ENTREVISTA
Agenda da igualdade passa por respeito e dignidade, diz Anielle Franco
Confira a entrevista com Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial
Por Luiz Lasserre
Começa na capital baiana, hoje, a 6ª Conferência da Diáspora Africana nas Américas, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia (Ufba), evento internacional que prosseguirá amanhã, no Wish Hotel da Bahia, e sábado, no Centro de Convenções de Salvador, com presenças de chefes de estados, ministros, intelectuais e representantes de movimentos negros nacionais e de diversas nações. Presente no evento, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, concedeu uma entrevista exclusiva ao Grupo A TARDE, em que comenta aspectos da Conferência relacionados a efeitos concretos para a elaboração de políticas públicas para a equidade racial e a importância de a Bahia sediar um encontro para debater a diáspora de povos negros, entre outros pontos. Anielle também atualiza ações em curso no País por meio da pasta que comanda, revela desafios que tem enfrentado à frente do ministério neste terceiro mandato do presidente Lula e manda uma mensagem para as parcelas menos favorecidas da população, na condição de irmã de Marielle Franco e de mulher negra em posição de destaque em espaços de poder da República.
Na avaliação da Sra., qual a importância de um evento a exemplo desta Conferência, que propõe um olhar e debate sobre a diáspora africana, dispersão de povos a partir da escravização para as Américas, e que tantas mazelas sociais gerou?
É de uma relevância muito grande, tanto concreta quanto simbólica. A Conferência busca fortalecer as raízes africanas ao redor do mundo e estabelecer um maior diálogo entre representantes de Estado e da sociedade civil dos países da União Africana e das Américas. É uma alegria grande estar aqui em Salvador, uma honra participar deste encontro que nos reconecta com todas e todos que vieram antes de nós para pensarmos coletivamente o futuro. Há uma razão para o governo brasileiro ter recebido convite para sediar este evento. Nosso País possui a maior população negra fora da África e acumula duas décadas de políticas voltadas para a promoção da igualdade racial, o que reforça a nossa relevância nesse contexto diaspórico. Temos muito a contribuir para o fortalecimento dos marcos nacionais e internacionais de combate ao racismo e de promoção dos direitos da população negra que se conecta muito diretamente aos objetivos da Conferência. É necessário valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas.
Sob a ótica de uma gestora responsável por políticas públicas federais, o que de concreto pode advir de um evento com este perfil?
Essa Conferência traz um ineditismo que é bastante relevante e simbólico. É a primeira vez que os países da diáspora são escutados como parte do processo preparatório do Congresso Panafricano, que será realizado no Togo, em novembro. E o Brasil aparece no centro dessa articulação, o que revela um reconhecimento e também uma liderança em relação à agenda de promoção da igualdade, por memória e reparação. Não tenho dúvidas de que esse encontro vai fomentar debates, escutas e articulações que nos permitirão avançar em acordos bilaterais e multilaterais que vão resultar no fortalecimento das nossas relações econômicas, culturais e sociais com o continente africano, as américas e internamente no Brasil.
De que forma as possibilidades de apropriação dos debates e indicações da Conferência pelo ministério podem chegar, de fato, nas vidas dos que sofrem na pele os efeitos da desigualdade racial?
A institucionalização da agenda pela igualdade racial e combate ao racismo têm duas décadas no Brasil, temos muitos acúmulos na construção de políticas baseadas em evidências e pesquisas, políticas que vêm transformando a cara do Brasil, como as cotas nas universidades e a própria ideia de ação afirmativa, ambas frutos dessa trajetória. Construir uma agenda pela igualdade passa por promover oportunidades, respeito, dignidade e isso se faz atuando em todos os campos da vida: cultura, saúde, ciência, esporte, lazer, trabalho. Tenho dito que o Brasil amadureceu para compreender que enfrentar o racismo é combater as raízes das desigualdades e da exclusão social. A igualdade promove desenvolvimento e a Conferência é mais um aprofundamento do nosso trabalho de consolidar o Ministério da Igualdade Racial enquanto estrutura que não seja apenas dessa gestão, mas que se apresente enquanto necessário e indispensável para o Estado brasileiro.
Há alguns dias, o ministério assinou acordo com a Universidade Federal Fluminense para desenvolver a gestão de ações a exemplo de fortalecer organizações sociais e combater o racismo no esporte. Quais as metas esperadas desta ação a curto e médio prazos?
É uma parceria muito importante, que é voltada para organizações da sociedade civil de todo o Brasil, com foco na geração de soluções e ações voltadas à pauta racial em várias frentes. A ideia é gerar subsídios técnicos para implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial e combate ao racismo que também possam auxiliar a atuação do Ministério da Igualdade Racial. Vão ser selecionadas 20 propostas de diferentes organizações da sociedade civil que receberão até R$ 80 mil reais. Em toda a minha história convivi com organizações que fazem trabalhos fundamentais para a comunidade, para apoiar pessoas negras e vulnerabilizadas, mas muitas vezes não há apoio para essas organizações. Esse edital é uma resposta a essa carência e uma forma de utilizar as práticas e conhecimentos para a construção de medidas que contribuam com a melhoria de vida do povo brasileiro. Quando me perguntam qual é a prioridade do Ministério da Igualdade Racial, digo que é a vida digna para todas as pessoas. Não aceitaremos nada menos do que isso.
Pela experiência nesse tempo à frente do ministério, o que a Sra. considera o principal entrave para promover a igualdade racial no Brasil?
Sabemos que problemas complexos, que se perpetuaram por séculos na nossa cultura, não são resolvidos de forma simples ou num curto espaço de tempo. O desafio é a manutenção da agenda pela igualdade no centro dos debates, nas esferas públicas e privadas, nas casas das pessoas, no trabalho, na praça. É isso que este governo vem fazendo, essa é a missão do nosso ministério. Nos últimos anos tivemos avanços significativos, como a implementação de cotas raciais em universidades e concursos públicos, a presença de pessoas negras em mais espaços de liderança. Sabemos também que há muito por avançar, mas me sinto muito honrada em fazer parte dessa construção para um futuro que seja mais igualitário para todas as pessoas, que faça o Brasil verdadeiramente mais desenvolvido, já que desenvolvimento pressupõe cidadania. É um trabalho contínuo para garantir que todos tenham oportunidades iguais e que nossas diferenças sejam riquezas, jamais desigualdade.
O que vem sendo feito pela pasta para atuar de forma interdisciplinar, conjugando o enfrentamento ao racismo com questões a exemplo de violências contra mulheres e população infanto-juvenil?
A transversalidade é a forma como fazemos política, pois entendemos que todas as questões da vida estão conectadas, então não é possível falar em igualdade na saúde, se esse não for um eixo na habitação, na educação etc. A transversalidade é o grande legado dessa gestão. Digo isso pois um país que avança transversalmente não deixa ninguém para trás, não se desenvolvem apenas numa área. O Plano Juventude Negra Viva é um exemplo. É um compromisso do governo federal desenvolvido por 18 ministérios e efetivado nas esferas públicas federal, estaduais e municipais, com a finalidade da redução da violência letal e das vulnerabilidades sociais que afetam desproporcionalmente a juventude negra. Este Plano é fruto da reivindicação histórica dos movimentos negro e de juventude, e está centrado na letalidade, mas pensa muito a vida, a positivação da vida desse jovem, para que possa viver suas máximas potências.
Quando tratamos de igualdade racial, o tema é mais fortemente associado a questões relacionadas à população negra, quilombos, religiões de matriz afro etc. O que a pasta tem feito para colocar na agenda das políticas públicas outras faixas da população com problemas ligados a questões raciais e étnicas – ciganos, orientais, povos indígenas, migrantes etc?
O Ministério da Igualdade Racial tem uma diretoria específica para os povos de terreiro e de matriz africana, bem como para povos quilombolas e ciganos. Isso demonstra já na nossa estrutura o nosso compromisso com a liberdade religiosa, a valorização das religiões. Temos avançado na proteção de terras quilombolas, estamos implantando a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ). Há muito sendo feito. No dia 2 de agosto, lançamos o Plano Nacional de Políticas para Povos Ciganos, que busca promover medidas intersetoriais que garantam os direitos dos povos ciganos no Brasil. É a primeira vez que há uma política própria para estes povos, num investimento de quase R$ 7 milhões. O plano irá mapear e visibilizar territórios, rotas e famílias em todo o Brasil, promover uma campanha nacional de valorização da história e cultura, realizar prêmios literários e formar gestores e servidores públicos sobre os direitos dos povos ciganos.
Para terminar, na condição de irmã de Marielle Franco e de mulher negra em um posto de destaque na República, que mensagem a Sra. deixa para as faixas menos favorecidas da sociedade que lutam por justiça social?
Marielle é uma referência para o Brasil, como mulher, mãe, irmã, mas sobretudo como defensora dos direitos humanos. Ela foi uma das vereadoras mais votadas e fazia uma política com muita verdade, que respondia às demandas muito reais da nossa população. Sou irmã da Mari com muito orgulho e luto todos os dias para honrar a trajetória dela. Há dias bem difíceis, mas enquanto tiver correndo sangue em minhas veias eu estarei em luta para que todas as mulheres possam ser livres, para que as mulheres negras tenham oportunidade de ser o que quiserem. A mensagem que ela nos deixa é essa, a garra pra lutar pelo que é importante. O futuro virá a partir das nossas próprias mãos.
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