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POLÍTICA

Silvio Almeida: “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”

Um dos principais pensadores brasileiros da atualidade conversa com o A TARDE sobre racismo e democracia

Por Osvaldo Lyra

21/11/2022 - 6:00 h | Atualizada em 21/11/2022 - 8:56
“O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil”
“O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil” -

O professor Silvio Almeida é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo e advogado tributarista, ele estuda as relações raciais no pais e é enfático ao afirmar que “o racismo é uma questão estrutural, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro”.

Integrante da equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ele diz, nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, que o “bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo”. “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”, disse o filósofo, ao enfatizar que “a vitória de Lula abre espaço para a recomposição da democracia”.

Questionado sobre como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual, Silvio Almeida diz que a “segurança tem que ser repensada sob o prisma da igualdade racial”. “Política de segurança pública é política de direitos humanos”.

Confira:

Vivemos em uma sociedade ainda muito preconceituosa, onde a capacidade das pessoas muitas vezes é medida pela cor da pele. No entanto, a gente está no mês da consciência negra. É importante pensar em ações afirmativas, ainda mais falando para a Bahia, falando para Salvador, que é a cidade mais negra fora da África?

Eu acho que o mês da consciência negra tem papel crucial para que nós possamos mergulhar na compreensão da condição negra não só no Brasil, mas no mundo. Porque a condição negra daqui também se conecta fortemente com o ser negro no mundo. E mais do que isso, as circunstâncias em que o mundo se encontra expande a importância do mês da consciência negra e a própria ideia de consciência negra. Eu digo isso porque nós estamos vivendo um contexto de crise. Quando a gente fala de crise, nós estamos falando, portanto, de um contexto em que a grande baliza civilizatória, as grandes crenças... Eu não falo de religião, eu falo das nossas crenças das instituições políticas, da regularidade da vida econômica, das nossas balizas éticas. Tudo isso está em xeque agora diante de um desarranjo que vai levando as pessoas ao desamparo, ao desespero. As condições precárias, as condições de vida, de existência rebaixadas que o racismo renegou aos negros do mundo passam a servir de parâmetro para a destruição de outras vidas que não apenas vidas negras. Isso é importante. Então, o mês da consciência negra é uma reflexão sobre a condição negra no mundo, mas é uma reflexão, e quando eu falo de reflexão não é só um olhar passivo, mas também a formulação de estratégias políticas para que nós possamos, ao pensar na condição negra, pensar também na superação dos grandes problemas da humanidade. Por isso que esse mês da consciência negra, principalmente no contexto brasileiro, em que nós estamos no período de transformação, de mudanças, uma nova fase do Brasil, é também o chamado para que nós pensemos a condição negra como condição existencial, e nesse sentido, pensar também os rumos da humanidade e do Brasil. E não é só pensar sobre as ações afirmativas. Mas pensar também em como o racismo cria um déficit naquilo que nós chamamos de humanidade. Como ele inviabiliza a criação de uma humanidade que seja projetada em direção ao futuro.

Em seu livro “Por uma outra globalização”, o professor Milton Santos reflete sobre a globalização com fábula, com perversidade, a globalização como possibilidade, nos convidando justamente a uma nova construção global. É chegada a hora de acabarem as barreiras que impedem a igualdade entre os povos, com mais oportunidade e acesso a todos?

Sim. O professor Milton Santos, que é uma grande referência intelectual, há muitos anos enxergou isso que a gente falava. Ou seja, quando ele anunciou a necessidade de se pensar numa nova globalização, ele estava justamente falando sobre pensar uma nova forma de relações econômicas e sociais a partir desse modelo existente hoje. ]

Eu estou falando do quê? Eu estou falando que o professor Milton Santos está nos convidando a pensar como vai ser fundamental que nós mudemos a forma com que nós reproduzimos a nossa economia, além da maneira com que nós organizamos nossas instituições políticas e como elas são baseadas na violência, na repressão, na discriminação. Isso em nome de um determinado modo de organização da economia.

Ele está nos convidando, portanto, a redesenhar, a reconfigurar a nossa forma de relação uns com os outros e a nossa forma de relação com o planeta. Ele está olhando para o regional, para o local, mas ele entende que tanto o regional como o local são resultado de uma interação com o global. Genial.

A gente vive um tempo de retrocessos, nas mais variadas áreas, ao longo dos últimos anos do governo Bolsonaro. Qual o impacto desses acontecimentos nas discussões raciais do país, em especial nos partidos progressistas e nas instituições democráticas de direito?

Bolsonaro é um sintoma. É importante dizer isso. O bolsonarismo é um sintoma de um país que tem problemas estruturais muito graves, que carrega consigo pendências que não se resolveram ao longo da história, que se juntam mais uma vez em um contexto global de crise que vai certamente levando à ascensão de fascismos e de versões mais diferentes da extrema direita. E a nossa versão da extrema direita, a nossa versão do fascismo damos o nome de bolsonarismo.

Ou seja, é a soma das nossas deficiências estruturais, da decadência das nossas instituições políticas, e também de uma soma de sentimento de precarização da vida. O Brasil é um país que não consegue vencer a dependência econômica, o que se reflete na desigualdade profunda, reflete na precarização do trabalho, reflete nessa tentativa frequente de captura do orçamento público por parte de grupos específicos, grupos privados, empresários. E isso reflete também na violência social. Isso é a dependência econômica.

O segundo problema é a nossa aversão à participação popular nos processos políticos, ou seja, uma aversão à democracia, o autoritarismo. Nós não conseguimos criar espaços públicos de resolução de processos, formas de participação popular efetiva. ]

Então, vejam como o bolsonarismo se alimenta muito disso. E, por fim, a questão fundamental que é sua pergunta: o racismo. O racismo é uma questão estrutural no Brasil, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, organiza a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro.

Então, não tenha dúvida. O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil, ao racismo escancarado, e eu vou ser mais direto ainda. Eu acho que o bolsonarismo traz para o Brasil de maneira aberta, de uma maneira mais forte algo que é tipicamente dos países como os Estados Unidos, países da Europa e África do Sul.

Ou seja, o que você tem com o bolsonarismo é o flerte com a extrema direita racista nazifascista internacional e uma construção de um pensamento de supremacia branca no Brasil. O detalhe é que eles não estavam bem delineados na realidade brasileira. Nós estamos falando de supremacismo branco, e uma espécie de demonstração escancarada de que se pensa os negros, indígenas a partir de um prisma de inferioridade.

Então, eu acho que está tudo ligado. A dependência econômica, a aversão à democracia, o autoritarismo, o racismo são problemas estruturais no Brasil que se aprofundam no momento de crise e que o bolsonarismo é o veículo fundamental disso. Uma coisa que eu acho que é nossa tarefa nos próximos anos é, tal como os alemães tiveram a tarefa de desnazificar a Alemanha, nós vamos ter que desbolsonarizar o Brasil.

Qual o papel do poder público no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no Brasil e como o senhor viu a vitória do presidente Lula para o combate a intolerância e ao próprio racismo estrutural do país?

O poder público tem papel fundamental. Mais uma vez, nós temos que aprender a trabalhar com as contradições e até com os paradoxos. O racismo só consegue se reproduzir se houver a participação das estruturas políticas estatais.

Ou seja, na criação de um imaginário permanente de racismo, de inferioridade dos negros e indígenas no Brasil... É fundamental que haja uma ação estatal em torno disto. As desigualdades que se refletem na vida das pessoas negras no Brasil são também parte de uma ação ou de uma omissão estatal, porque no fim das contas o estado age também se omitindo. E nesse sentido o estado é fundamental, é um território em permanente disputa. E, portanto, é fundamental uma ação estatal no combate ao racismo. Isso tem efeitos mais perversos, que é o extermínio da juventude negra que ocorre no país, nas periferias, nas favelas.

Então, se o estado é capaz de provocar isso, esse mesmo estado em disputa e nas suas contradições, ele tem papel fundamental também para barrar isso. Então, a vitória do presidente Lula é, de fato, uma abertura de caminhos e acho que se abre também a possibilidade de uma disputa por esse território, um estado que a sociedade brasileira tanto clama... Abre-se, com o presidente Lula, a possibilidade de organizarmos programas de redução da desigualdade, abre-se a possibilidade de disputarmos sim programas de proteção à juventude negra.

Ou seja, o presidente Lula nos coloca da melhor maneira possível em uma encruzilhada. O que quer dizer isso? Ele nos coloca, portanto, diante de caminhos e possibilidade, o que é uma coisa boa. Porque até então nós estávamos sem esse caminho, sem essa possibilidade. Então, agora nós precisamos escolher os melhores caminhos, disputar os melhores caminhos nessa encruzilhada que a vitória do presidente Lula nos colocou. Portanto, acho que a perspectiva em torno de um efetivo combate à desigualdade racial no Brasil agora se faz no campo da disputa institucional, o que é muito importante para nós.

O senhor é uma das grandes vozes antirracistas do país e tem boas chances, inclusive, de se tornar ministro do presidente Lula, caso a pasta da Justiça seja desmembrada da Segurança Pública e pode também lá na frente ser indicado para uma vaga no Supremo. Como estão essas articulações?

São especulações. Nada foi conversado a respeito disso. Isso é uma decisão que cabe única e exclusivamente ao presidente Lula, que pelo que eu saiba ainda não tomou nenhum tipo de decisão. O que eu posso dizer pessoalmente é que eu estou na equipe de transição para ajudar o Brasil da melhor maneira possível. E a equipe de transição serve para fazer um diagnóstico sobre o estado de coisas que se encontram no Brasil, depois da devastação que foi o governo Bolsonaro nos últimos 4 anos.

Então, o que nós vamos fazer, junto com os companheiros e companheiras da equipe de transição, é entregar ao presidente Lula esse diagnóstico, colocando todos os nossos melhores esforços para que ele possa tomar as decisões que lhe cabem e que são resultado do mandato que o povo brasileiro deu a ele.

Em relação a mim, nada posso dizer, nada foi decidido, nada foi resolvido. Não há nenhuma articulação nesse sentido e, mais uma vez, essas decisões são tomadas única e exclusivamente pelo presidente Lula e a sua equipe e estou à disposição para servir ao Brasil agora na equipe de transição na área de direitos humanos.

Como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual do Brasil, além dos problemas estruturais, sistêmicos, históricos e sociais das causas da violência que sempre acaba penalizando jovens, negros e a população menos favorecida?

Não existe política de segurança pública que não passe por uma redistribuição do que nós entendemos por segurança. Segurança de quê? Segurança para quem? Nós pensamos segurança no Brasil como segurança para o patrimônio e segurança para as instituições e para o estado. O que nós temos que pensar agora é segurança para as pessoas. Segurança para os negros, para os indígenas.

Então, veja, o estado brasileiro historicamente tem sido veículo de desorganização da vida comunitária. O estado tem entrado nas comunidades, desorganizado a vida das pessoas em nome da segurança. Segurança dos mais ricos, dos brancos, dos moradores dos centros urbanos e das localidades mais ricas e mais abastadas da sociedade.

O que nós precisamos fazer a partir de agora é redefinir a ideia de segurança para pensar a segurança como um veículo, primeiro, de organização comunitária. Segundo, a segurança tem que ser pensada a partir de um prisma necessariamente antirracista.

Não existe a possibilidade de pensar segurança se não pensar também como a gente consegue colocar na agenda da chamada segurança pública políticas antirracistas. Eu quero dizer que o racismo é um fator de insegurança social, um fator de conflito.

Então, toda política de segurança pública que não pense na questão racial está simplesmente realimentando os instrumentos de violência e fazendo com que o estado, mais uma vez, desorganize a vida comunitária e coloque as pessoas dentro de um prisma de insegurança. Então, a gente tem que rever isso. Rever a nossa noção de segurança e, a partir daí, criar os instrumentos sociais para proteger a vida das pessoas mais pobres, para proteger a vida dos negros. E parece uma coisa muito comum, parece uma coisa trivial, mas não é trivial.

Porque, veja, o aparato de segurança não é utilizado para que as pessoas negras, as populações mais fortes sejam protegidas. Então, como é que a gente consegue criar formas, sistemas de proteção? Outra coisa que eu acho fundamental: no Brasil, precisamos ressignificar a relação entre segurança e território.

Nós precisamos estender aos territórios das favelas, das periferias, dos lugares mais pobres, mais afastados, precisamos estender também essa possibilidade de que as pessoas sejam respeitadas. Eu estou dizendo isso porque eu considero, por exemplo, que uma política de direitos humanos no Brasil não pode ser só uma política que levante bandeiras éticas e diga o seguinte: olha, nós respeitamos os direitos humanos. Não é isso. Nós precisamos, portanto, fazer da política de direitos humanos, que é uma política de segurança pública, tem que estar conectado.

Política de segurança pública é política de direitos humanos. Nós precisamos, portanto, fazer com que isso seja difundido também ideologicamente. Então, é uma disputa ideológica. No sentido de dizer que a forma correta de se pensar segurança é pensar a partir de uma política que respeita os direitos humanos. E quem não entender isso, eu falo inclusive das autoridades, tem que ser responsabilizado. Falar de direitos humanos não quer dizer que não tenhamos que usar a força do estado, que nós não tenhamos que ser mais duros. Mas essa dureza, essa força tem que ser usada para proteger as pessoas de populações mais vulneráveis.

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