ENTREVISTA - MARGARETH MENEZES
‘A cultura e a arte são ferramentas de emancipação popular’
Ministra conta, em entrevista exclusiva, o que vem fazendo para descentralizar o investimento em cultura
Por Divo Araújo
Descentralização é a palavra-chave na gestão de Margareth Menezes à frente do Ministério da Cultura. Nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, a artista e ministra baiana conta que um dos seus objetivos é mostrar que a cultura acontece em todas as regiões do país.
“A criatividade está no DNA do povo brasileiro. O nosso potencial é fantástico, mas ainda não conseguimos tirar proveito econômico disso”, avalia. Na entrevista, Margareth fala também sobre a reconstrução da Fundação Palmares, o potencial do mercado da indústria criativa, a cultura afro-brasileira, racismo estrutural e patrimônio histórico, dentre outros assuntos.
O Ministério da Cultura já perdeu seu status por três vezes e nos últimos quatro anos sofreu um processo de desmonte das políticas para o setor. A senhora vem defendendo a necessidade de estabilizar a cultura como uma política de Estado. O que vem sendo feito para a reconstrução da capacidade institucional da gestão da cultura no país?
Realmente eu tenho defendido essa questão porque o próprio montar e desmontar do ministério, ao longo do tempo, causa instabilidade no setor cultural. É muito difícil, principalmente na área da cultura, que é uma política viva, você conseguir criar estabilidade econômica com esses espaços. O sistema do Ministério da Cultura é complexo. Dentro do escopo da cultura tem várias áreas e cada área tem políticas públicas diferenciadas. Nós temos o direito autoral, temos as secretarias de livro e leitura. Temos o audiovisual, que cresce cada vez mais por causa do ambiente digital, onde surgem oportunidades de trabalho, principalmente para a nova geração. Então, é necessário ter estabilidade para o desenvolvimento econômico do setor. A partir deste novo momento do Ministério da Cultura, o que estamos fazendo? Primeiro, remontando as áreas internas do sistema. Não são estudos fáceis. E estamos retomando o que foi desmontado, as ações que vieram lá desde o primeiro governo do presidente Lula. Especialmente com o ministro Juca (Ferreira) e o ministro (Gilberto) Gil, que conseguiram fazer com que políticas públicas realmente se espalhassem e chegassem aos pontos de cultura, a cultura viva. Estamos fazendo também um movimento de descentralização, que é um dos nossos grandes focos. Enfim, estamos reacendendo as políticas que já estavam construídas e ampliando, melhorando esse olhar. Lançamos também uma nova instrução normativa, lançamos o novo decreto da lei do fomento, acabamos de fazer agora a Lei Paulo Gustavo, que teve aderência de 98% das cidades. Tudo isso vai fortalecer o nosso Sistema Nacional de Cultura e o ministério será uma das pontes para esse processo de descentralização. Da mesma maneira com as leis de fomento, a exemplo da Lei Rouanet, a mais conhecida. O novo decreto que criamos traz um diálogo com as empresas que antes não havia. Nesses diálogos, estamos buscando conscientizar que a cultura do Brasil acontece em todas as regiões. A descentralização será realmente a chave para fortalecer a cultura como uma política de Estado. Principalmente porque a criatividade está no DNA do povo brasileiro. O nosso potencial é fantástico, mas ainda não conseguimos tirar proveito econômico disso. Mesmo o setor cultural representando 3,11% do PIB nacional.
Como a senhora acabou de mencionar, o setor cultural é um importante gerador de empregos e representa uma parcela significativa do PIB. Qual é a relevância desse setor para a economia do país? E por que esse aspecto econômico muitas vezes é negligenciado?
Essa pesquisa que citei é bem recente, uma pesquisa do Itaú Cultural, que envolveu vários organismos sérios, não só do Brasil, mas também internacionais. E gerou para nós esses dados, porque nós estávamos sem dados, já que as pesquisas foram interrompidas no governo anterior. Nós ficamos por um tempo sem o censo do IBGE, por exemplo. Isso foi um grande prejuízo para um país como o Brasil, um país deste tamanho com mais de 200 milhões de habitantes. Mas com essa nova pesquisa, nós obtivemos esses dados. A cultura gera 3,11% do PIB nacional. Por outro lado, o percentual de investimentos no setor é de 0,45%. Ou seja, nem 1% do PIB nacional é aplicado na cultura. Esse é mais um demonstrativo do potencial econômico da cultura. Mas fazemos isso sem ainda ter um ambiente qualificado, sem ter várias ações que precisamos tratar. A questão dos direitos autorais dos streamings é um exemplo. Precisamos tratar disso, precisamos deste retorno, porque também é geração direta de economia para o setor. Existe um desequilíbrio mundial, mas alguns países já conseguiram resolver. A partir do momento que a gente conseguir fazer essa regulação da questão trabalhista dentro dos streamings, isso vai gerar economia e potencializar o setor. Temos também as próprias leis trabalhistas e as relações internas do setor cultural que não existem. São coisas bem sensíveis para o segmento e que vão nos ajudar a qualificar, graças ao presidente Lula, que tem essa visão. Em outros países não existe esse pudor em relação ao investimento em cultura. Investir em cultura dá retorno e é muito fácil. Então, nós precisamos nos apropriar disso, entender a força criativa e o vetor econômico competitivo da nossa cultura. E começar a tirar proveito melhor disso. É só olhar. Nós, que somos da Bahia, sabemos o potencial que existe, principalmente quando chega o Verão. Agora, é claro que a distribuição da renda e dos lucros precisa ser feita de uma maneira mais justa para todos.
Falando ainda de descentralizar os investimentos na cultura. Como as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc estão contribuindo para fortalecer o desenvolvimento cultural em diferentes regiões do país?
Nós tivemos agora R$ 3,8 bilhões da Lei Paulo Gustavo com aderência de 98% das cidades. Isso gera uma ponte direta do Ministério da Cultura com essas cidades. Na mesma direção vai a Lei Aldir Blanc. E, com isso, se instala o Sistema Nacional de Cultura. A Lei Aldir Blanc prevê por cinco anos esse tipo de irrigação de recursos. Através desses mecanismos, todas as cidades do Brasil vão poder fazer os seus próprios editais. Isso vai fomentar os grupos culturais e os artistas de cidades das mais diversas regiões do país. Essas leis são ferramentas de descentralização muito potentes. Mas ainda estamos no processo de instalação. A Lei Paulo Gustavo chegou agora. As cidades e os estados já mandaram os seus planos de cultura e precisam fazer os seus editais para que os trabalhadores da cultura tenham acesso. Não são coisas que acontecem de repente. E a lei Rouanet também fortalece esse movimento. Nosso primeiro edital já com essa visão foi com o Banco do Brasil, que é um investidor na cultura de muito tempo. Esse primeiro edital vem com essa visão de descentralizadora, chegando a todo Brasil, levando artistas de todo o país para os núcleos, os teatros do Banco do Brasil. E investindo em projetos nos estados.
A senhora citou a Lei Rouanet e existe uma eterna polêmica envolvendo as leis de fomento à cultura. Essas leis com isenção de impostos são tocadas em diversos ministérios, a exemplo de Agricultura, Ciência e Tecnologia, Turismo, Desenvolvimento Regional… Mas é no segmento cultural que despertam mais controvérsias. Por que isso acontece?
Na minha visão, porque a cultura e a arte são as primeiras ferramentas de emancipação popular. Infelizmente, nós temos ainda uma visão elitista, colonizadora, muito prejudicial ao desenvolvimento do país. Quando a sociedade tem a possibilidade de fazer esse movimento e trazer outras pessoas para os lugares de liderança, para ter acesso às riquezas, infelizmente persiste ainda de algumas elites essa visão. É como se o povo não merecesse uma oportunidade de ascender na vida. Para mim, é a única explicação. Está mais do que demonstrado que a cultura é uma ferramenta de emancipação, de transformação social e geração de renda. E isso não é só no Brasil, mas em todos os países que usam a cultura como vetor de crescimento econômico. Nós precisamos mudar essa visão no país. Nós estamos saindo, por exemplo, de uma situação na qual foi deixado um rombo pelo governo anterior. O secretário do Tesouro Nacional noticiou, no início deste governo, que R$ 800 bilhões foram o total deixado de restos a pagar pela gestão anterior. Então, que preocupação é essa? É a primeira vez que o setor cultural está tendo a oportunidade de ter um fomento com mais folga. E precisamos fazer isso para a gente conseguir estruturar o setor cultural, que foi o primeiro a fechar e o último a abrir na pandemia da Covid-19. É uma visão perseguidora. Esse prejuízo que foi deixado não chama a atenção da sociedade?
O Marco Regulatório do Fomento à Cultura está tramitando na Câmara de Deputados. Porque a aprovação desse marco é tão importante para o setor cultural?
Esse marco regulatório será muito positivo, porque vamos ter uma ferramenta mais adequada ao fazer cultural. E esse marco regulatório não é só para o setor cultural. Há vários setores que já fizeram os seus marcos aderentes e agora nós estamos também buscando o nosso. Ele vai facilitar tanto para a administração, como para o acompanhamento do gestor, para a fiscalização. Além de possibilitar também a participação de todos. O gestor público vai ganhar um regime jurídico próprio para ferramenta cultural. São ações que visam realmente estabilizar o Ministério da Cultura.
Mudando um pouco de assunto, a senhora recentemente esteve na Fundação Palmares. Como está ocorrendo o processo de reconstrução da fundação, atualmente sob o comando de João Jorge?
A Fundação Palmares foi realmente muito depredada. O quadro que encontramos lá foi muito grave, inclusive em relação às instalações. Estamos agora trazendo instalações mais adequadas para a grandeza que a Fundação Palmares tem desde quando foi criada. Aliás, ela está comemorando 35 anos em 2023. É uma conquista do povo negro, é uma conquista da luta antirracista. E nós estamos, sim, reconstruindo a Fundação Palmares. Mas é preciso um pouco de paciência porque essa reconstrução abrange desde a estruturação das áreas internas até a parte física. Tudo isso mostra que saímos de um governo que não entendia o que significa a luta contra o racismo, a luta contra o preconceito. O presidente João Jorge é uma pessoa com muita experiência de gestão. O trabalho que ele vem fazendo desde o Olodum é maravilhoso. Por isso, o nome dele para a Fundação Palmares foi muito festejado. Além disso, estamos retomando os contatos com os países africanos. Esse processo de reparação é necessário. Inclusive essa discussão em relação às cotas. Recentemente, vimos os Estados Unidos, depois de 70 anos, acabar com a lei de cotas. E há uma grande diferença entre as questões daqui e dos Estados Unidos. Porque nos Estados Unidos, quando houve a abolição da escravatura, houve reparação para as pessoas negras. Aqui no Brasil não aconteceu a reparação naquele momento. Muito pelo contrário, os negros, suas famílias, foram suprimidos da sociedade. Eram proibidos de estudar, de possuir terras. Só há pouco mais de 20 anos conseguimos instaurar a lei de cotas e só agora realmente essas políticas começam a fazer algum efeito. Não existe razão para a gente questionar essa reparação, que é uma dívida do Estado.
Aliás, a senhora chegou a se emocionar ao ser informada que a Fundação Palmares revogaria a portaria do governo anterior que vetou homenagens a personalidades como a escritora Conceição Evaristo, Gilberto Gil e Martinho da Vila. Qual a importância da cultura na luta contra o racismo estrutural no Brasil?
A cultura promove uma visão crítica e, por isso, ela é perseguida toda vez que se instala um governo que quer tirar esse amadurecimento de visão política da população. Neste sentido também, a cultura é uma ferramenta de emancipação social, política e econômica. E que traz consciência. Então, por quê? A cultura afro-brasileira se guardou através dos seus lugares de legado, dos representantes das religiões de matriz africanas que são tão perseguidas numa visão racista e discriminatória. A Fundação Palmares tem uma luta contra isso e busca o reconhecimento do direito a conhecermos a verdadeira história do povo negro, que não começa com a escravidão. A escravidão foi um momento na história do povo negro. Mas o que era antes? E nossos heróis? E os heróis que também deixaram seus legados na história do Brasil? E essa revolução que nós estamos conquistando sem armas nas mãos, mas a custo de sangue de morte de pessoas? Eu me sensibilizei muito porque foi um desrespeito à memória, à luta dessas pessoas, dos nossos heróis negros. Me tocou nesse sentido. De você ver como a ignorância é letal para o desenvolver social de um país como o Brasil, que teve uma diversidade de nações na sua formação. Especialmente do legado do povo negro e do legado do povo indígena também que até hoje está nesta luta. Me emocionei por isso.
O Ministério da Cultura realiza em Belém, em novembro, o Mercado das Indústrias Criativas do Brasil (MIC-BR), que inclui rodadas de negócios, conferências, atividades culturais... Qual é a expectativa em relação a este evento?
O MIC é uma feira que na verdade começou na Argentina, que fez o primeiro encontro de investidores e compradores do mercado das indústrias da cultura. Esse modelo foi copiado na América Latina pelos países que participam desse processo. É a terceira vez que este evento vai acontecer no Brasil. No histórico do Mercado das Indústrias Criativas é muito potente o retorno que dá em relação aos negócios construídos. No primeiro semestre, teve o MIC na Argentina. Nós levamos 90 empreendedores do Brasil para fazer negócios lá, encontrar investidores internacionais da América Latina. E agora será a vez do Brasil. Nós estamos estimando a presença de 260 empreendedores de todo país. O evento será em Belém e esse é outro movimento de reparação que estamos fazendo. Porque o histórico de investimento de cultura na região Norte é muito deficitário e nós estamos corrigindo isso. A região Norte, a partir do olhar do presidente Lula, vai trazer a COP (Conferência do Clima das Nações Unidas) em 2025 para o Brasil. E nós estamos também começando a promover ações na região e, dessa forma, promover a descentralização que queremos. As inscrições estão abertas. Será um evento maravilhoso, com um potencial fantástico. Nós estamos convidando a todos os empreendedores para inscreverem os seus projetos e terem a oportunidade de estar presente nesse grande encontro, o maior mercado público da economia criativa do Brasil. Será fantástico para economia criativa.
Ministra, a senhora recentemente visitou dois bens tombados pelo Iphan em Salvador: o Terreiro do Gantois e a Igreja e Convento de São Francisco. O que significa para a nossa cidade e nosso estado, rico em patrimônios culturais, ter uma artista nascida aqui, na Cidade Baixa, no comando da mais alta pasta da Cultura do país?
Pelo fato de ter tido a oportunidade de visitar muitas cidades fora do Brasil, cantar em lugares diversos, eu tive mais de 20 turnês internacionais, sempre gostei de ver patrimônios históricos fantásticos. E sempre me chamou atenção como essas cidades têm geração de renda com esses patrimônios. Tem lugares que recebem mais de quatro milhões de visitantes só no Verão por causa de um único patrimônio artístico. Temos vários exemplos disso. A Bahia, especialmente Salvador, que foi a primeira capital do Brasil, é cheia de patrimônios, mas com um histórico de descaso muito grande. O momento agora é de virarmos essa chave. E de dar esse valor institucional que é tão importante para a construção do legado da cidade e do estado. Isso não é só em relação à Bahia, é em relação ao Brasil. O trabalho que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e o Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) fazem para a preservação da memória são muito importantes. E temos também o patrimônio imaterial que vem crescendo. Quando você olha e preserva a sua história, você gera um ponto positivo para visitação, para memória, para construção da identidade das novas gerações. Isso é importantíssimo. Estive na Igreja São Francisco e fiquei encantada. Tinha muito tempo que fui à Igreja e, assim mesmo, só conhecia a capela. Quando você entra no convento e faz a visita do acervo histórico é uma coisa fantástica. Nós temos muitos patrimônios, mas estamos precisando mudar a maneira de valorizar esse nosso acervo histórico. Foi com esse sentimento que fui visitar também o Gantois, que é um terreiro tombado, com valor histórico. Salvador e a Bahia têm tantas coisas lindas e acho que é o momento agora, neste governo do presidente Lula, de trazermos esse novo olhar pelo patrimônio.
Ministra, obrigado pela entrevista…
Para terminar, queria só dizer que, como baiana e artista, me sinto agradecida pelo presidente Lula estar me dando essa oportunidade. Aqui temos uma equipe fantástica de gestores de áreas técnicas, os presidentes do Iphan, do Ibran, da Ancine… Estamos todos com a mesma visão de aproveitar este momento para fomentar a cultura neste país. O Brasil é maravilhoso e temos muito que nos orgulhar. Agora é buscar essa nova visão e fortalecer a economia da cultura, porque vai fazer bem para todos nós.
RAIO-X
Nascida em Boa Viagem, na Cidade Baixa de Salvador, Margareth Menezes da Purificação Costa é cantora, compositora e, em 2023, tornou-se ministra da Cultura no governo Lula. É ganhadora de dois troféus Caymmi, dois troféus Imprensa, quatro troféus Dodô e Osmar, além de ter sido indicada para o Grammy Awards e Grammy Latino. Contabiliza 21 turnês mundiais.
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