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ENTREVISTA - JOSEMAR PEREIRA

É preciso desmistificar a ideia de que a Justiça Militar é corporativa

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Militar afirma que esse segmento da Justiça é pouco conhecida

Por Divo Araújo

04/12/2023 - 6:00 h | Atualizada em 04/12/2023 - 11:11
Josemar Pereira é presidente do  Instituto Brasileiro de Direito Milita (IBDM)
Josemar Pereira é presidente do Instituto Brasileiro de Direito Milita (IBDM) -

A Justiça militar é a mais antiga do Brasil, chegou aqui em 1808 junto com Dom João VI, mas ainda é quase desconhecida no país. Com a missão de mudar essa realidade foi criado em 2019, na Bahia, o Instituto Brasileiro de Direito Militar (IBDM). Nesta semana, o IBDM dá mais um passo na tarefa de jogar luz sobre o universo do Direito Militar com um encontro nacional, nesta quinta-feira, dia 7, no auditório do Abrigo do Salvador, em Brotas.

O evento terá a presença do ministro presidente do Superior Tribunal Militar (STM), tenente brigadeiro do ar Francisco Joseli. O encontro, cujas inscrições acontecerão através da doação de alimentos não-perecíveis, é direcionado não apenas a militares, mas também a advogados, profissionais da área jurídica, servidores públicos, estudantes de direito e demais interessados no tema.

Em entrevista ao A TARDE, o presidente do IBDM, Josemar Pereira, destaca a importância de desmistificar esse ramo do direito tão pouco conhecido pelos brasileiros. “As pessoas precisam conhecer mais o Direito Militar”, defende ele, pontuando que o segmento pode oferecer excelentes oportunidades para advogados que queiram se especializar. “Se você olhar o cerne do Direito Militar existe um campo muito grande de atuação”. Conheça mais sobre a Justiça Militar na entrevista que segue.

A capital baiana vai sediar nesta semana um encontro sobre o Direito Militar, um ramo do Direito ainda pouco conhecido pela grande maioria das pessoas. Qual é o papel do Direito Militar?

O Direito Militar é um ramo do Direito Penal Comum. Mas o Direito Militar tem suas especificidades, que são voltadas para militares das Forças Armadas ou policiais militares. A primeira Justiça no Brasil foi a Justiça Militar. Inclusive a gente brinca que a Justiça Militar veio com as caravelas, em 1808, com Dom João VI, quando ele saiu de Portugal e veio para o Brasil. A nossa primeira Força Armada é a Marinha, depois o Exército e no século 20 surgiu a Aeronáutica. Quando você tem a força - e a gente vai observar isso já no Direito Romano - o Direito Militar é o que prevalece no sentido de controlar aquele efetivo. Você tinha um pretor, que era um civil, e os demais que julgavam aquela conduta. É uma maneira de você, como a gente costuma dizer, ter um sistema de freios e contrapesos. As pessoas precisam conhecer mais o Direito Militar. Até porque hoje nós temos um universo maior, quando passamos a ter também mulheres nas Forças Armadas e na Polícia Militar dos estados.

Os militares seguem regras rígidas de hierarquia, disciplina e subordinação. Há alguma contradição entre hierarquia e disciplina e a dignidade da pessoa humana e o respeito ao devido processo legal, normas que balizam a Justiça comum?

Não existe, até porque o Estado Democrático de Direito permite essa convivência. O respeito que existe à hierarquia e à disciplina vem do respeito às normas. Isso é peculiar para qualquer cidadão. Por que não o militar? É verdade que nós temos dois pilares importantíssimos que são a hierarquia e a disciplina. Se eles não funcionarem um abraço. Por isso temos que ter justamente uma Justiça que possa frear os desmandos, o exorbitar das próprias razões.

Como será o evento?

O evento Direito Militar vai ser composto com alguns ministros que estarão palestrando, inclusive o ministro Joseli Parente Camelo, atual presidente do Superior Tribunal Militar (STM). Também o general de Exército e ministro, Marco Antônio de Farias. Além de outros que estarão presentes, mas não estarão palestrando. Teremos também o Doutor Foucault, que é um juiz estadual de Goiás e capitão da reserva não remunerada da Polícia Militar de Minas Gerais. Ele vai falar sobre a minirreforma do nosso Código Penal Militar, que depois de 54 anos teve mudanças significativas. O evento vai acontecer no Abrigo do Salvador, a partir das 8h30. A programação se estende até 17h. Teremos também o doutor Henrique Trindade, que é de Salvador, e vai falar dos pontos controversos do Direito Eleitoral, um tema também palpitante. Ano que vem teremos eleições. E teremos a bênção apostólica de Dom Marco Eugênio. Esses temas transversais mostram o elastério que tem o Direito Militar. Teremos também o doutor Ricardo Guedes Filho que estará falando sobre a história do Abrigo do Salvador. Se o evento vai ser no Abrigo do Salvador, por que não contar um pouco da história dele. Começamos inclusive uma campanha social de arrecadação de alimentos. Quem quer se inscrever no evento a contrapartida é um alimento não-perecível. Nós temos três pontos para aqueles que queiram doar os alimentos. Nós temos o próprio Abrigo Salvador, a Arena Parque Santiago e o Centro Espanhol na Barra.

O senhor preside o Instituto Brasileiro de Direito Militar (IBDM), entidade que tem como missão justamente disseminar o conhecimento sobre o Direito Militar. Por que é tão importante que as pessoas saibam mais sobre esse ramo do Direito?

Primeiro, para desmistificar a ideia que a Justiça Militar é corporativista. O segundo ponto é entender como funciona o Direito Militar. A situação castrense, como ela funciona? Nós temos somente hierarquia e disciplina? Não, temos uma série de bens jurídicos determinados pelo Direito Militar, como a própria autoridade. Então, é para que as pessoas conheçam um pouco desse ramo. Além disso, hoje, com o elastério que foi dado pela nossa Constituição de 1988, existe um nicho de mercado para o advogado, para o quinto constitucional. Existe um ramo que precisa de pessoas qualificadas. Quando o estudante sai da faculdade acaba escolhendo Direito Penal, Tributário, Trabalhista. O Direito Militar também é uma possibilidade. Dizem que o Direito é controvertido, mas é por isso que ele tem essas várias possibilidades.

O Direito Militar é um segmento com potencial de retorno profissional e financeiro para quem pretende se especializar?

Pode ter certeza e essa é uma das coisas que procuro mostrar. As pessoas ficam com receio do militar diante de um processo que foi vivenciado numa determinada época. Mas se você olhar o cerne do Direito Militar existe um campo muito grande. Você tem o campo administrativo, previdenciário, penal. O universo é muito grande para quem pretende atuar no Direito Militar. Existem no Brasil mais de um milhão de advogados. A gente precisa buscar novos horizontes, descortinar. Aproveito a oportunidade para dizer que o congresso será muito importante porque também é uma excelente oportunidade de networking, de conhecer os ministros e ver que eles são pessoas do povo, mas que observam muito o Direito.

Como surgiu o IBDM?

O Instituto Brasileiro de Direito Militar nasceu em 2019. Antes um pouco do primeiro congresso, onde nós fizemos uma persecução, vamos dizer assim, nas faculdades, levando o Direito Penal Militar, o Direito Administrativo e o Processual Penal Militar. Nós tivemos no primeiro momento 12 universidades na região de Salvador e metropolitana. Na época, a gente levou também um pouco de o que é a correção na Polícia Militar. Depois disso fui instado, no Diretório Acadêmico da Unifacs, a montar o instituto, que é sem fins lucrativos e apartidário. Nós temos o professor e juiz federal Dirley da Cunha Júnior, que é o nosso vice-presidente. Temos outras pessoas também, como a doutora Barbara Bembem, diretora financeira do IBDM. Nosso primeiro congresso ocorreu em 2019. E essas pessoas que vão palestrar este ano foram fundamentais para o surgimento e a consolidação do IBDM, que é o ministro Farias e o ministro Joseli. Tanto é que nós estamos fazendo, depois de quatro anos, o primeiro ‘Encontro Nacional IBDM dos Primeiros Palestrantes’. Dentre eles, em memória, vamos fazer uma homenagem ao senador Major Olímpio que faleceu em decorrência da Covid. Ele também esteve nesse primeiro encontro, em 2019. Vamos fazer uma transmissão ao vivo com a esposa dele, teremos um minuto de silêncio e temos uma placa in memorian que vamos encaminhar à esposa de Major Olímpio agradecendo a contribuição dele para o IBDM.

O Tribunal Militar Federal julga os crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas, mas no caso dos policiais militares e bombeiros é atribuição da Justiça Militar Estadual. A Bahia, no entanto, não tem um tribunal? Como fica essa situação?

A Bahia é o berço do Brasil, mas não possui ainda um Tribunal de Justiça Militar. A própria Constituição determina que o estado precisa ter mais de 20 mil integrantes da força militar para ter um tribunal. Se você juntar o efetivo da Polícia Militar da Bahia, hoje em torno de 38 mil integrantes, mas os bombeiros e mais o pessoal da reserva, você tem mais de 50 mil integrantes. Então, o efetivo já atende nesse sentido. Mas isso também depende de uma vontade política, de uma normativa do próprio Tribunal de Justiça da Bahia. Em tese, esse processo já está avançando quando nós fizemos, no ano passado, o primeiro encontro nacional IBDM do juízo militar e tivemos a participação dos presidentes dos Tribunais de Justiça Militar do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais – os únicos três estados que possuem tribunais militares no Brasil. Durante o evento, foi fomentada a iniciativa da instalação do Tribunal de Justiça Militar da Bahia. Porque os requisitos constitucionais a Bahia já possui. Tanto na Carta Federal como na Carta Estadual. Importante frisar que a União tem o Superior Tribunal Militar, o STM, que atua para julgar os integrantes das Forças Armadas. E os estados precisam ter os tribunais para julgar os recursos de segundo grau. Hoje, a Bahia possui uma única vara do juízo militar para atender 417 municípios. Para uma instituição grande como a Polícia Militar, mais o Corpo de Bombeiros. Está evidente que uma vara não é o suficiente para julgar um universo deste tamanho. E quando você teve, em 2017, a Lei 13.491, que redefiniu alguns crimes militares, ampliando a competência da Justiça Militar dos Estados e da União para julgar civis por crimes militares, essa situação piorou. Olhe só a imensidão do universo que nós temos para que uma única vara possa administrar e não cair na prescrição.

Essa lei de 2017 gerou um maior volume de ações para Justiça Militar?

No momento em que você tem um universo maior automaticamente você terá mais dificuldade para dar vazão. Assim, por exemplo, ocorreu quando houve a emenda 45, que deslocou a competência dos casos de crimes dolosos contra a vida para o Tribunal de Justiça. É só ver o que aconteceu com o Tribunal do Júri? Existe uma demora maior porque você tem um universo muito grande e muitas ações que automaticamente ocorrem. Essa emenda 45 deslocou inclusive crimes letais envolvendo policiais para o Tribunal do Júri.

O que mudou com a Reforma do Código Militar?

A publicação da lei 14.688, de 2023, pacificou, por exemplo, que militar em situação de atividade é o militar da ativa; definiu o momento em que uma pessoa passa a ser considerada militar; inseriu como agravante o fato da vítima de crime militar ser pessoa com deficiência; concedeu um tratamento mais humanizado no crime continuado ao igualar a previsão expressa de que agravante e atenuante não podem ultrapassar o máximo mínimo legal. Tem também a previsão do perdão judicial para os casos de injúria, homicídio culposo e lesão corporal culposa; distinção de tratamento entre o usuário de drogas e o traficante. Teve também a previsão expressa de crimes militares no Código Penal militar como crimes hediondos. Então tivemos mudanças significativas porque o Código tinha 54 anos. Ele veio a passar por uma reforma agora. Apesar de que nós temos no Código de Processo Penal Militar o artigo terceiro, segundo o qual alguma coisa que não é tipificado no Direito Militar pode ser balizado por outras lei. Você pode trazer outras doutrinas para dar um balizamento e tomar uma decisão mais assertiva.

É um pleito da Justiça Militar o aumento de assentos de magistrados militares no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Conselho Nacional de Justiça. Porque essa ampliação é importante?

É importante, porque quem conhece da liturgia, quem conhece das nuances da Justiça Militar estará bem mais preparado para dizer assim: olha, o melhor caminho a ser percorrido é esse aqui, dentro do Direito, dentro da legalidade e que não fira nenhuma norma. Você traz essa bagagem da caserna para uma vivência mais prática para resolução de conflitos. É bom lembrar também que o Conselho Nacional de Justiça visa a correção. Mas nós temos, nas próprias instituições militares, as corregedorias. Tem gente que diz: a corregedoria só vem para prejudicar. Não é isso. A corregedoria foi feita para resolver os conflitos e mostrar qual é o melhor caminho. Às vezes, se você marchou para direita ou para esquerda, a figura da correção é justamente para lhe mostrar o caminho certo .

Muita gente acredita que pode existir um espírito de corpo na Justiça Militar. Como o senhor vê isso?

Não ocorre o espírito de corpo. Em qualquer profissão existe a questão da união. É normal até porque você tem que defender os seus valores. Mas a Justiça Militar corta na própria carne e tem o sentido sobretudo da fiscalização. Porque o mais importante é fiscalizar, acompanhar e fazer com que o Direito possa ser respeitado.

Como o senhor vê a presença dos militares nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?

Quando existe uma falha em determinado estado que venha comprometer a ordem pública, automaticamente as Forças Armadas são convocadas e existe um planejamento para que atue. Para que elas possam suprir aquela lacuna e restabelecer a ordem. Tanto que, após o restabelecimento da ordem, os militares saem do teatro de operações e entregam realmente a ordem restabelecida. A gente acompanha essas operações com atenção. Claro que as Forças Armadas são voltadas para guerra. Mas, se nesse momento, o conflito está sendo interno e tem que ser estabelecida direitos e garantias individuais, as Forças Armadas podem ser convocadas. É isso é que normatiza a nossa Constituição.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, decidiu que os militares envolvidos nos atos criminosos contra as sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, serão julgados pela justiça comum. Foi uma decisão acertada?

Nosso ordenamento jurídico estabelece o que é considerado crime militar. O STF é o guardião da Constituição. E, como guardião da Constituição, eles estão observando com olhos mais dogmáticos , vamos dizer assim. Precisamos conhecer o caso concreto na sua essência. Mas, com toda certeza, a decisão foi fundamentada para que esses casos fossem deslocados para a Justiça comum. Talvez, o ministro tenha pensado que se naquele momento fosse julgada pela Justiça Militar, haveria corporativismo. Não sei. Mas a gente precisa entender o que diz a regra. E quem estabelece o que é crime militar, é o artigo 9º do Código Penal Militar. Ele estabelece o que é crime militar e o que não é. Mas, como disse, o STF é o guardião da constituição.

Para concluir, a gente viu em 2021 e 2022 a tentativa de políticos, como os ex-deputados Daniel Silveira e Roberto Jefferson, de levarem questões civis para a Justiça militar. Qual é a importância da Justiça militar em atos que atentem contra nossa democracia?

A Justiça militar veio para atuar na figura dos militares, assim como a Justiça do Trabalho, por exemplo, tem também suas particularidades. É como disse: se determinada situação se enquadra no artigo 9º como crime militar tem que ser julgado pela Justiça Militar. Se não se enquadrar, ele vai ser julgado pela esfera que tem que ser julgado. Talvez tenha sido próprio desconhecimento das partes. Mas a Justiça Militar se debruçou sobre o processo, analisou e disse: ‘Olha, isso aqui não me pertence, pertence à Justiça comum’. Declinou da competência porque não tem razão para que aquilo fosse julgado lá.

Raio-X

O presidente do Instituto Brasileiro de Direito Militar (IBDM), Josemar Pereira Pinto, é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador (Ucsal). Tem pós-graduação em Direito Público pela Unifacs e especialização em Política e Estratégia, Planejamento Estratégico pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg). Tem pós em ciências criminais, Direito Militar e normas constitucionais. Em 2014, recebeu o título de Cidadão Baiano pela Assembleia Legislativa.

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