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A mentira está apoiada na necessidade de voltar a um mundo ficcional, analisa Maria Homem

Publicado sexta-feira, 02 de outubro de 2020 às 06:01 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Victor Rosa
Psicanalista Maria Homem interpreta ferramenta da mentira em discursos como 'conceito da fantasia'
Psicanalista Maria Homem interpreta ferramenta da mentira em discursos como 'conceito da fantasia' -

Está se tornando cada vez mais comum a utilização ‘escancarada’ de mentiras e informações falsas por políticos, tanto em época de eleições quanto em pronunciamentos. Em discurso para conferência da Organização da Nações Unidas (ONU) no mês passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) alegou que sempre apoiou, no Brasil, o combate ao novo coronavírus, parcelas do auxílio emergencial de mil dólares, campanhas de desinformação sobre as queimadas na Amazônia e no Pantanal, entre outros.

A psicanalista Maria Homem, que possui um canal no YouTube onde reflete sobre questões do indivíduo e da sociedade, explicou que uma das principais causas que levam estes discursos com ferramentas mentirosas darem certo na sociedade é a vontade que muitos têm de voltar, ao que ela chama, de ‘conceito de fantasia ou o conceito de pensamento mágico’. Seria a necessidade de se apoiar em um discurso que fortalece e promete o retorno, por exemplo, a um mundo sem pluralidade e igualdade de direitos.

Maria Homem falou ao A TARDE sobre como estes discursos são moldados e o porquê deles estarem sendo aderidos com tanta força pela sociedade.

O que é a mentira e por que as pessoas costumam mentir?

A gente aprende a mentir. A mentira é uma conquista e a gente não nasce sabendo mentir. É muito importante que a criança faça essa virada, tem até estudos sobre isso. Existe um estudo interessante do Piaget [Jean Piaget] que fez uma teoria, que ele chamou de ‘epistemologia genética’, que é compreender como a gente vai aprendendo a conhecer a episteme, a gênese do conhecimento.

Neste processo você vai conhecendo o mundo e vai depois compreendendo o que tem além da realidade, tem-se também as narrativas sobre as coisas. Você aprende o que é casa e o que eu digo sobre ela. O que é o papai, a mamãe, o cachorro e o irmãozinho e o que eu digo sobre as coisas. Então você compreende que se tem uma linguagem, um ajuizamento, um valor. Que tem o bem e o mal. É o campo da moral e o campo do juízo sobre as coisas.

Então tem-se o campo da verdade e da mentira, que você pode dizer algo e dizer algo diferente daquilo que você sabe. Então é como se a gente complexificasse  o mundo: tem o que é a coisa, o que eu digo sobre a coisa achando que estou dizendo sobre a coisa, o que digo sobre a coisa de uma maneira equivocada - porque estou achando uma coisa e é outro e eu ainda não tenho conhecimento suficiente - e o que eu digo sobre a coisa sabendo que não é verdade aquilo que digo sobre a coisa. Isso faz parte do nosso processo de formação.

Diante da complexidade maior do mundo que, eventualmente, te tira de um lugar de privilégio e de dominação, você começa a se comportar de uma maneira regressiva de negação dessa realidade como estratégia defensiva.

É uma conquista você poder compreender e regular o seu discurso. Você escolher o que dizer e o que não dizer. Tanto que a criança muito pequena não consegue mentir. Se você falar para uma criança ‘não conta para não sei quem que a gente não viu o leão’ e a criança fala ‘a mamãe pediu para contar que a gente não viu o leão’. Nesta época nossa conexão ainda está muito presa com a realidade do que é dito.

Você aprender a calar e aprender a mentir é uma sofisticação da nossa relação com as coisas. Você poder escolher acobertar ou não, maquiar ou não. Apresentar uma coisa diferente do que a sua cabeça sabe o que é. Você tem que saber o que é e conseguir criar uma imagem diferente do que é para transmitir essa outra imagem. É muito sofisticado

Como é possível usar a mentira como estratégia para estar no mundo?

A nossa pergunta principal é como a mentira virou um recurso naturalizado para enfrentar a realidade. Aqui a gente pode incluir um outro conceito que é o conceito de fantasia ou o conceito de pensamento mágico.

A criança mente também e ela opera neste lugar em parte sem saber exatamente o que é a realidade e o que é a fantasia. Ela tem um pensamento que a gente diz que ainda está no estágio de pensamento mágico, não de pensamento objetivo. É muito do meu desejo de que, por exemplo, o mundo não tivesse um vírus, que é só uma gripezinha, que não tem problema, não é mortal, não é letal, não é perigoso, não ter perdas profundas.

A gente aprende a mentir. A mentira é uma conquista e a gente não nasce sabendo mentir.

Então a gente está falando que em alguma medida a gente se defende do real. E aí? Como vamos viver em um mundo que se tem adultos que não estão conseguindo fazer parte deste real? Essa que é nossa pergunta.

Temos que entender que não é um recurso só de criança, mas também um recurso de adultos. Inclusive, de adultos que estão em posição de gerenciamento do mundo.

Imagem ilustrativa da imagem A mentira está apoiada na necessidade de voltar a um mundo ficcional, analisa Maria Homem
Psicanalista reflete sobre questões do indivíduo e da sociedade em canal no YouTube

E como viver neste mundo?

Quando se tem pessoas em posição de gerenciamento do mundo e operando um gerenciamento da realidade, há uma outra discussão: será que o mundo está ficando tão complicado?

O mundo  está ficando de uma complexidade tal - o próprio estágio de modernidade que vivemos, que vai incluindo o lugar do sujeito de direito, em um estado democrático de direito, dá ideia de que todos somos iguais perante a lei. Homens, mulheres, pretos, brancos, amarelos, indígenas, urbanos, campestres, crianças, funcionários, empregados. Não pode bater em crianças, não pode bater nos funcionários e empregados. Não pode humilhar, não pode assediar, não pode trabalho escravo. Há uma diversidade de gênero e de desejo, de posição desejante. Homossexual, bissexual, heterossexual, pansexual.

Então é como se a gente estivesse revelando que não está conseguindo fazer face a essa pluralidade, a essa diversidade. A gente está querendo retornar. Em discursos como de Bolsonaro e Trump a gente tem narrativas que vão voltar ao universo, por exemplo, patriarcal, machista, xenofóbico, de supremacia branca. Como se você tivesse que voltar pro mundo onde, por exemplo, o homem é a cabeça e o branco é superior. Então se reorganiza um mundo que é dicotômico, binário, mais simples, para dar conta de uma realidade que está mais próxima da fantasia.

Então o desejo de viver essa fantasia faz com que a apropriação dos políticos pela mentira dê tão certo?

Isso. Indo por uma lógica regressiva e reacionária, de reação a um universo mais complexo, junto com uma manutenção de determinadas formas de vidas que estão calcadas em privilégios de um mundo onde ‘eu tinha o poder econômico, político, de reconhecimento social’, em uma lógica de um certo capitalismo que vai ordenar os corpos e os valores deste sujeito.

Não é a toa que estas figuras que mentem, e que são absolutamente mentirosas e constroem universos delirantes sobre a realidade, possuam narrativas falsas bancadas por pessoas que têm também interesse na manutenção destas formas de ver o mundo e destas forma o circular o dinheiro e o poder.

Aparentemente, a utilização da mentira e informações falsas estão sendo utilizadas de forma mais nítida pelos políticos e mesmo assim eles conseguem conquistar um público eleitor. Como você analisa isso?

Aqui a gente pode se questionar sobre o passado: será que estamos usando agora o recurso da mentira? O que a gente faz agora é aumentar o recurso da mentira na esfera pública em relação a uma tentativa de lidar com a realidade objetiva que se pretendia experimentar o científico. Isso é a modernidade.

Quando a gente diz ‘vamos desmontar a aristocracia. Vamos desmontar a ideia medieval de só poder passar de pai para filho’ e a gente diz ‘isso era uma ficção’, a gente estava pretendendo desmontar uma lógica falsa, ficcional, era uma ficção que alguns humanos são superiores a outros, que alguns humanos têm direitos a ter terra, de poder transmitir de pai para filho.

Então a gente quer fazer um sistema que seja igualitário, livre e com rede de solidariedade. Este é o projeto humanista moderno, é neste projeto que estamos e é ele que finda esta democracia igualitária. Logo, precisamos que a realidade avançasse pois o mundo estava sempre se pautando por uma realidade ficcional que, sem dúvida, é ligada a ideia que vão dizer, por exemplo: ‘há Deus e eu, que sou representante de Deus na Terra’. Não faz sentido isso. É uma mentira compartilhada.

Em discursos como de Bolsonaro e Trump a gente tem narrativas que vão voltar ao universo, por exemplo, patriarcal, machista, xenofóbico, de supremacia branca.

Este vírus novo é chinês? É grave? Não é grave? Pausa! Cientificamente eu tenho que primeiro ver para compreender. Tenho que buscar compreender como funciona, não posso afirmar nada antes. Isso é a sociedade moderna científica.

Não é a toa que estes discursos que se pautam na ferramenta da mentiram recusam também a metodologia científica. Ele vai dizer: ‘eu sei já como é que funciona e vou te falar’. Este discurso cria teorias ficcionais, teorias falsas. Estas teorias falsas supõem poderes que podem ser extraterrestres, conspiratórios, de destruição, apocalípticos, que podem ser de bem-aventuração futura, de paraíso com sete virgens, 42 virgens, enfim.

Nada disso faz sentido na modernidade, pois ela recusa qualquer teoria a priori. A postura cronológica moderna é partir do não saber para o vir a saber, tanto que a verdade não é absoluta e sempre pesquisada. Então tem-se que pesquisa o que é eficiente, e o que é eficiente? A cloroquina? Não sei, não posso te vender este remédio e fazer uma divulgação a base da cloroquina. Eu não sei, então vamos fazer o que? Experimentos para saber quais as evidências que temos sobre essa medicação.

A gente sabe pesquisar a estrutura da matéria, da biologia. A gente sabe tudo? Não. A gente ainda não sabe, por exemplo, como dominar a Covid-19, o câncer, o HIV. Não podemos dizer ‘já sei que a cloroquina faz efeito’ não é uma postura científica experimental moderna. Contudo a gente não aguenta esta posição de não saber, então a gente diz a mentira, a teoria antes da demonstração. Então não é uma teoria demonstrada, mas uma teoria delirante.

A verdade está sempre em modificações e isso também dá brecha para discursos falsos ou dá meia verdade ou fora de contexto. Como o discurso do Drauzio Varella que é, com frequência, retirado do contexto para ser utilizado como argumento. Isso também estaria classificado como mentira?

Agora entrando nas formas de mentira, eu diria que a gente sabe mundos do que a gente gostaria de saber sobre o real. Em última instância o desafio do saber tem uma marca de incognoscível. Como diria o Freud sobre os sonhos, tem sempre o ambíguo do sonho. Tem aquele nó, que é um nó obscuro que, a gente não sabe, mas gera todos os outros sonhos.

No universo a gente sabe muito mais neste século XXI do que jamais soubemos em milênios. Temos telescópios super potentes no ar. Saímos da Terra e colocamos prolongamentos dos nossos olhos que que veem e que escutam sons do universos. Nunca tivemos máquinas tão potentes para escutar o que é a matéria e o que é o universo.

Com isso estamos conseguindo modular teorias que expliquem mais fenômenos. O que a gente faz enquanto a gente não sabe? Sustenta o não saber e dizemos: ‘ainda não sei, precisamos pesquisar mais’.

‘A cloroquina? Não sei, preciso saber’. ‘Ah tá. Agora realizei experimentos suficientes para saber que a cloroquina não traz evidência que tem algum tipo de benefício’. Quando se divulga o uso de um medicamento assim, está mais ligado ao desejo que haja algum tratamento eficaz. Logo, isso revela mais do sujeito, do que do objeto. Revela mais da necessidade do sujeito de acreditar em algo do que do objeto pesquisado.

É importante também que saibamos que as nossas criações, nossas defesas diante do não saber e da angústia e ameaça da realidade, revelam mais sobre nós do que sobre a realidade. Se você mente, eu conheço quem é você, sei quem é você, qual a direção que você está indo e o que você precisa. Você precisa se garantir em um suposto lugar de masculinidade. Em um suposto lugar de superioridade e virilidade do macho-alfa branco, rico e inteligente. Que vai dizer que o outro é burro, que é ignorante, que é feio, que não merece ser estuprada. Isso revela a sua produção de insegurança diante do outro e as estratégias necessárias para fazer uso para desenhar uma figura de importância diante do seu próprio olhar.

É como uma criança. Quando ela mente e quando ela diz ‘meu pai é um super herói e muito rico’, um clássico da vida infantil, ela está dizendo, como uma criança fragilizada, se acobertar neste lugar que o pai é melhor.

A gente está vendo um mundo moderno em profunda transformação nos lugares do masculino, feminino, negros, brancos, ricos, pobres, todas as estratégias de defesa para um mundo em transformações com questões de raça, gênero, classe, geração, idade. Diante dessa complexidade maior do mundo que, eventualmente, te tira de um lugar de privilégio e de dominação, você começa a se comportar de uma maneira regressiva de negação dessa realidade como estratégia defensiva. Como a mentira, a meia verdade, a ilusão, o recorte do contexto. Aí tem vários estudos, inclusive linguísticos, que mostram quais são as formas da gente criar uma narrativa.

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