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ENTREVISTA –PABLO OÑATE

‘Os ditadores de hoje manipulam a democracia para cercear a liberdade’

Presidente da Associação Internacional de Ciência Política alerta, em entrevista ao A TARDE, para os riscos dos líderes populistas

Por Divo Araújo

12/08/2024 - 6:00 h | Atualizada em 12/08/2024 - 16:05
Presidente da Associação Internacional de Ciência Política, o professor espanhol Pablo Oñate
Presidente da Associação Internacional de Ciência Política, o professor espanhol Pablo Oñate -

Ao contrário do que acontecia no passado, os líderes populistas de hoje utilizam o próprio sistema democrático para chegar ao poder e, uma vez lá, enfraquecer a liberdade, o pluralismo, a diversidade, a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. O remédio para isso são instituições fortes, como explica o presidente da Associação Internacional de Ciência Política, o professor espanhol Pablo Oñate, nesta entrevista exclusiva ao A TARDE .

Oñate esteve em Salvador na semana passada, onde falou sobre populismo no mundo globalizado durante o 14º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado no campus de São Lázaro da Ufba. Na entrevista, Oñate discute o papel das plataformas digitais, o crescimento da extrema direita e das ditaduras de esquerda. “A manipulação da democracia é comum a todos os tipos de populismo, de esquerda e de direita”, explica. Confira mais na entrevista a seguir.

Este ano vamos ter mais de 70 eleições no mundo. E o populismo, como o senhor costuma explicar, estará presente na maioria delas. Quais são os riscos atuais do populismo para o mundo?

As consequências dessa nova onda de populismo que vemos no mundo, que chamamos de quarta onda de populismo, são enganosas. Pode parecer que, ao fim, a vontade do povo será escutada. Que, ao fim, você vai integrar as populações marginalizadas. Que, ao fim, você vai acabar com desigualdades sociais. O problema é que rapidamente vamos observar que, em nome dessa emancipação de boa parte da população, esses líderes populistas limitam as liberdades, o pluralismo, os meios de comunicação de massa, a diversidade cultural. Portanto, nos deparamos com tudo que enfraquece as democracias. Nos deparamos com democracias menos garantidas das liberdades. Sabemos que as democracias contemporâneas têm graves problemas. Falo de altíssimas taxas de desigualdades e da apatia política, porque a maior parte da população está farta de seus líderes políticos que não estão incluídos, que não levam em conta a sua opinião. Os sistemas e líderes populistas são, em grande medida, limitadores da liberdade das suas situações.

Os líderes populistas de hoje não se aproximaram dos populistas do passado?

Diferentemente dos ditadores do século 20, em nossos dias temos os 'spin dictators' ('ditadores marqueteiros', tradução numa livre para o português). São ditadores que manipulam a democracia. aparentemente são democratas, mas acabam cerceando a liberdade, o pluralismo, a diversidade, a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. Não tanto reprimindo violentamente a oposição, mas através da manipulação das redes sociais, dos meios de comunicação controlados, impedem que haja uma verdadeira oposição e um verdadeiro pluralismo. Esses novos ditadores, esses novos 'ditadores de spin', utilizam os meios aparentemente democráticos, em muitos benefícios através de eleições livres e abertas, para manipular a democracia. E muito rapidamente pervertem de alguma maneira esse caráter democrático das eleições. E, dessa forma, ampliamos o poder dos governos, dos executivos, dos presidentes frente a legislativos que poderiam controlá-los. Acabando enfraquecendo também a competência do Poder Judiciário, expulsando magistrados das mais altas cortes e ampliando o número para ter maioria e dominar. Enfraquecem também as universidades, fixando-se economicamente quando elas são críticas do poder político. Portanto, enfraquece toda a democracia.

Como o senhor vê o papel das redes sociais e das plataformas digitais no fortalecimento desses discursos populistas?

Poderíamos dizer que a internet tem um caráter democrático. Poderíamos dizer que o Facebook, o Google, o X (ex-Twitter) têm um caráter democrático. O problema é que a canalização do discurso político, através desses meios, é enormemente limitante. Os algoritmos limitam muito a comunicação. Sabemos que a política de comunicação acaba criando círculos fechados, convidados de comunicação. Porque, com essas plataformas e os algoritmos, as pessoas acabam apenas ouvindo coisas parecidas com aquilo que elas já pensam. Não leia notícias alternativas. Não permitem contrastar. Não há um verdadeiro debate aberto de idéias, mas uma reiteração de discursos que, em muitos benefícios, provocam um aumento da polarização e da radicalização do discurso político. Essas plataformas poderiam ter um caráter libertador, proporcionando um fluxo de informações muito mais rápido. Mas, ao mesmo tempo, podem ser extremamente perigosas a partir do momento que limitam muito o verdadeiro debate político. E, em muitas graças, as redes sociais são o espaço por onde se reproduzem os mesmos discursos. Abrem um colóquio, mas são personagens que pensam mais ou menos de forma igual. Assim, há uma reiteração do discurso que elimina o pensamento alternativo. Ele passa a ser simplesmente um pensamento unidimensional, como explicou Herbert Marcuse em sua obra “O Homem unidimensional”. Nos deparamos com uma unidimensionalidade da sociedade que não é muito saudável para a democracia. Por isso, precisamos regular essas plataformas no sentido de que elas têm uma responsabilidade. Não podem alegar que não têm responsabilidade pelas mensagens que transmitem. Precisamos regulá-las para que não publiquemos aquilo que seja desrespeitoso com a liberdade ou que implique em discursos de ódio. Por outro lado, os meios de comunicação tradicionais, a imprensa, poderiam se incluir nesse debate oferecendo alternativas distintas. Mas, em nossos dias, muitos meios de comunicação têm uma orientação política determinada.

A gente assiste hoje em todo o mundo o crescimento da extrema direita. O que explica essas características?

Cada país tem suas especificidades, mas o que observamos é que o aumento do apoio a propostas populistas da direita radical está normalmente vinculado a uma guerra cultural e à transformação de valores das sociedades democraticamente ordenadas. Está vinculado à repulsa as mudanças significativas de valores nos anos 60, 70 e 80. Valores da esquerda progressista, da emancipação da mulher, da liberdade sexual. É uma consequência da ascensão desses valores emancipadores, que se chocam com os valores muito tradicionais e muitas vezes excludentes. Em segundo lugar, esse apoio à direita radical está baseado nas consequências da globalização, que piorou a qualidade de vida de boa parte da população. Eles são conhecidos como os “perdedores da globalização”. Falo de uma parte da população que se sente prejudicada pela liberdade do comércio mundial, pela internacionalização de determinados setores ou pela piora das condições de vida. Esses trabalhadores viram sua hora de trabalho perder valor pela concorrência dos produtos da China ou de outras partes do mundo. Eles de repente se sentiram inseguros e perdidos. Estão num mundo pelo qual não estavam preparados. E por isso se sentem ameaçados e têm medo e votam na direita radical. Esses são os dois motivos mais importantes.

E quais são os riscos desta ascensão da extrema direita?

O risco maior é a negação do estrangeiro, do desconhecido. O populismo em geral volta-se contra a imigração com o argumento de que os estrangeiros estão a roubar os nossos postos de trabalho, os nossos benefícios sociais, limitando as escolhas dos nossos filhos. Pensamos que os outros que vêm de fora são uma ameaça. Na Espanha mesmo, os imigrantes estão entre 11% e 12% da população. A imensa maioria desses imigrantes compra produtos espanhóis, paga, impostos, portanto são pessoas que estão contribuindo necessariamente com a economia nacional espanhola. Não obstante, os partidos da direita radical rechaçam essas pessoas, as qualificam como uma ameaça e as querem excluir do sistema. O populismo tem essa característica. Afirma a suposta posse de uma entidade chamada “povo” - não sabemos o que é isso, não tem contornos claros - e rechaça tudo que é uma ameaça a esse suposto povo. Portanto, rechaça a diversidade e multiculturalidade.

A gente está falando da extrema direita, mas também há o populismo da esquerda, vide o que está acontecendo na Venezuela. O que difere um do outro?

O populismo da extrema direita é mais excludente. É um populismo que pretende ser preciso excluir uma parte da população. Entende que o povo são os nacionais e os estrangeiros são uma ameaça. O populismo de esquerda, o princípio quer fazer crer que defendam os excluídos, os marginalizados, os que não têm oportunidades na vida. O problema é que acaba utilizando os mesmos métodos. Enfraqueça o sistema democrático liberal, o pluralismo e as liberdades. E tira da população a liberdade de decidir politicamente. Não respeita os resultados das eleições democráticas ou as manipuladas anteriormente. Acredito que o problema da Venezuela hoje não é apenas nas enormes dúvidas que restam sobre o resultado das eleições. O resultado anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral aponta a vitória do candidato Nicolás Maduro. Mas isso é um grande problema porque antes da eleição, durante a campanha, já havia grandes restrições à oposição. Não houve uma competição em igualdade de condições entre a oposição e o candidato oficial. Isso é comum a todos os tipos de populismo, de esquerda e de direita.

No caso da Venezuela, como o senhor vê o papel de líderes moderados de esquerda, como o presidente Lula, para garantir o respeito ao sistema democrático?

Acredito que o presidente Lula é muito diferente de líderes de esquerda como Maduro. O presidente Lula é líder de uma esquerda mais tradicional. Uma esquerda dos trabalhadores, reivindicativa de melhores condições laborais e para a maior parte da população. É uma posição muito diferente da posição de líderes como Maduro. Acredito que os líderes e partidos da esquerda tradicional, que respeitam os princípios democráticos, têm uma missão muito importante: forçar esses líderes populistas da esquerda a respeitar os procedimentos democráticos. E, no caso concreto da Venezuela, forçar que o Conselho Nacional Eleitoral apresente as atas de votação, que são elementos fundamentais em quaisquer procedimentos de auditoria democrática. Que se coloquem como atas à disposição dos meios de comunicação tradicionais e dos representantes dos partidos.

No Brasil a gente viu a situação que o senhor descreveu no início da entrevista. O ex-presidente Jair Bolsonaro se elegeu de forma democrática, mas passou a questionar nosso sistema eleitoral. Como o senhor viu a posição das instituições brasileiras nessa questão?

As instituições foram fundamentais, não há dúvida. O que acontece é que os populistas em muitas situações podem vencer as instituições. Por isso que as instituições têm uma importância enorme. As próprias universidades e os acadêmicos são de enorme importância, assim como são os meios de comunicação sérios. Não obstante, as instituições – se os regimes populistas, sejam de direita ou de esquerda, duram demasiado tempo – ficam enfraquecidas. Temos exemplos disso na Venezuela ou na Hungria, com orientações ideológicas muito distintas, mas com dois líderes populistas. Tanto na Venezuela como na Hungria as cortes supremas não são livres para tomar suas próprias decisões. São largamente influenciados por essas correntes populistas que não lhes permitem cumprir corretamente as suas funções de defesa do Estado de direito. Quando as instituições são instituídas há muito tempo, um regime de caráter populista acaba limitado em sua capacidade de resistência frente a esses regimes.

Falamos aqui de eleições em todo o mundo, mas tem uma que é muito importante para todo o planeta que é dos Estados Unidos. Quais são os riscos do retorno de um populista como Donald Trump ao poder?

Sem dúvida, acreditamos que corremos um grande risco, apesar da candidata democrata Kamala Harris ter melhorado suas expectativas de voto. Mas ainda segue muito equilibrado com Trump, por isso acredito que seguimos correndo um grande risco. Tenho de repetir que os segundos mandados de líderes populistas são muito mais perigosos. Acredito que Trump será um líder perigosamente populista desde o primeiro momento. E será muito mais eficaz do que no primeiro mandato no sentido de enfraquecer as instituições democráticas. Esse é um grande perigo que corremos com os segundos mandatos de líderes populistas: eles serão muito mais eficazes no enfraquecimento das instituições democráticas e, portanto, em terminar com as liberdades.

Diante de tudo isso que a gente conversou, o senhor tem uma visão mais otimista ou pessimista do futuro?

Sempre procurei ter uma visão otimista. Se as pessoas pensam em como era a vida há 50 anos, vamos constatar que nossas sociedades são muito melhores. As pessoas vivem mais, sofrem menos. Há mais possibilidade de saúde e bem-estar material. Veja, nós estamos aqui conversando porque o mundo é mais globalizado e as pessoas interconectadas. No entanto, ainda estamos longe de ter um mundo perfeito. Cada sociedade tem seus momentos de perigo. Assim como nossas sociedades têm muitas coisas positivas nesses dias, também enfrentam muitos perigos que precisamos estar atentos. Há 50 anos não havia redes sociais. E, como falei, as redes sociais têm um lado muito positivo, mas têm outro bastante perigoso. Devemos estar conscientes de seus perigos para estar alerta sobre eles e saber como enfrentá-los. Mas, creio, devemos ser otimistas.

Raio-X

Atual presidente da Associação Internacional de Ciência Política, Pablo Oñate é também professor titular de Ciência Política na Universidade de Valência. Ele é autor e editor de vários livros e artigos acadêmicos sobre eleições, políticas de elites, populismo, entre outros temas. Foi também presidente da Confederação Europeia de Associações de Ciência Política (2014 e 2016). Oñate trabalhou para diversas organizações internacionais, participando em vários países da América Central e Latina, Bósnia-Herzegovina e Mianmar, lidando com democratização, reforma institucional e sistemas eleitorais.

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