ENTREVISTA LUDHMILA HAJJAR
“É cedo para afirmar que estamos no final da pandemia“
Ludhmila defende a vacinação de crianças de 5 a 11 anos
Por Osvaldo Lyra
A médica Ludhmila Hajjar é uma das mais renomadas cardiologistas do país. Ela atende da ex-BBB Juliette Freire ao ministro do STF, Gilmar Mendes, e se tornou conhecida do grande público após negar o convite para assumir o Ministério da Saúde no governo Jair Bolsonaro. De acordo com ela, “vivemos hoje um momento de retrocessos no Brasil”, com a discussão do terraplanismo, do milagre da cloroquina e da negativa da ciência. “Mas, tudo isso há de mudar”. Após defender a vacina para crianças de 5 a 11 anos, Dra. Ludhmila diz que é “cedo para afirmar que estamos no final da pandemia“ e que o “Brasil tem que implementar um política de vacinação e de testagem que sejam abrangentes e contundentes”. Intensivista, professora de cardiologia da faculdade de medicina da USP e cardiologista intensivista da Rede D’or, ela diz ainda que nossa “ciência é forte, nossas instituições são sólidas” e que é necessário fazer investimentos “na tecnologia, na saúde e na educação para transformar o país”. Confira:
A senhora atende de Juliette a Gilmar Mendes. Como é a rotina de uma das médicas mais renomadas e concorridas do país?
Minha rotina é bastante intensa, mas sou muito realizada com a minha profissão. Ser médica exige dedicação, seriedade e compromisso com a vida, com a ciência e com a ética. A medicina hoje vai além de diagnósticos e terapêutica – é uma forma clara de auxiliar na prevenção de doenças, na cura, no alívio da dor, no conforto, e mais ainda, ela busca fazer o ser humano feliz. Meu dia-a-dia se inicia invariavelmente na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde sou intensivista e professora de cardiologia há 10 anos, exercendo atividades de ensino, assistência e pesquisa. Também tenho uma forte atividade privada nas áreas de clínica médica, cardiologia e terapia intensiva na Rede D’OR, principalmente nos hospitais Vila Nova Star (SP) e DF Star (Brasília).
Muitas pessoas passaram a conhecer o seu trabalho, após a negativa para integrar o Ministério de Jair Bolsonaro. Suas convicções científicas pesaram mais alto do que o convite político naquele momento?
Sem dúvida. Ser ministra da Saúde seria uma missão naquele momento que o Brasil passava, e o convite feito pelo presidente Jair Bolsonaro, apoiado pelo presidente da Câmara Arthur Lira, parecia refletir uma mudança de rumo no combate à pandemia, e então, eu planejei uma mudança radical na minha vida para assumir o posto. Porém, de imediato, compreendemos, tanto eu quanto o Governo atual, que nossas ideias não eram compatíveis, e então, decidi não aceitar o convite. Em algumas horas, eu já estava de volta a São Paulo, fazendo o que eu mais amo, exercendo a medicina dentro dos princípios da ciência e da evidência científica.
A senhora passou a ser perseguida por bolsominions, inclusive, sendo ameaçada de morte. Isso preocupou e incomoda a senhora?
Eu digo que foi mais decepcionante que preocupante. O debate das ideias e a divergência de opiniões deve fazer parte da democracia que tanto lutamos para alcançar. E essas demonstrações de raiva, ódio, mentiras e agressão infelizmente são uma marca triste dos tempos atuais que vivemos, e que muito contribuíram para tanto sofrimento da população brasileira, especialmente no que diz respeito ao manejo da COVID-19 no nosso país. Eu sempre repito: eu nunca tive medo e não tenho. Fiquei mais forte, com mais vontade de mudar o Brasil atual, e tenho certeza que vamos conseguir. Vivemos hoje um momento de retrocessos. As grandes nações se unindo em torno da ciência e do desenvolvimentismo, enquanto o Brasil discute o terraplanismo, o milagre da cloroquina, ao mesmo tempo encara a pauta de costumes como questão de estado, trata com descaso o meio ambiente, resiste a medidas básicas e seculares como segurança sanitária e vacinação, e nega a ciência. Mas, tudo isso há de mudar. O Brasil é um país único em riquezas ambientais e culturais, e felizmente, a ciência vem crescendo progressivamente. O povo brasileiro tem uma capacidade imensa de reagir, essa é a minha esperança.
Que avaliação a senhora faz do estágio atual da pandemia? Estamos a beira de um novo colapso na saúde do país?
Infelizmente estamos vivendo um momento muito difícil nesse momento da pandemia, com um número desenfreado de novos casos da COVID-19, com predomínio da variante Omicron, caracterizada pela alta capacidade de transmissão, que gerou uma sobrecarga abrupta no sistema de saúde, com um número elevado de novos casos e aumento do número de hospitalizações e de morte. Soma-se ao momento epidemiológico desafiador a bandeira da ignorância e da falta de ética de muitos brasileiros, que decidiram defender o charlatanismo, o curandeirismo, a pauta anti-vacina, e o emprego de terapias ilusórias, desviando o foco do combate à doença. O controle da COVID-19 teria sido bastante diferente e mais eficiente, reduzindo o número de mortes e o impacto sócio-economico da doença se o Brasil tivesse instituído uma política séria de implementação de testagem em massa, de isolamento dos sintomáticos, de isolamento, de educação global em uma linha única de informação, de gestão adequada dos dados epidemiológicos da doença, de aplicação de um protocolo de tratamento baseado em evidências científicas e de defesa das vacinas. Os próximos dias serão difíceis, muitos profissionais afastados, escassez de recursos humanos e estruturais, pressão sobre o sistema de saúde, impacto no controle de outras doenças, enfim, todo o cenário ruim de novo se instalando no país. Temos registrado mais de 135% de aumento nos casos de síndrome aguda respiratória nos últimos dias. O Brasil tem que se unir, tem que rapidamente produzir vacinas, tem que implementar um política de vacinação e de testagem que sejam abrangentes e contundentes.
A senhora disse ao O Globo nos últimos dias que as UTIs estão cheias de pessoas arrependidas, que agravaram da covid por falta da vacinação. A vacina continua sendo o único método capaz de frear a pandemia?
Isso é fato. Estimo que no Brasil atual, mais de 90% dos pacientes gravemente doentes pela COVID-19 sejam pacientes que não se vacinaram ou que tem a última dose feita há mais de 6 meses. A vacina é a principal medida de combate à doença, sem dúvida. Temos hoje vacinas eficazes e seguras, devemos aumentar a disponibilidade das mesmas e garantir o cumprimento do calendário de forma recorrente, seguido os protocolos científicos.
Como a senhora ve a politização em torno da vacina e do tratamento da covid hoje no Brasil?
Esse é um fato lamentável que assola nosso país. Eu considero que seja fruto de delírios de alguns, da falta de ética de outros e do declínio cognitivo de parte da população. Não vejo outra explicação. Os dados estão publicados, vimos a redução expressiva de mortes e de hospitalizações como consequência da vacina, já provamos cientificamente o que funciona como tratamento e prevenção e o que não funciona. E ainda assim, alguns preferem aderir ao obscurantismo e ao charlatanismo. Voltamos a idade das trevas. Mas, ainda tenho esperança de conseguir modificar esse cenário. Nossa ciência é forte, nossas instituições são sólidas. Prova disso foi a contribuição relevante e essencial que o país tem recebido do Supremo Tribunal Federal e da ANVISA. Espero muito que os tempos atuais sejam apenas uma fase transitória ruim de nossa história que ficará pra trás e servirá de motor para uma transformação em definitivo da nação brasileira. O investimento na ciência, na tecnologia, na saúde e na educação é a essência da transformação de um país. Eu enxergo o momento atual como de transição. Em experimentos científicos, há algumas fases nos quais há uma certa paralisia para depois vir um resultado positivo. Prefiro acreditar que estamos vivendo isso, uma fase difícil, que será em breve substituída por um tempo de crescimento e de reação.
A senhora é a favor ou contra a vacinação de crianças de cinco a 11 anos de idade?
Eu e toda a comunidade científica somos completamente favoráveis. A vacina contra a COVID-19 nessa faixa etária foi objeto de vários estudos científicos em todas suas fases de avaliação (pré-clinico, e fases I, II e III), e demonstrou-se eficiente e extremamente segura em reduzir mortes e hospitalização. Mais uma vez a desconfiança em relação a este tema é fruto da desinformação de lideres que tem crenças próprias e não seguem a ciência. Mas, o povo brasileiro terá disponível a vacina, e os pais vacinarão seus filhos, e evitarão as perdas dessas vidas. Mais de 10 milhões de doses foram aplicadas nos Estados Unidos, sem reações graves ou letais. O Brasil precisa vacinar suas crianças. Se dependesse da minha opinião, seria obrigatória. Os pais têm que receber informações adequadas e políticas de saúde bem definidas.
Podemos falar que caminhamos para o final da pandemia? Ou é prematuro afirmar isso?
É cedo para afirmar que estamos no final da pandemia. Claro que ao nos depararmos com um momento da doença caracterizado por manifestações clínicas mais leves e menor taxa de mortalidade, com o aumento da vacinação, é possível que estejamos caminhando para em breve encerrar o ciclo da pandemia no mundo. Esperamos que com o avanço da vacinação em todo o mundo, com a descoberta de vacinas mais baratas e acessíveis, e com a ampliação dos testes em massa de uma maneira mais corriqueira, possamos nos próximos meses enfim controlar a doença.
A senhora é defensora aguerrida do SUS, mas apoia parcerias público-privadas no sistema. Por que é tão difícil colocar essa fórmula como prioridade no país?
A saúde no Brasil precisa ser transformada. O SUS tem um papel grandioso ao buscar de forma igualitária, universal e integral, garantir saúde ao povo brasileiro. Porém, com o aumento da expectativa de vida da população, com o aumento da complexidade das doenças, e com mais de 200 milhões de pessoas a serem beneficiadas, faltam recursos humanos e estruturais para garantir acesso de qualidade. É preciso uma discussão mais ampla, uma mudança de rumo do SUS no Brasil. Vejo que a ampliação de parcerias publico-privadas é uma das maneiras que temos para qualificar o SUS e garantir mais recursos. Os desafios são enormes, mas há muito o que fazer pela saúde do brasileiro. Cito a importância de politicas de prevenção, melhorias na gestão da saúde, a essência das Universidades como grandes balizadores do ensino e da saúde brasileira, a melhoria na hierarquização do sistema, o maior envolvimento da rede privada na saúde como um todo, o maior controle de qualidade e desfechos em saúde, dentre outros.
A senhora dedicou a maior parte da vida profissional à área acadêmica e ao atendimento pelo SUS. Faltam recursos ou uma otimização nos gastos da área?
Os dois principais problemas do SUS hoje na minha visão são financiamento inadequado e má gestão, que também envolve infelizmente a corrupção. Temos que mudar o cenário. Com a melhora que esperamos na economia, devemos buscar aumentar o porcentual do PIB investido em saúde, e ao mesmo tempo, é essencial melhorar a gestão do SUS, com a desburocratização do sistema, o combate a corrupção, e luta continuada pela modernização e incorporação de novas tecnologias, visando a otimização de resultados e análise de custo-efetividade. O investimento em ciência e na educação são centrais para a transformação da saúde.
A senhora disse que “é possível salvar muitas vidas através da informação adequada”. Vivemos outra pandemia, que é a questão das fake news. Esse é um mal que preocupa?
Esse mal destrói um país, foi responsável por milhares de vidas perdidas, faz o país perder o foco. É um desafio nosso enfrentar esse momento, usando o mau exemplo para transformar nosso país sob o olhar do saber, da ciência, do conhecimento e da verdade. Acredito que vamos retomar nossa responsabilidade com o meio ambiente, vamos combater a fome com uma economia voltada a todos e não só servir a uma minoria, vamos renovar nosso compromisso com a ciência e vamos enaltecer a cultura brasileira. Perdemos alguns valores pela invasão de fake news, pelo discurso do ódio. Fomos tomados por uma polarização indevida. Mas, felizmente, somos um único povo, filhos de um país abençoado, e seremos capazes de crescer novamente, de recuperar o orgulho de ser brasileiro, enfim, de virar essa pagina.
Pra finalizar, nos fale sobre sua relação com a Bahia e os baianos e que mensagem deixa pra nossa população?
A Bahia é um estado que tenho um amor imenso. Sou médica de vários baianos e tenho relacionamento imenso e fraterno com o povo da Bahia. Também sempre recordo que a primeira faculdade de medicina no Brasil nasceu na Bahia, a FMB-UFBA, instituída em 1808, nos inspirando até hoje. Falando em inspiração, a Bahia exala cultura, criação, beleza e força, queremos muito que a força baiana ajude o Brasil de agora a transformar o seu futuro. A Bahia das nossas estrelas Daniela Mercury, Nizan Guanaes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Amado e de tantos que iluminam nossa estrada.
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