“Salvador é o paraíso dos brancos”, afirma Sílvio Humberto | A TARDE
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“Salvador é o paraíso dos brancos”, afirma Sílvio Humberto

Publicado quinta-feira, 21 de novembro de 2019 às 06:21 h | Atualizado em 21/11/2019, 07:25 | Autor: Raul Aguilar
"A primeira coisa que o racismo tira é sua humanidade", diz o vereador | Foto: Raul Aguilar | Ag. A TARDE
"A primeira coisa que o racismo tira é sua humanidade", diz o vereador | Foto: Raul Aguilar | Ag. A TARDE -

No dia da Dia da Consciência Negra, o vereador e ativista do Movimento Negro, Sílvio Humberto (PSB), concedeu uma entrevista ao Portal A TARDE e falou sobre o racismo e suas manifestações na socidade. O vereador também tratou de temas como consciência humana, negro na política soteropolitana e o papel de Roger Machado, técnico do Bahia, na luta contra o racismo dentro do futebol. Confira:

O discurso da consciência humana é uma forma ocultar o debate sobre o racismo?

Bem interessante isso, que toda vez que a gente vem com o debate da Consciência Negra, esse discurso tem sido recorrente. De uns quatro a cinco para cá as pessoas vem falando dessa consciência humana. Elas esquecem que a primeira coisa que o racismo tira é sua humanidade; o racismo desumaniza as pessoas. Se você quer ter consciência humana, você precisa reconhecer a humanidade das pessoas negras, das pessoas indígenas, aquelas que são os principais alvos do racismo. Eu vi um post na internet que eu gostei muito. Ele diz assim: antes de discutir consciência humana, você precisa enfrentar o racismo e suas manifestações. Depois de enfrentarmos o racismo e devolver a humanidade aos povos não brancos, no máximo nós vamos precisar falar de consciência, porque já teremos nos tornado humanos. Enquanto esse dia não chegar, nós vamos continuar falando de consciência, de pertencimento étnico racial, porque o problema não é esse. O problema é como você transforma as diferenças em desigualdade, esse é a raiz do problema. Quando você fala de consciência humana, você não ataca esse problema; você não diz absolutamente nada. Isso não torna a humanidade menos desumana. E quando nós falamos da Consciência Negra, do resgate do pertencimento étnico-racial, é porque foi isso que nos foi tirado, é isso que nos foi tomado. Provocando em nossos dias, entre outras coisas, o adoecimento da humanidade, das pessoas negras e principalmente da juventude negra. Hoje eu vi um relato de um jovem que perdeu um amigo que se suicidou pelo fato de ser negro. O racismo para humanidade é uma perda de energia, impede que as pessoas sejam plenas, que as pessoas sejam simplesmente pessoas; e é isso que nós queremos. Enquanto esse dia não chega, nós vamos continuar falando de Zumbi dos Palmares, de Dandara e dos anônimos e anônimas que fizeram essa história. Esse país tem mais tempo dentro da escravidão do que fora dela. Como dizia um trecho da obra de Salazier que Bob Marley imortalizou: “haverá guerra, haverá luta até que a cor da pele faça a mesma diferença que a cor dos olhos”. Qual é a diferença que faz alguém ter um olho da cor azul, castanho ou escuro? Não faz diferença nenhuma, o importante é que você enxergue bem.

Salvador, a cidade mais negra fora da África, nunca teve um prefeito negro eleito pelo voto, por que isso ocorre?

O que poderia ser natural, por que se é uma maioria, 83 a 85%, e seria uma importante alternância de poder. Mas o fato de você viver sobre um mito de uma democracia racial que diz que a cor não conta. Você ouve isso em alguns discurso. E ouvimos isso quando Olívia lançou a candidatura “Eu Quero Ela”, que provocou essas respostas prontas. Respostas que mostram o quanto o racismo estrutura as relações de poder e as relações sociais. Isso acontece porque o racismo transforma uma maioria em uma minoria política. Transforma uma minoria étnico-racial dessa cidade em uma maioria, porque acaba ocupando os melhores espaços. O final da escravidão não significou o fim das hierarquias raciais e, por conseguinte, o fim das hierarquias sociais. Você tem uma reprodução do que havia antes. Nesses 131 anos, as coisas mudaram, mas muitas coisas mudaram para tudo permanecer como está. Quando você joga essa massa negra na pobreza, onde faltam as coisas, onde as pessoas não conseguem garantir o seu meio de vida. Eu vim da caminhada da Consciência Negra agora há pouco e observei que tinha muita gente vendendo refrigerante, água, cerveja, vendendo tudo. Havia uma caminhada também dos isopores. E sabe quem estava ali? O povo negro. Agora temos uma coisa fantástica. Ao mesmo tempo em que nós vendemos, nós nos divertimos, e isso é uma característica nossa. Estava ali falando de Zumbi, das músicas do Ilê Aiyê, do Muzenza. do Malê Debalê, dos Negões, do Cortejo Afro, dessas entidades. Falando das nossas dores, das nossas alegrias e o nosso povo fazendo o dinheiro circular entre nós. Mas isso também é o retrato de uma cidade extremamente desigual. E a desigualdade dessa cidade tem um nome, chama-se racismo. E uma de suas manifestações é o privilégio gerado por uma branquitude. Salvador é uma Roma Negra, capital da negritude, mas Salvador é o paraíso dos brancos. Porque a branquitude conta muito mais aqui em Salvador do que em São Paulo. Porque quando você vai para os números, para os dados econômicos sobre isso, a distância entre os 10% mais ricos, quando comparados com os 40% mais pobres, é uma distância de 34 vezes. O problema é que os 10% mais ricos de Salvador têm uma renda comparada aos 10% mais ricos de São Paulo. Cidade que é o carro chefe da economia brasileira. O Produto Interno Bruto (PIB), que é o que se produz na cidade em termo de bens e serviço, de Salvador é apenas 10% da cidade de São Paulo. Você tem somente 10% do que produz, mas a renda é semelhante. E isso tem haver com quê? Com o fato dessa massa negra não chegar, não ter as mesmas oportunidades que os brancos. Às vezes você tem até o acesso à educação, mas não têm aos bons postos de trabalho, porque é uma sociedade patrimonialista, que se mistura ao racismo e que andam de mãos dadas. O mérito não funciona nessa cidade. Quantos foram barrados pela chamada “boa aparência”, pela chamada não “preenche o perfil”. E isso não tem nada haver com o mérito, que fica de fora. Se fosse livre a entrada no mercado de trabalho, eles estariam dentro. Se o problema na cidade de Salvador fosse só a pobreza, nós estaríamos falando de outra coisa, essa cidade estaria em um outro patamar, essa cidade não teria esse mar de desigualdade que nós temos.

O mal estar gerado na última quinta-feira (14), durante o congresso do PT, em que só havia pessoas brancas na mesa, costuma acontecer com certa frequência, ainda não existe uma ideia muito sólida na importância da pluralidade racial e de gênero nos espaços de poder?

É uma disputa de poder. E às vezes na disputa de poder vale tudo e você tem que testar o outro. Até que ponto você fala de combate às desigualdades sociais, que seu discurso é anti racista? Às vezes o discurso é anti racista, mas a prática não é. Na disputa pelo poder as pessoas acham que vale tudo e que todo mundo é igual. Porque no fundo as pessoas estão convencidas de que a cor não conta e que vivemos o mito da democracia racial. Atos como o “Eu Quero Ela” - slogan de campanha da deputada Olívia Santana à Prefeitura de Salvador - tem um importante efeito sobre isso. Por que atos como esse obriga os partidos a repensarem suas práticas e suas estruturas. Há pouco tempo atrás isso seria considerado normal. Hoje as pessoas não aceitam mais. Não aceitam não só não ter mistura de cor, como não ter mistura de gênero. Se existe um lugar onde só tem homem branco você tem um problema. Esse racismo e sexismo institucional impede a chegada das mulheres e das pessoas indígenas. Como é que você vai fazer um discurso da pluralidade quando você faz uma prática da Casa Grande? Isso é um avanço que a gente conseguiu, e Isso é importante, sabe por que? Por que quando o Temer montou o seu ministério, as lideranças de esquerda, de A a Z, e até os “capas”, como chamamos os mais famosos, fizeram um discurso questionando, dizendo que o ministério só tinha a elite branca. Antes eles falavam só de elite; isso é uma vitória do movimento negro, que racializar o debate para poder desracialzializá-lo. O processo foi, que antes ele estava racializado, mas tiraram isso do espaço público e jogaram no espaço doméstico, transformando essa questão de ocupar o espaço público, como um problema comportamental. O racismo também é um problema comportamental, mas ele também é institucional e estruturante. Se ele estrutura a vida social, ele está presente também nos partidos. Porque antes as nossas questões estavam em uma nota de rodapé; eles eram solidários a elas. Mas agora nós estamos dizendo que tem presidente de partido preto, como Adelmário no PT de Salvador eu no PSB, tínhamos Gilmar Santiago, Olívia Santana também já foi. Então, isso demonstra que estamos lidando com um fenômeno complexo, que só com o enfrentamento poderemos resolver; não será no conforto que resolveremos isso. Nós iremos criar muito desconforto. Vamos criar esse desconforto para que as pessoas repensem suas práticas para podermos dar o salto civilizatório que merecemos.

Candidaturas negras não têm obtido sucesso nas eleições para o executivo e legislativo, quais os motivos para isso?

Tem uma coisa curiosa. Somos chamados, e isso de A a Z, como eu vi no estudo da professora e socióloga Vanessa Cunha que, na tese dela, afirma que, na hora de chamar para “encher o saco”, digo isso no sentido de conseguir votos, aparece muitas candidaturas negras, muitas pessoas negras se candidatando, principalmente para vereador. Vereador que é uma eleição extremamente difícil, de extrema competitividade. Por que às vezes o cidadão não conhece o candidato a deputado federal, mas conhece o vereador, quando não é de sua família, um primo de um primo e etc. Todo mundo conhece um, em cada esquina é capaz de sair um. Quando precisa, e essa eleição parece que vai ser pior, já que não terá coligação partidária, os partidos terão que fazer o que chamamos de sua nominata, que é um nome bonito para falar da ‘rabada’, que é pegar o número máximo de pessoas para se candidatar. E as pessoas negras são convidadas para esse baile, mas na hora da valsa principal, elas assistem aos outros. Mas, você precisa dessas pessoas, por que ninguém é eleito sem o voto negro. Mas eu preciso dizer que esse voto não tem cor, mas esse voto tem cor. E as pessoas que são eleitas também sabem disso. O que acontece hoje. Você tem uma desproporcionalidade entre o nome de pessoas brancas e pessoas negras que se candidatam e são eleitos, levando em conta que a maioria dos eleitores são negros. Essas pessoas brancas que ocupam os espaços de poder dos partidos, são quem controlam os partidos, e são esses que criam o mecanismo para serem eleitos ou elegerem os seus. Então isso é algo que a gente tem que entender como funciona. O racismo não está fora dos partidos, ele está ali, institucionalmente. Então, você é chamado para uma festa onde não escolhe a música, com quem vai dançar; você só sabe que no final você dança.

O deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP) quebrou, na última terça-feira (19), um quadro em exposição na Câmara, onde aparecia um jovem negro sendo morto por um policial branco. Ele disse em justificativa para o ato que a obra era “desnecessária” e alegou representar os policiais. O Partido dos Trabalhadores entrou com uma representação no Conselho de ética contra o deputado, mas, muitas vezes, atos como esse acabam sem punição. Como lidar com essa situação?

Eu tenho pensado muito sobre isso. Ao mesmo que não dá em nada, e eu cito um trecho da música de Chico Buarque que fala: pode ser a gota d'água. Olha o exemplo do Chile. A passagem subiu uma fração de centavos e aconteceu uma hecatombe, foi a gota d'água. Nós temos alertados para essa panela que está inchando. As pessoas estão denunciando e outro lado achando que pode fazer tudo. Os conservadores raciais, racistas que saíram do armário estão achando que podem fazer tudo e que não tem limite. Ele disse: “Eu represento a voz de 600 mil policiais”. Ele acha que representa, existem muitos policiais que não concordam com isso. Eles (Racistas) são eleitos pela via democrática e sempre que tem chance, querem solapar a democracia. Isso é típico de quem é racista e fascista. Temos o caso recente da menina Ághata, uma criança negra morta por um tiro de um policial, como acaba de se comprovar. Se ele (policial) fosse na Zona Sul, ele iria entrar assim? Existe policiais que não concordam com essa postura, que sabem que um dia uma bala dessa pode atingir o filho dele. O que nós temos que fazer é insistir para defender as instituições, cobrar da Câmara uma postura, o presidente da Câmara precisa se posicionar, ele tem que ir para o conselho de ética e ser punido. Aquilo é mais do que censura, é um ato racista que tem que ser levado ao Ministério Público Federal, para ele ser acionado na justiça. Temos que criar problemas para ele, problemas institucionais e depois utilizar isso para ele não voltar para lá. Para dizer aos eleitores que eles estão diante de um racista e fascista, que quer resolver os problemas na força. Quem não admite os contrários e às críticas devem arranjar um outro planeta, porque no planeta chamado democracia, essa é a regra.

Você havia dito que iria propor uma medalha para Roger Machado, mas quem acabou fazendo foi o presidente da Câmara, Geraldo Júnior (SD), o que aconteceu? Foi a sua fala contra o racismo após o confronto do Bahia com o Fluminense que motivou essas honrarias?

Tínhamos pensado nisso, mas, na tramitação da Câmara tivemos um problema e não conseguimos ir até o final; e coube ao presidente da Casa, Geraldo Júnior (SD), propor o título de Cidadão Soteropolitano e a Medalha Zumbi dos Palmares. O ato de Roger foi histórico. Dizem que a atitude é uma pequena coisa que faz uma enorme diferença. E assim, ele fez de fato a diferença. Foi para além das quatros linhas, saiu da postura do tradicional treinador que só fala de futebol, ele fez um golaço contra o racismo! Isso é uma forma de homenageá lo, e fiquei muito feliz. Eu, que sou do Instituto Steve Biko, fiquei muito feliz essa semana, ao saber que ele manifestou o interesse de ir conhecer o nosso espaço. Para mim isso é uma coisa fantástica, pois queremos juntar essas pessoas, isso foi um encontro de vontades. É incrível o poder que as coisas tem quando precisam acontecer. É um reconhecimento justíssimo. Não é uma atitude só dele, ele está ali representando milhões. Eu vi a entrevista, ele foi preciso. Eu uso a mitologia de Oxóssi para definir o seu ato. Oxóssi na mitologia era um caçador que tinha apenas uma flecha para acertar um animal e levar alimento para sua aldeia. E ele acertou essa flecha no animal, como Roger acertou uma flecha no racismo. Esse foi um golaço contra o racismo e outras formas de iniquidades que acontecem na sociedade e no esporte. Basta ver os casos que aconteceram com os jogadores brasileiro; o Tyson, em um caso recente. Tysom, ao sofrer o racismo, cerrou os punhos em uma alusão aos blacks power. E foi marcante, nós temos que se reagir. Infelizmente tem coisas que vão continuar acontecendo, pois as pessoas negras e indígenas estão fora de ordem. Quando nós dizemos que nosso lugar é onde quisermos ir, nós desafiamos os locais que eram pré-estabelecidos. É uma espécie de sofá, que eles antes sentaram sozinho e agora nós dizemos que queremos sentar também, para que todos fiquem confortáveis. O privilégio só ocorre quando avança nos direitos dos outros. Então, assim, o que o Roger fez é digno de parabéns. A felicidade do negro é uma felicidade guerreira. É pensar que não há saídas individuais, que nossas saídas são coletivas; e nesse sentido, ele foi além para as quatro linhas, servindo de exemplo para outros treinadores. Infelizmente, no Brasil, temos 20 times na Série A e quantos desses são constituídos por jogadores negros que, ao encerrarem suas carreiras não conseguirão virar treinadores e às vezes nem comentaristas. Por causa da hierarquia do racismo, que diz que primeiro é o homem branco, depois a mulher branca, para vir o homem negro e ao final a mulher negra. No futebol, existem poucas mulheres negras comentaristas, brancas e loiras você ainda encontra, apesar de serem minoria. Os homens negros também são exceção. Existe o Grafite, que é um ex-jogador que hoje é comentarista, mas são poucos. Roger teve coragem de usar um espaço privilegiado para dizer que não está fazendo por ele, mas por aqueles que já foram e não tiveram oportunidades, e, para aqueles que estão hoje e pelos que virão, parabéns ao roger e saudações quilombolas para você.

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