ENTREVISTA – JESSÉ SOUZA
‘O Brasil corre o risco de virar uma espécie de Evangelistão’
Sociólogo lança livro no qual reflete sobre a guinada à direita dos eleitores mais pobres do país
Por Divo Araújo
Em seu novo livro, Os pobres de direita – A vingança dos bastardos, o sociólogo Jessé Souza busca explicar as razões pelas quais uma grande parte dos eleitores das camadas menos favorecidas votou no ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018. Para ele, a combinação de desilusão política com a falta de compreensão sobre o empobrecimento do país nos últimos anos levou a essa guinada à direita observada entre os eleitores mais pobres.
“A gente precisa compreender que tanto o negro evangélico quanto o branco pobre de São Paulo e do Sul do país empobreceram depois do golpe de 2016. E ninguém explicou por que eles ficaram mais pobres”, diz Jessé nesta entrevista exclusiva ao A TARDE.
Na conversa, o sociólogo explica como a extrema direita e setores religiosos canalizam a raiva desses eleitores marginalizados. Souza alerta ainda para o que vê como um risco de ‘Evangelistão’ no Brasil, onde valores fundamentalistas suprimem a reflexão crítica e moldam uma nova realidade social. Saiba mais sobre o novo livro de Jessé na entrevista a seguir.
No seu novo livro, ‘Os Pobres de Direita – A vingança dos bastardos’, o senhor busca explicar porque os eleitores pobres que votaram em Lula e Dilma, em quatro eleições consecutivas, foram decisivos para a vitória de Bolsonaro em 2018. Quais foram os fatores que provocaram essa guinada?
Dentre os fatores dessa guinada está, primeiramente, o trabalho destrutivo da Lava Jato para criminalizar a política e os partidos. Isso vai abrir espaço para todos os caras que estão dizendo, ‘ah, eu estou fora da política’. Como se o roubo não fosse feito no mercado real. Depois, você teve uma falha também da esquerda, que não explicou o processo do empobrecimento logo depois do golpe. Antes do golpe, em 2016, o Brasil era a sexta maior economia do mundo. A capacidade de compra do trabalhador tinha aumentado 70%. Foi isso que a elite não gostou. Ela queria baixar salário, quebrar garantias. Isso precisava ser explicado para as pessoas, mas ninguém nunca explicou. O cara que está sofrendo, que não pode mais mandar o filho para escola particular, não vê chance de futuro. E fica com raiva. Mas, como ninguém esclareceu porque ele ficou mais pobre, não pode transformar essa raiva em indignação. Quem é o culpado disso? Basicamente é a Faria Lima, com seu rentismo absurdo, que retira dinheiro de todo mundo de um modo invisível. Se você não explicar isso, o cara ficou mais pobre e não sabe quem e o que causou. Ele tem só raiva. A raiva dele não se transforma em indignação, em mensagem política. E um cara que tem só raiva, vai ser facilmente manipulado. Por quê? Se ele não pode pôr a raiva dele contra os poderosos que o humilham, ele vai ou jogar nele mesmo, cair na depressão, no álcool. Ou vai - e esse é o trabalho que a extrema direita e a pregação evangélica fazem – achar um bode expiatório, que é mais frágil ainda. O negro, a mulher, o gay... Aí os bodes expiatórios são intercambiáveis. É o nordestino do lanche grátis, do Bolsa Família.
No livro, você divide essa classe empobrecida de eleitores em dois grupos – o pobre branco do São Paulo e do Sul do Brasil e o negro evangélico. O que eles têm em comum e quais são as principais diferenças?
Eles são pobres, ganham entre 2 e 5 salários mínimos. Mentiram para eles ao dizer que são a nova classe média, que foi uma bobagem. Isso faz com que a classe média real se ache elite e a elite fique completamente invisível, que é o que ela precisa e quer. No Brasil, 80% dos eleitores não são nem da classe média branca e nem da elite, mas pobres. A parte de cima desses 80% de eleitores, como mencionei, ganham entre 2 e 5 salários mínimos. Ou seja, é o pobre remediado. E os que ganham abaixo de 2 salários, são os pobres marginalizados, os excluídos. Dentre os pobres remediados, esses dois grupos ganham mais ou menos a mesma coisa, o que já é uma semelhança. A diferença principal é racial. Porque o branco pobre, apesar de sofrer e ter raiva pela pobreza, não precisa provar que é gente. Já o negro tem que provar, por causa da desumanização. O negro evangélico é instado, pela pregação religiosa, a diminuir um pouco essa humilhação na medida em que se sente superior a alguém. E aí pode ser o negro não-evangélico, o bandido, a mulher, o gay. Como disse, os bodes expiatórios são intercambiáveis. É o que essa extrema direita faz muito bem e a pregação evangélica também. A gente precisa compreender que, tanto esse negro evangélico quanto o branco pobre, empobreceram depois do golpe. E ninguém explicou porque eles ficaram mais pobres. A principal questão é essa. A desorientação do povo em relação a quem é o seu inimigo, quem o está roubando, quem o está deixando mais pobre. Se ninguém falou isso para essas pessoas, elas vão adivinhar como? Se elas soubessem quem é o causador da raiva dela, poderiam transformar a raiva que sentem em indignação, o que é uma ação política. Como isso não acontece, ficam só com a raiva. O que a igreja evangélica e a extrema direita convidam, é para ele enfiar essa faca envenenada em alguém mais fantástico ainda. O negro evangélico é instado a embranquecer, a participar dos valores da classe dominante, que é por exemplo chamar o negro de bandido. Ele vai ter um mínimo de ar, de se livrar dessa humilhação que é tão atroz no caso dele. O que une, portanto, esses dois segmentos é a humilhação.
A extrema direita soube canalizar essa revolta?
Exatamente isso. A extrema direita e a pregação evangélica se aproveitaram dessa revolta para canalizá-la de um modo que vai levar a uma guerra entre os pobres. No fundo, é uma guerra do pobre remediado contra o pobre excluído. Como ninguém explicou para ele quem tinha deixado essa situação, ele vai achar que é o Bolsa Família do nordestino preguiçoso que tirou o dinheiro dele. Isso que é dito.
Essa pregação evangélica, a que você se refere, acaba moldando um pouco essa virada do país à direita. Ela constitui uma ameaça para o futuro?
É uma ameaça enorme. Fui à periferia do Rio e de São Paulo, entrevistar essas pessoas, especialmente os negros evangélicos. Aí você nota uma regressão à Idade Média. A ameaça é essa: aqui virar uma espécie de ‘Evangelistão’, um Irã, uma coisa fundamentalista. Uma regressão da capacidade de reflexão. O neopentecostalismo acaba, por exemplo, com a causalidade social completamente. Se você está doente não é porque o SUS é subfinanciado, ou não tem farmácia popular. É porque o diabo tomou conta do seu corpo. Não tem nenhuma explicação sobre como a sociedade funciona. É um anti-esquerdismo enorme. E também rouba o intelecto da pessoa. A pessoa não consegue mais compreender o mundo onde vive. É uma regressão enorme. E não é uma coisa para o futuro – já está acontecendo. Na verdade, a minha sensação na periferia é que já aconteceu. Está tudo dominado. O que me deu desespero.
Você diria que a questão moral hoje no Brasil pesa mais do que a questão econômica?
Claro, e não é só hoje. A questão moral pesa mais do que a questão econômica em todas as épocas. A gente não vê a questão moral porque ela se traveste de questão econômica. Mas essa questão da moral é a principal. Porque é tudo montado nisso. Os seres humanos precisam mais do que dinheiro e poder. Porque dinheiro e poder são só instrumentos para você conseguir uma distinção social superior sobre os outros que não tem. Isso não tem nada de econômico, é moral. No fundo, qual é a realidade? Oitenta por cento da nossa população é objetivamente humilhada. E ela se sente humilhada. Humilhada por quê? Ela não tem acesso à saúde de qualidade. Não tem acesso à educação de qualidade. Não tem acesso à cultura. Ou seja, não tem acesso às benesses do mundo moderno. Quem não tem esse acesso é humilhado e se sente humilhado. A questão é o que fazer com essa humilhação.
Você considera que o racismo reprimido também influencia essa guinada do país?
Obviamente, porque o racismo é o mapa social mais simples. Cada um de nós precisa ter um mapa. Onde eu devo ir? O que eu devo fazer? E o mapa social mais simples é o racial. Ninguém precisa explicar. As pessoas pensam racialmente o mundo. Esse é o ponto. O Brasil não pode mais ter o racismo explícito, por causa de Getúlio Vargas, mas tem o racismo cordial. Você não pode assumir que é racista, mas o afeto racista continua no seu peito. O que você precisa é de uma máscara conveniente para que possa exercer o seu afeto racista. Aí você transforma o negro em bandido. Isso foi uma construção social. Você pode dizer o quê? ‘Não, eu não estou querendo matar preto, estou querendo matar bandido’. O que você faz com isso? Você moraliza o racista. Ou seja, ele não precisa mais sentir culpa de dizer que quer assassinar o outro. O que você está dizendo é: ‘Não, eu sou um cara moral. Eu quero proteger a sociedade desses maus elementos’. Você moraliza o racista. E qual é o racista que não quer ser moralizado? A questão racial está na base de tudo. Embora ela opere sempre por meios de máscaras. Outra máscara é você chamar de povo corrupto, que elege corrupto. O branquinho europeu de São Paulo não se acha parte desse povo. O corrupto para ele é o povo. Agora, ele pode odiar esse povo com um argumento moral. Os caras são corruptos, elegem corruptos. Essa é outra máscara do racismo. Porque atinge as mesmas pessoas estigmatizadas pelo racismo explícito anterior. O nordestino, por exemplo. Cem por cento do pessoal que eu entrevistei no Sul, o grande ódio deles era contra o nordestino do Bolsa Família. Que diz que é preguiçoso, não trabalha, fica fazendo filho... Mas, se você pensar bem, não existe preconceito regional. Ninguém vai odiar ninguém porque nasceu numa outra latitude. No fundo, o nordestino, como eu próprio, ou é mestiço ou negro. Falo de quase 80%. Portanto, é um racismo contra o mestiço e negro nordestino, que são a imensa maioria. Mais uma vez, tem uma máscara de preconceito regional, mas, no fundo, é racismo. Desde que a gente tenha olhos para ver, todas as clivagens, todos os conflitos sociais e políticos, estão marcados e têm como fonte o preconceito racial, mas com outro nome.
É muito comum a gente ver gente da esquerda atribuindo a falta de inteligência ao indivíduo que vota na extrema direita. Isso é um erro na sua avaliação?
Isso que é burrice. Porque, no fundo, desconhece que a dimensão moral é muito mais importante do que a econômica. A dimensão moral é a necessidade de ser respeitado. Essa é a nossa necessidade mais fundamental. E, quando a gente não é respeitado, essa dimensão passa a comandar. Ou seja, a gente perde a inteligência. Um branco pobre que se identifica com o Bolsonaro, com a raiva que tem, ele se identifica como um pobre nordestino que se identifica com Lula. Ele se vê no poder. Com Bolsonaro, ele acha que está representado pela primeira vez na presidência. Isso é muito. É preciso resgatar a auto-estima, a autoconfiança dele. Sem auto-estima você não sai da cama. Não existe produtividade, nada. Ele precisa ter isso. E essa identificação com Bolsonaro dá isso para ele. O que o pessoal precisa compreender é que essas questões são morais. É o pessoal que se sente humilhado. E você precisa mostrar as razões da humilhação para que ele recupere a sua capacidade reflexiva e a sua inteligência. Senão, essa necessidade moral é tão grande que vai obnubilar a inteligência dele.
Você já afirmou que a esquerda erra ao dar protagonismo excessivo às pautas identitárias. Por que isso seria um erro?
A gente tem que ser muito cuidadoso com essa questão, porque as pessoas acham que você está falando contra mulheres e negros, quando se diz uma coisa dessas. A minha crítica é a forma como esse identitarismo entrou nas sociedades americana e brasileira. O que ele representa? Uma ascensão de indivíduos. Ou seja, são menos de 1% dos negros e menos de 1% das mulheres que são beneficiadas por isso. Como diz a filósofa americana Nancy Fraser: ‘É necessário agora um feminismo para 99% das mulheres e não para 1%’. É muito mais importante, você tomar medidas que ajudem as 70% das mulheres pobres que são negras. Isso é feminismo real. Você pode também fazer políticas, obviamente, mas o discurso chega não pobre. É muito mal comunicado. Inclusive porque esse identitarismo foi criado para causar confusão mesmo. Essa é uma forma do capitalismo financeiro, inventado pelo Partido Democrata americano, para dizer que todo mundo estava ficando pobre, mas que eles ainda estavam defendendo alguma forma de emancipação. Não se combate a emancipação com a ascensão individual. Não se trata da ascensão de alguns mais aptos. Isso sempre aconteceu entre nós, inclusive com os negros. O que é o capitão do mato senão isso? Isso não combate desigualdade nenhuma. Na verdade, aprofunda a desigualdade, porque é meritocrática.
Falando um pouco das eleições deste ano, a gente teve o fenômeno de Pablo Marçal em São Paulo. Quais são as principais semelhanças e diferenças dele em relação a Bolsonaro?
Ele é uma versão mais maligna, porque é mais inteligente. É um comunicador, tem roupinha da Faria Lima e tudo. Bolsonaro é meio canastrão nesse papel. Então, você tem um cara que é muito mais perigoso. Até porque, o que é Marçal? Marçal é um pastor neopentecostal na política. Não tem nenhuma distinção no que ele faz na política do que um pastor faz numa igreja universal. Nenhuma, zero. Ele vende exatamente esperança para essas pessoas, que não têm esperança nenhuma, não têm futuro. O que a gente precisa compreender é o seguinte: quem é pobre precisa sonhar também. Precisa ter sonhos. Hoje eles têm sonhos que não vêem como implementar. Todas as chances foram tiradas. Aí então entra uma espécie de esperança mágica. Vem as bets. Você pega o seu Bolsa Família e aposta em bets. Porque é a forma que você vê como eventualmente a única para melhorar de vida. É compreensível isso, mas é mágico. E magia é enganação e manipulação. É magia você criar um futuro imaginário para aqueles que não têm futuro e manipulá-los a partir disso. É exatamente o que Marçal faz
Outro ponto que chamou atenção também foi o desempenho do PT nas eleições deste anos Você já alertou para o risco do partido perder relevância como aconteceu com o PSDB...
O PT ganhou algumas prefeituras a mais em relação à eleição anterior, mas perdeu 800 vereadores. Obviamente, o partido foi bombardeado pela elite e pela imprensa elitista. A Lava Jato foi montada para destruir o PT, e terminou destruindo a política inteira. Tem esses aspectos todos que são necessários para a gente compreender o quadro. Mas houve muita incompetência também. O PT não conseguiu se redefinir, não conseguiu passar essa mensagem que o pobre quer ouvir. Que é porque ele ficou pobre e como pode deixar de ser pobre. Esse é o ponto principal. A questão principal para o país, como eu digo, é explicar para as pessoas por que elas são pobres e o país rico. Elas sabem que o país é rico. Há 10 anos, era a sexta maior economia do mundo. Essa é a questão principal. Só que parece que as pessoas não percebem. E aí o que você tem ainda é o enorme carisma da figura do Lula, graças a Deus. Foi Lula quem deu esse conteúdo popular para o PT. Mas o pós-Lula é um quadro de inanição, muito semelhante ao que o PSDB vive hoje, de pouca relevância.
O pobre da direita foi decisivo também nessa eleição municipal? Você considera que essa guinada do país à direita veio para ficar?
Infelizmente, não tenho uma boa notícia. Ela veio para ficar e se tornar eventualmente a força política mais importante do país. E, sim, o pobre da direita foi decisivo nessa eleição municipal também. Veja bem, se a classe média real é menos de 20%. O restante, pelo menos 80%, é pobre. O que importa é saber o voto desse pessoal. A classe média não elege um senador, se depender do voto só dela. O voto importante é do pobre remediado e do muito pobre. São sempre os pobres que decidem a eleição.
Raio-X
Jessé Souza é sociólogo, professor e pesquisador brasileiro, formado em Direito e mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. É também doutor pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e pós-doutor pela New School for Social Research, em Nova York. Professor titular da Universidade Federal do ABC, dedicou-se a estudos sobre desigualdade e classes sociais no Brasil e publicou obras como 'A Ralé Brasileira e A Elite do Atraso. É autor de mais de 20 livros, incluindo análises sobre pensamento social brasileiro e teoria crítica. Em 2015, foi nomeado presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), permanecendo até 2016.
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