ENTREVISTA OLÍVIA SANTANA
"O Movimento Negro tem uma função civilizatória no Brasil"
Deputada é autora da lei que garante absorventes higiênicos para mulheres de baixa renda
Por Jefferson Beltrão
Primeira negra eleita deputada na Bahia, Olívia Santana (PCdoB) se vê como uma guerreira na luta contra as desigualdades sociais e a discriminação. “Nosso mandato tem conexão com o movimento antirracista, de mulheres e da cultura”, afirma. Autora da lei que garante absorventes higiênicos para mulheres de baixa renda, agora quer cotas mínimas para artistas LGBTQIA+ nos editais culturais do Estado. E, se ela mesma não chegar à Prefeitura de Salvador, ter de preferência uma negra no Executivo municipal. Confira nesta entrevista também transmitida pela TV Alba (canal aberto 12.2 e 16 na Net).
A senhora já passou por secretarias da Prefeitura de Salvador e do Governo do Estado, foi vereadora da capital por sete anos, exerce seu primeiro mandato como deputada estadual e tem uma forte atuação em defesa do Movimento Negro. Aonde mais Olívia Santana quer chegar?
Prefeita de Salvador, quem sabe? [risos] Eu brinco muito com essa condição, porque, na verdade, a minha trajetória é de vencer desafios. Sou uma pessoa que nasceu numa favela, veio de uma família extremamente pobre. Sou a filha da doméstica que, de repente, despontou na política. Então, eu não costumo mirar os limites, os entraves, os paredões que se erguem no meu caminho. Prefiro mirar nas brechas. E buscar fazer essa abertura na política, principalmente. É uma responsabilidade que tenho com mulheres como eu, negras, de um estado de maioria negra, mas que não têm oportunidade de mostrar sua inteligência, capacidade, talento. Quando me vejo na política não me vejo na primeira pessoa do singular. Eu me vejo como alguém que representa um coletivo que disputa poder, sim, que quer debater esse modelo de sociedade excludente, tirar a política do território que é das pessoas especialíssimas de sobrenomes famosos, que representam famílias tradicionais e ricas. Quero mostrar que é possível a população acreditar e apostar em lideranças políticas que venham de baixo pra cima.
A senhora, inclusive, já saiu candidata a vice e a prefeita de Salvador. É, de fato, então, seu maior projeto político?
Não tenho a fissura de “ah, tenho que ser prefeita de Salvador”. Eu me sentiria absolutamente representada se outra mulher negra, ou se um homem negro do meu campo, do campo democrático e popular, conseguisse se eleger prefeita de uma cidade como Salvador. Uma cidade de maioria negra em que nunca uma mulher negra se elegeu prefeita. Esse é um grande desafio que temos que colocar na pauta. As pessoas precisam desnaturalizar esse absurdo. Porque é uma situação absurda. Uma cidade de maioria negra, e nenhuma pessoa negra está apta a governar Salvador? Então, não é, de fato, um projeto pessoal, mas, sim, uma pauta pela qual lutarei, até que eu possa ver que alguma liderança negra de expressão, democrática e popular consiga ocupar o Palácio Tomé de Souza.
A senhora é autora do projeto de lei já aprovado pela Assembleia Legislativa que garante a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para mulheres de baixa renda. O Governo do Estado, um mês antes da aprovação do seu projeto, já tinha anunciado o programa Dignidade Menstrual. Em que difere o seu projeto do programa do governo?
Não há diferença entre o nosso projeto de lei e a iniciativa do Governo do Estado. Ao contrário, fomos as primeiras a pautar o poder público em relação à necessidade de termos uma lei que democratize o uso do absorvente higiênico. Não pode ser uma questão de classe social. Mulheres de classe média e ricas têm acesso a esse material higiênico. Mulheres que vivem em situação de miséria e de pobreza têm que escolher entre um quilo de feijão e um pacote de absorvente higiênico. Então, a gente instalou esse debate na Assembleia Legislativa e, posteriormente, junto com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, sensibilizada com o debate, abraçamos com um projeto de lei. O que acontece agora é que temos a distribuição de absorventes como uma política pública e não mais como um programa do governo Rui Costa ou de outro governo que chegue.
Outro projeto de sua autoria, mas ainda em discussão na Casa, propõe a adoção de cotas mínimas para artistas LGBTQIA+ nos editais de incentivo cultural e artístico com verbas do estado. Qual a importância desse projeto?
Esse projeto diz respeito ao reconhecimento de um desequilíbrio que é muito grande na distribuição de verbas públicas em relação aos artistas. E o segmento LGBTQIAP+ tem muito mais dificuldade de acessar esses recursos. Então, por que não estabelecer cotas? Cotas são uma política de ação afirmativa. A Bahia é um estado de uma diversidade incrível, um celeiro de talentos. E ao reconhecer que existe um grande preconceito contra a população LGBTQIAP+, é preciso fazer alguma coisa pra mexer com essa realidade, trazer um projeto dessa natureza aqui pra Casa. E eu o fiz levando em conta a escuta do segmento que pediu esse apoio. Nosso mandato tem conexão com o movimento da luta antirracista, movimento de mulheres, movimento cultural de maneira geral. Acredito que mandatos de parlamentares têm a finalidade de ser um instrumento a serviço das necessidades da sociedade, de setores que se organizam e precisam de apoio.
A senhora é presidente da Comissão de Direitos da Mulher. Como tem sido discutir os temas de interesse do colegiado e da sociedade nesse setor?
A Comissão dos Direitos da Mulher trabalha bastante na Casa. Nós conseguimos fazer o Parlamento Feminista, o primeiro do Brasil. Foi aqui na Assembleia Legislativa da Bahia, em 2019. A gente conseguiu trazer mulheres de diversos cantos do país. Foi muito bonita a experiência. Fizemos uma parceria com o Tribunal Regional Eleitoral por mais mulheres na política. Em 2021, em plena pandemia, fizemos 14 reuniões, três audiências públicas. Encerramos o ano discutindo experiências positivas de enfrentamento da violência contra a mulher. Vimos as experiências de São Paulo, de Pernambuco, da Paraíba e trouxemos virtualmente o debate. A gente usou a tecnologia a serviço da comissão. Nós fugimos da ideia de que “olha, tem pandemia, então vamos parar um pouquinho os trabalhos”. Não. Mesmo com a pandemia, se há possibilidade do trabalho virtual, porque não fazer? Tivemos audiência com a cúpula da Polícia Militar pra discutir casos como o de Jucilene, uma menina de 22 anos do subúrbio de Salvador que foi alvejada durante uma operação policial e perdeu o bebê no sétimo mês de gravidez. A comissão continua acompanhando esse caso. Cobramos solução por parte da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública. Fomos uma comissão de mulheres deputadas para a SSP dizer pro secretário que não basta ter uma secretaria de políticas para as mulheres no governo. Que nós queremos que a SSP tenha a sua política de redução da violência contra a mulher, ações em prol da vida e da segurança das mulheres. A comissão conseguiu fazer todas essas ações, arrancar compromissos dessas instituições e, portanto, considero que temos um balanço positivo do desempenho da nossa comissão.
Em relação ao Movimento Negro, quais os maiores desafios além do combate ao racismo?
Eu diria que esse é o maior desafio, o desafio estratégico que é como eliminar o racismo das relações sociais brasileiras. Não quero ser tratada como uma negra. Quero ser tratada como uma pessoa, um ser humano com a liberdade de ir e vir, de ocupar espaços e de não ter que ficar o tempo inteiro tropeçando no racismo que está ali seguindo meus passos ou tentando inviabilizar os passos que também marcaram Milton Santos – e mesmo assim, ele conseguiu ser o gênio que foi. Quando as pessoas não sabiam que ele era Milton Santos, o tratamento era um. Quando descobriam que era o grande geógrafo Milton Santos, o tratamento era outro. A gente não quer isso. A gente quer uma sociedade de igualdade. O Movimento Negro tem uma função civilizatória no Brasil. A função de mostrar que é possível a gente viver de maneira diferente. Dizem que o passaporte brasileiro é o mais cobiçado por quem rouba passaporte, por quem quer se disfarçar, exatamente pela diversidade étnico-racial do povo brasileiro. O Brasil é um país multirracial. E isso tem que ser visto como uma riqueza, como beleza, não como um elemento de garantir privilégios para um e subalternização para outro. Não queremos subalternidades marcadas pelo tom da pele. A gente quer que todo mundo tenha as mesmas oportunidades, que a gente possa viver numa sociedade de iguais. Digo que eu sou militante da luta antirracista e essa é a minha condição permanente com cargo ou sem cargo aqui ou em qualquer outra estrutura de Estado. Porque isso me move enquanto ideário. Sou uma pessoa que tem um ideal porque lutar. Meus heróis não morreram de overdose. Tenho orgulho de todos que se foram carregando uma bandeira, defendendo uma sociedade mais justa. Eu vi a morte de Bel Hooks agora e foi uma coisa que me emociona. Eu nunca vi Bell Hooks, nunca tive a oportunidade de conhecê-la, mas a conheci lendo as obras dela e vendo o quanto que a gente tinha identidade de ideal. Isso é uma coisa extraordinária, porque ela é uma feminista estadunidense, sou uma feminista brasileira, baiana, soteropolitana, estamos em lugares geograficamente diferentes mas lutando por uma mesma causa. Luiza Bairros que se foi também. O Movimento Negro tem isso: une povos em defesa da igualdade.
Qual vai ser o papel da deputada Olívia Santana e do PCdoB nas eleições deste ano?
O PCdoB completa 100 anos este ano, em 25 de março, dia do meu aniversário. Sou uma comunista de nascença. E o PCdoB vai cumprir o seu papel de estar do lado certo da história. O nosso papel é lutar contra esse governo, esse desgoverno que entristece o Brasil, que mata o Brasil, essa coisa estranha que ocupou o Palácio do Planalto que a gente vê com espanto. Paulo Freire disse pra gente nunca perder a capacidade do espanto. E eu nunca me canso de me espantar com o presidente da República que não se importa com as pessoas que estão morrendo vítimas dessa pandemia. Um presidente com um governo que ampliou a fome, conseguiu colocar novamente o Brasil no mapa da fome das Nações Unidas. Um governo que não gosta de mulheres, de negros, que não gosta de indígenas, que infelicita o seu povo. O lugar do PCdoB nas eleições vai ser lutando contra isso. Nós queremos eleger um governo democrático e popular para o Brasil e avançar ainda mais na Bahia, consolidando a experiência que foi iniciada por [Jaques] Wagner, continuada por Rui Costa. Wagner se apresenta novamente como uma alternativa pro Estado e nós, com certeza, como eu disse, estaremos do lado certo da história.
Direto do Legislativo
Transmissão nesta quinta-feira, às 13h pela TV Alba (canal aberto 12.2 e 16 na Net). Reprises: sexta às 16h30, sábado às 20h, segunda às 13h45 e terça às 18h.
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