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“Bolsonaro saiu do governo mas a semente do ódio continua”

Presidente da Fenaj, Samira de Castro alerta para papel da imprensa no combate à ameaça democrática

Publicado segunda-feira, 16 de janeiro de 2023 às 07:39 h | Atualizado em 16/01/2023, 08:26 | Autor: Osvaldo Lyra
Samira de Castro, presidente da Fenaj
Samira de Castro, presidente da Fenaj -

A presidente da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), Samira de Castro, diz que ainda existem os chamados desertos de notícias no Brasil, que são cidades onde não existe um veículo local sequer. Isso resulta numa cobertura local muito pequena, o que acaba gerando desemprego na categoria.

Com cerca de 40 mil profissionais filiados aos sindicatos e 31 sindicados filiados à federação, a dirigente diz que quem “mais emprega jornalistas no país são os serviços públicos”. E alerta: “Vivemos uma ameaça real à nossa democracia”, diz ela ao afirmar que as instituições democráticas do Brasil reagiram à altura a última tentativa de golpe. 

Que avaliação você faz do trabalho da Fenaj hoje no país?

A Fenaj tem um enorme desafio que é representar uma categoria espalhada por um país de dimensões continentais. A gente tem cerca de 40 mil jornalistas filiados aos sindicatos e 31 sindicados filiados à federação. Os desafios dessa representação são postos à prova a todo momento, porque o próprio sistema de representação social já passa há muito tempo por um desgaste.

Então, os jovens jornalistas ainda se ressentem muito para se aproximar dos sindicatos e isso obviamente reflete na atuação da Fenaj. Claro que a gente tem uma atuação histórica, é uma federação que tem 76 anos de história, esteve nas grandes lutas passadas pela redemocratização, a própria regulamentação da lei do cabo no Brasil, a Fenaj teve uma participação muito grande. E esses desafios agora eu acho que têm que convergir para uma pauta da federação e dos sindicatos para a questão das plataformas digitais.

O que fazer para chamar a atenção desse jovem jornalista para a importância de estar filiado e de fortalecer o trabalho da entidade, que fortalece, assim, o trabalho da categoria?

Fazer exatamente o que o Sinjorba fez. Um movimento de reconstrução. Ir para dentro das faculdades, das universidades e dialogar com esses estudantes, falar sobre a importância de que a gente só cresce, a gente só conquista quando a gente atua coletivamente. Não dá para a gente ficar mais achando que individualmente nós vamos ter uma boa carreira, nós vamos ter um bom salário e vamos ter condições de trabalho, porque não é uma situação individual. É uma situação que só se resolve coletivamente. 

Como você avalia o mercado de comunicação, sobretudo em estados como a Bahia e Ceará, fora do eixo Rio-São Paulo? A gente tem muitos gargalos para serem retirados, como falta de vagas disponíveis e as baixas remunerações?

Temos. Nós temos muitos gargalos para superar nesse quesito, porque o Brasil tem os chamados desertos de notícias, que são cidades onde não existe um veículo local sequer. Ou seja, são cidades, e até cidades não muito pequenas, mas cidades de médio porte e até metrópoles, em que essa cobertura local é muito pequena. E isso gera desemprego. Nós não temos colegas empregados hoje. Esse modelo tradicional de negócio do jornalismo das redações, das grandes redações, a gente não tem mais. Para você ter uma ideia, hoje quem mais emprega jornalistas no país são os serviços públicos, é a comunicação pública. Governos de estado, prefeituras, câmaras municipais, assembleias legislativas com os seus sistemas de comunicação.

Então, a gente precisa também pensar em ampliar os sistemas de comunicação, não só o público, mas o estatal também e o privado, e garantir que a produção jornalística chegue a diversos lugares para gente ter colegas empregados. A gente tem também os novos arranjos produtivos de jornalistas. O que são esses novos arranjos? Colegas que não têm perspectiva ao sair da universidade. Outros que já saíram do mercado de trabalho e não encontram recolocação. Outros que não acreditam no jornalismo da grande mídia. No dia a dia, não querem mais estar vinculados àquelas determinadas coberturas, determinadas linhas editoriais, e se juntam, buscam financiamento isoladamente, buscam atuar por projetos, e aí a gente chama também de “por causas”.

Por exemplo, Alma Preta Jornalismo, é um portal só de notícias sobre a questão de igualdade racial, da política, de tudo que envolve a população negra. E tem muitos outros arranjos. A gente tem lá atrás, um dos pioneiros, os Jornalistas Livres, que são colegas que se reuniram para atuar de forma meio coletiva e tentam se manter à base ou dos acessos, aí utilizando as plataformas, ou de financiamentos de entidades internacionais ou até nacionais para fazer essa produção.

O próprio mercado de jornalismo está em transformação. Muito se fala na extinção do jornal impresso, no fim do papel, mas o que a gente percebe é uma transferência da credibilidade construída ao longo dos anos pelos veículos e a transformação desse conteúdo em formato digital com a convergência de plataformas. Esse é um caminho sem volta, na sua avaliação? Isso acaba exigindo mais um processo de capacitação dos próprios jornalistas?

Esse é um caminho sem volta. O jornalismo, nos últimos 30 anos, é uma das profissões talvez que mais tenha passado por transformações tecnológicas e por transformações que a todo momento interferem na própria lógica de distribuição dessas notícias. Claro, a gente está falando de uma profissão muito antiga. Você apurar, você entrevistar, você ouvir pessoas, transformar isso em notícias, ou, como muitos dizem, “contar histórias”, isso sempre vai existir. O que está mudando constantemente é o meio pelo qual essas histórias vêm sendo contadas.

A gente tem sim uma crise nos impressos, muito em função da baixa leitura do nosso povo, do custo do papel. É caro fazer jornalismo. Já barateou, com as novas tecnologias hoje, você sai com um smartphone e você consegue uma imagem de câmera de alta definição, por exemplo, para quem trabalha com audiovisual. Mas, ainda assim, é caro. É caro você ter bons profissionais. Claro que a gente está vivendo uma realidade de um mercado aviltado, em que não existe um piso nacional, em muitos estados não tem nem um piso estadual, não tem convenção coletiva, que é um conjunto mínimo de direitos.

Mas essa convergência também é uma oportunidade para que nós, jornalistas, possamos assumir as rédeas da nossa profissão. Eu posso estar em vários meios com essa convergência aproveitando a minha credibilidade pessoal. Porque, de fato, o que confere credibilidade aos veículos é o trabalho do jornalista. O veículo é feito por jornalistas e ele usa da sua expertise para dar nome a um jornal, a uma TV, a um site, enfim. Eu acho que a gente precisa aprender também a enxergar essas oportunidades. E aí a capacitação tem que ser constante.

Qual a diferença entre atuar como jornalista e ser blogueiro, que tem muita exposição em rede social?

Muitas pessoas acabam confundindo isso por falta de informação. Exatamente o que eu mais tenho respondido quando os colegas me perguntam “os influenciadores digitais estão tomando nosso lugar no mercado?”. Eu disse: olha, eu não considero um influencer digital como um concorrente meu jornalista. Porque eu faço jornalismo, ele faz publicidade, ele faz marketing, ele faz a divulgação da parceria dele, sem muitas vezes a pessoa que está acessando aquele conteúdo distinguir que aquilo é pago, que ele está recebendo por isso. Nós trabalhamos com informação de interesse público. Ponto.

Então, nós não estamos única e exclusivamente manifestando nossas opiniões. Eu digo que o jornalista até para manifestar opinião tem que estar embasado. Ele não pode dizer qualquer coisa. A gente viveu uma época no início dos anos 2000 do chamado “jornalismo cidadão”. O que era? As empresas querendo baratear seus custos demitiam jornalistas. “Você, leitor, participe do nosso jornal, mande sua pauta, mande a sua notícia”. E muitas vezes saiam erros de informação grotescos, porque não tinha apuração. O cidadão comum não é obrigado a entender nem da técnica e nem da ética jornalística para produzir informação. Muitas rádios que utilizavam esse sistema de monitorar o trânsito, colocavam os taxistas na época para ligar para a redação. “Diga de onde você está falando, tem congestionamento?”. E a gente ouvia muitos casos assim bárbaros de pessoas dizendo que tinha um acidente em um cruzamento que não era um cruzamento, eram vias paralelas.

Então, tudo isso mostrou que esse jornalismo amador não tem espaço, porque as pessoas precisam de informação apurada, de informação checada, de informação contextualizada, e é esse o trabalho do jornalista.

Como vocês viram o último processo eleitoral e a vitória do presidente Lula?

A gente vai voltar um pouquinho para 2018. Em 2018, a Fenaj já se posicionava de que não havia uma polarização política igual, que um dos lados era mais difícil de se trabalhar, mais difícil de lidar, porque um dos lados não admitia o básico da democracia, que é a divergência de opiniões, de ideias, de projetos. Então, quando chega ao poder um deputado que passou 30 anos dizendo que vai exterminar os desiguais, que é a vez da minoria, que a maioria se curve à minoria que ele defendia, a gente já sabia que ia ser muito difícil para o jornalismo e para a própria democracia. A gente está falando de discursos de ódio muito claros. Bolsonaro nunca dissimulou a suas opiniões sobre nada. Disse que negro tinha que ser pesado em arrobas. Disse que preferia ter um filho morto a ter um filho gay. Então, assim, a gente está falando de um deputado que ameaçou de estupro uma colega de parlamento.

Naquela ocasião em 2018, a Fenaj disse: olha, não é uma escolha muito difícil. A gente tem um educador, tem um partido que a gente tem críticas da condução em determinados momentos políticos do país, que é o PT, o professor Fernando Haddad. Mas a gente tem o outro lado que não demonstrou compromisso nenhum com valores civilizatórios. Ponto. Nós nos posicionamos lá. A posse de 2019 de Jair Bolsonaro foi uma mostra do que viria para os jornalistas. Os repórteres que foram cobrir a posse foram trancafiados em uma sala sem acesso a água, café e banheiro, sentados mal acomodados e ainda foi dito o seguinte: jornalistas de imagem, por favor, não façam movimentos bruscos porque os snipers, os atiradores de elite, podem atirar em vocês. Não podem levar alimentos, porque a gente teme que se jogue maçã na cabeça do presidente.

Ou seja, foi muito claro o que vinha daí em diante. Passamos 4 anos sendo considerados inimigos da nação. Sendo desacreditados, descredibilizados, o nosso trabalho posto à prova, sendo chamado de lixo, de mentira, de que a imprensa mente, o jornalista mente. E agora a gente tem a possibilidade com o governo Lula de uma virada de chave no sentido de que pelo menos se reestabelecem os papeis institucionais. Ninguém quer ser amigo de governo, jornalista não é obrigado a elogiar governo e nem governo é obrigado a elogiar jornalista. A gente quer o respeito institucional. Cada um tem o seu papel. Nosso papel vai continuar sendo cobrar e fiscalizar e exigir e questionar.

Agora, o governo tem que atender os jornalistas com o mínimo de respeito institucional que se precisa. E aí a gente sai do discurso estigmatizante que condena, que criminaliza a atividade jornalística para um discurso de valorização do jornalismo. Tivemos já uma sinalização disso do ministro da Secom Paulo Pimenta, que já nos recebeu diante dos ataques que aconteceram mais recentemente contra os colegas, e temos uma pauta para o governo. A gente não vai deixar de cobrar porque é um governo que tem uma certa proximidade ou disposição para dialogar. A gente vai tentar exigir, sim, com as nossas pautas.

O ex-presidente Bolsonaro sempre teve uma relação conflituosa com a imprensa. Como você viu esses ataques, essas ameaças à democracia? Preocupa a manutenção do estilo agressivo e truculento contra a categoria. Isso preocupa?

Preocupa, porque continua sendo um grave ataque à liberdade de imprensa. A gente continua tendo colegas agredidos de uma forma muito feroz, com armas apontadas para a cabeça, não só com xingamentos. A gente teve um assassinato do Dom Phillips que, na minha avaliação, é um assassinato que resume tudo que nós passamos nos últimos 4 anos. Um jornalista defensor de direitos humanos, ligado à causa indígena, altamente experiente nesse tipo de cobertura, mas que foi assassinado nesse entorno do ódio e da devastação que o país passou. A destruição dos povos originários, do meio ambiente, tudo isso culmina com a tentativa brutal de silenciamento da imprensa. O bolsonarismo não acabou. O Bolsonaro perdeu a eleição, saiu do governo, foi retirado do governo, mas a semente desse ódio e esse tensionamento nós vamos levar tempo para reconstruir e pacificar esse país. E o jornalismo está nessa área de conflito.

Como a federação viu os ataques terroristas no último domingo com invasão ao Congresso, ao Planalto e ao STF? Vivemos uma ameaça real à nossa democracia?

Vivemos uma ameaça real à nossa democracia. Eu acho que ficou comprovado que os ataques foram premeditados, eles foram pensados, planejados. Os ataques tiveram ajuda das forças de segurança em grandes medidas, eu acho que isso ainda vai ser comprovado, já há muitos indícios. E foi um momento brutal. O Brasil hoje é falado internacionalmente por essa ameaça recente e fracassada de golpe. Porque eu não tenho dúvidas de que se esperava que o pânico, o terror se espalhassem em Brasília e se queria que os militares fizessem uma intervenção. Não aconteceu, os militares não têm uma homogeneidade no seu pensamento, algumas tropas são sim capturadas por esse bolsonarismo, mas nem todos são.

E nos chamou muita atenção a forma como a imprensa foi agredida. Havia um método, havia um modus operandi, que é você ameaçar, você confiscar material, destruir material, equipamento de trabalho, e roubar equipamentos pessoais de jornalistas. Eles sabiam identificar os jornalistas muito bem, embora alguns tivessem ali quase que à paisana, sem identificação das empresas, mas eles souberam identificar os jornalistas e abordavam sempre em grupo e sempre confiscando material e fazendo ameaças muito pesadas. Então, mostra que a gente precisa que os poderes também atuem para coibir isso e garantir o exercício do jornalismo seguro.

A gente vive esse processo de ressaca pós os atentados em Brasília, mas sempre existe aquele temor de que possa vir a acontecer novos incidentes. Existe esse risco? Existe essa preocupação?

É, eu acho que em certa medida se esperava capturar um sentimento da população que não é maioria. O Bolsonaro foi derrotado nas urnas com 2 milhões de votos de diferença. Então, o bolsonarismo não é maioria. As autoridades locais, federais, eu acho que agiram muito bem.

Deram a resposta que eu acho que a sociedade precisava. A polícia federal fez uma mega operação, o Ministério Público, apenas o governo do GDF que mostrou que tinha um lado e que, infelizmente, o seu lado não era o de defesa da democracia, por conta de tudo que, inclusive, motivou o afastamento do governador Ibaneis. Mas eu acho que logo em seguida foram chamados novos protestos e esses protestos, como diz o meu filho, “floparam”. Então, já mostra que essa parcela que estava disposta a matar e morrer para reconduzir o Bolsonaro por uma intervenção militar vai se dissipar, porque muitos foram presos.

Para finalizar, muito se fala sobre a possibilidade do presidente Lula em regular a imprensa, mas muito pouco se sabe sobre isso. Preocupa essa ameaça de regulação da imprensa?

Não nos preocupa, porque a regulação não é de conteúdo. Embora a gente não conheça se existe algum projeto do governo Lula sobre isso, porque pelo menos foi veiculado como ponto de plano de governo, como proposta de campanha. Mas a gente não conhece. O que a gente compreende é que existe uma necessidade de regulação do capítulo 5º da Constituição Federal que trata da comunicação social.

A gente precisa ter um sistema de comunicação tripartite, público, estatal e privado, a gente precisa fortalecer os mecanismos, os instrumentos de comunicação pública, como as TVs e rádios legislativas, que hoje informam a população e prestam um serviço público de levar informação para além de governos, para além de mandatos a que estão submetidas essas casas, se presta um serviço público. A gente precisa regular aquilo que está ali. A gente precisa impedir a propriedade cruzada dos meios de comunicação e precisa garantir a produção regionalizada, tanto artística, quanto cultural, quanto jornalística.

 Só assim a gente vai ter um jornalismo forte e uma categoria fortalecida, que é o que todos nós queremos e precisamos, não é?

Sem dúvidas. Eu acho que a pandemia e esse próprio processo que a gente vive de tensionamento político mostraram que o jornalismo é ainda mais necessário.

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