada confirma que esse é um dos focos da apuração.
Falta de cooperação das farmácias compromete investigações
A delegada ainda relatou que um dos principais entraves enfrentados pela Polícia Civil na apuração dos roubos é a ausência de colaboração por parte de algumas farmácias. De acordo com Mariana Ouais, muitas dessas unidades não possuem sistemas de monitoramento eficientes e, quando possuem, as câmeras estão voltadas apenas para áreas comerciais, como prateleiras e balcões, deixando de fora pontos críticos como geladeiras e freezers, onde os medicamentos são armazenados.
“O sistema de vigilância é, em sua maioria, inadequado. As imagens, quando existem, são de péssima qualidade. E o pior: o processo para obtê-las é extremamente burocrático. Muitas vezes, enfrentamos resistência para conseguir acesso aos vídeos, com alegações de falta de espaço para armazenar os arquivos ou de necessidade de aprovação jurídica prévia.”
Ela revelou que, mesmo com a abertura de nove inquéritos relacionados ao caso, houve grande dificuldade para reunir imagens que pudessem ajudar na identificação dos criminosos.
“Temos um acervo com possíveis suspeitos, mas, sem as imagens, não conseguimos comprovar a participação deles em determinados crimes. Além disso, precisamos que os funcionários que foram vítimas façam o reconhecimento formal, o que também nem sempre acontece".
Apesar das suspeitas iniciais, a delegada afirmou que as investigações não apontaram envolvimento direto dos funcionários nos roubos, mas destacou a importância da parceria com os estabelecimentos para avançar nas apurações.

Combate e atuação policial
De acordo com a delegada Mariana Ouais, a função da Polícia Civil é atuar após a ocorrência do crime. “Nosso papel é identificar os autores, instaurar os inquéritos, representar pelas prisões e encaminhar os casos ao Judiciário". Já o trabalho de prevenção e presença ostensiva nas ruas cabe à Polícia Militar, responsável pelo policiamento preventivo.
Para tentar coibir novos ataques, a Polícia Civil compartilha as informações dos casos com o comando da PM, que então elabora uma "mancha criminal": um mapeamento das regiões e horários com maior incidência de roubos. Esse levantamento permite direcionar o policiamento para áreas mais vulneráveis.
“Não temos efetivo nem atribuição institucional para fazer patrulhamento preventivo. Mas, com esse cruzamento de dados, mesmo a simples passagem de uma viatura nos locais e horários certos pode inibir novas ações criminosas", pontuou Ouais.
Ela destacou ainda que, embora seja uma divisão de funções, o trabalho da Polícia Militar impacta diretamente o sucesso das investigações da Civil. A integração entre as duas forças é fundamental para conter os ataques e desarticular os grupos envolvidos.
Na próxima matéria da série "O Peso da Caneta", que será publicada nesta terça-feira, 5, o portal A TARDE mostra a promessa do corpo perfeito e o peso psicológico por trás das canetas de emagrecimento, com uma entrevista exclusiva com uma psicóloga.
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