POLÍTICA
“Um licenciamento que duraria 6 meses no município vai durar até 5 anos pelo Ibama”
Por Osvaldo Lyra

O ministro do STF, Ricardo Lewandowski, derrubou trechos de uma lei de 2015 que permitia licenciamentos ambientais de empreendimentos na faixa terrestre e marítima da zona costeira da Bahia. Segundo o advogado e professor de Direito Ambiental, Georges Humbert, a decisão liminar, que suspende os licenciamentos ambientais na costa do estado, cria uma insegurança jurídica que, na visão dele, é desnecessária e danosa para o meio ambiente e para a economia local. “Um licenciamento que duraria 6 meses no município (para ser liberado) vai durar até 5 anos (para ser concedido) pelo Ibama”, disse o professor, ao enfatizar que “essa instabilidade preocupa e afasta investimentos”. Confira:
O ministro Ricardo Lewandowski derrubou trechos de uma lei de 2015 que permitia licenciamentos ambientais de empreendimentos na faixa terrestre e marítima da zona costeira da Bahia. Como avalia essa medida?
Eu diria que essa é uma decisão preocupante, porque ela foi originária de uma manifestação do procurador-geral da República de desarquivamento de um inquérito que perdurou por três anos avaliando a constitucionalidade dessa lei e cujos assessores da PGR, uma subprocuradoria-geral da República, apontaram, ao meu ver corretamente, que não havia qualquer inconstitucionalidade a ser questionada. E inusitadamente, 13 dias depois do arquivamento esse inquérito foi desarquivado e proposta a ação. Uma ação que versa sobre uma legislação que está há seis anos válida na Bahia, que já produziu vários efeitos, já gerou diversas expectativas em negócios jurídicos, em novos investimentos e pode causar, inclusive, um caos na gestão ambiental, porque foi tudo derivado de uma concertação que vem desde 2011 com a lei complementar 140. Então, num primeiro momento, ainda que se verifique essa suposta inconstitucionalidade, eu não acho que seja o momento de dar uma liminar, porque não tem urgência. Até um leigo percebe isso. A lei está valendo desde 2015, porque agora em 2021 suspenderam ela sem ouvir sequer as partes interessadas? Então me preocupa muito, gera uma instabilidade, gera uma insegurança jurídica, pode levar muita coisa à clandestinidade, porque os municípios licenciando eles têm mais capilaridade, mais presença, principalmente com as atividades de baixo impacto. Estou muito preocupado mesmo.
A Procuradoria Geral da República questiona um trecho que autoriza a supressão de vegetação nativa na área urbana pelos municípios. Há excessos nessa operação?
Veja bem, esse é um ponto bastante técnico, complexo. Isso merece, portanto, uma análise de uma manifestação sobre o tema do próprio Ibama, que é o órgão ambiental nacional competente; do Inema, que é o órgão estadual; talvez da associação de municípios do estado da Bahia... Mas o que eu posso te dizer, a priori, é que na minha leitura da legislação supostamente em conflito da Mata Atlântica com essa lei estadual que delegou aos municípios a possibilidade de exercer o controle, monitoramento e autorização de supressão das áreas de Mata Atlântica, a lei nada mais fez do que definir dentro do âmbito das suas competências a descentralização para fins de licenciamento na forma prevista por uma outra norma, que é específica sobre a matéria de procedimentos e é hierarquicamente superior à própria lei da Mata Atlântica, que é a lei complementar 140. Então o estado da Bahia, pelo contrário, ao invés de promover uma insegurança jurídica, ele foi para além do que a lei complementar 140 já autoriza. A lei complementar já autoriza no artigo 9º, inciso XIV A, que por resolução isso seja feito, essa delegação. E o estado fez por lei, que é mais forte do que resolução. Então é um estado que se preocupou em conferir estabilidade jurídica dos sistemas ambientais para evitar justamente o que está acontecendo agora: a incerteza. E o fez nos termos da Constituição, do artigo 23, que trata da competência concorrente de todos os entes da Federação e do dever de proteger o meio ambiente; fez, na forma do artigo 30, que dá essa autonomia aos municípios; e no artigo 182 da Constituição que diz que quando a atividade for de impacto local é o município que tem que licenciar. Vou dar um exemplo para deixar mais claro. Imagine a União lá de Brasília, o Ibama, preocupado com grandes impactos nacionais, como determina o artigo 7º da lei complementar 140, então, portos, rodovias, ferrovias, energia nuclear, terras indígenas, Amazônia, esses grandes temas, é a União que vai licenciar isso. E aqui no estado da Bahia, num município remoto do interior, Prado, Nova Viçosa, que está precisando de turismo e novos empreendimentos, e vindo licenciar uma pousada, porque ali tem Mata Atlântica e zona costeira. Qual a lógica disso? Parar o Ibama que está tratando de terra indígena, até mesmo o estado que trata de questões mais regionais, metropolitanas, enfim, pra que esses vão lá em Nova Viçosa para licenciar uma simples pousada? Então é isso que essa decisão está criando. Além de ferir e malversar a própria Constituição, o próprio bom senso e a lógica jurídica que também norteiam as atividades do poder judiciário pela própria lei de introdução ao direito brasileiro de que as decisões tem que avaliar impactos.
A PGR diz que só o Ibama pode conceder o licenciamento ambiental na zona costeira. Isso pode inviabilizar totalmente o processo de licenciamento que também é feito pelos estados e municípios, já que o Ibama não tem braço para isso?
Exatamente. Além de ter essa consequência prática, porque o Ibama nunca fez isso na história, quando fez, fez atrasado, quando ele tinha essa competência que foi modificada, que foi regularizada, melhor gerida a partir da lei complementar 140 sem trazer uma zona de incerteza. Porque o Ibama nunca conseguia chegar lá. Então o que acontecia? Ou a clandestinidade, ou você recorria ao estado e ao município, mas não tinha a certeza jurídica. Aí veio a lei complementar 140 e disse: não, o estado e o município devem fazer isso, inclusive. Porque os três entes podem exercer competência em matéria ambiental. Isso é a lógica do pacto federativo. Ficando para o Ibama as questões de interesse nacional, ou seja, que ultrapassam fronteiras, território internacional, no mar territorial, na plataforma continental, a parte regional, mais de um município, empreendimentos maiores. E ao município o que for de interesse local, com uma condição: quando tiver estruturado o sistema municipal de meio ambiente. Ou seja, não é qualquer município que licencia, não há risco para o meio ambiente, porque ele só vai poder licenciar se ele estiver capacitado. E aí vem um outro ponto polêmico que eu queria levantar que é: o que fazer com esses municípios que se prepararam, se capacitaram, contrataram servidores para exercer essa competência? E agora? Demite todo mundo? Não pode. E os empreendimentos que estão em licenciamento, paralisam-se? Enfim, é um colapso iminente.
A decisão coloca em risco uma série de negócios que estão sendo feitos e que estão sendo planejados aqui para a parte litorânea da Bahia. O que fazer para evitar esse caos, já que a legislação estava em vigor desde 2015?
Na verdade, a nossa esperança é que após ouvir todas as partes interessadas, o próprio PGR, Augusto Aras, que é um baiano, inclusive, um jurista respeitado e reconhecido, e o ministro Lewandowski, relator da matéria no STF, possam reconsiderar essa decisão, talvez porque não tinham vislumbrado ainda essas consequências imediatas e imprevisíveis dessa decisão. De todo modo, espera-se também que o plenário não referende essa liminar, ouvidas as partes, e ao longo do mérito, aí sim, depois de um amplo debate público, audiências, estudos ambientais, de impacto regulatório, ao final, com certeza, a ação vai ser julgada inconstitucional. Mas, de imediato, o que se espera é a revogação dessa medida liminar pelo plenário ou pelo próprio ministro relator Ricardo Lewandowski. Por outro lado, também, há uma expectativa de uma interpretação conforme a Constituição, feita pelos próprios municípios, enfim, pelo aplicador da lei, para tentar soluções que não impliquem na paralisação, na letargia total desses negócios.
Essa ação do ministro do STF cria uma insegurança jurídica que preocupa, não é?
Com certeza. Meus clientes me consultaram, o pessoal do setor imobiliário, do setor de turismo, de lazer, de cultura, inclusive, pessoal que traz esses empreendimentos temporários, que se instalam nas zonas do litoral, de festa de final do ano, que precisam obter licenças, autorizações, alvarás... Todos com muitas dúvidas. E num momento de pandemia, de retomada do crescimento, de alta de inflação, de desemprego, que a gente precisa tanto reaquecer a economia. É uma insegurança jurídica indesejada e que já tinha sido superada justamente pela lei que está sendo atacada, pela lei complementar 140. E eu vou dizer um detalhe: pela própria lei do plano de gerenciamento costeiro que a PGR usa como fundamento para pedir a suspensão. Porque essa lei, que é de 1988 e precisa ser contextualizada, mas desde lá, em 1988, e seu decreto regulamentar que é de 2004, indicam que a zona costeira tem a gestão compartilhada, cabendo a descentralização como um princípio. Porque nessa Federação de tamanho continental, nesse território enorme que é o Brasil, o legislador já verificou que é impossível o centro, a União, que está lá em Brasília, se arvorar a licenciar atividades de impacto local, de baixo impacto ambiental em todo o território nacional, em todos os milhares de quilômetros de zona costeira. É agora a Bahia que está sofrendo, mas essa decisão pode gerar um precedente perigoso para todo o Brasil, afetando todo o turismo, hotelaria, empreendimentos imobiliários, atividades de bares, barracas nas zonas litorâneas. Tudo isso passa a ser de impacto nacional de um dia para a noite, ao arrepio da Constituição e da lei, isso gera uma grande instabilidade e o futuro, se mantida essa suspensão, não é positiva para o setor econômico e para a sustentabilidade.
A decisão inviabiliza milhares de negócios e não se levou em conta o impacto econômico e social. Como ficam os hotéis, os empreendimentos que precisaram se adequar à lei que agora foi derrubada?
O que é mais preocupante é que talvez não possa haver uma adequação. Porque muitos deles já fizeram suas aquisições, já iniciaram seus processos de planos de negócios, de retomada, e agora foram pegos de surpresa, confiaram na lei complementar 140 que tem 10 anos, confiaram na Resolução Cepram do estado da Bahia que tratava dessa mesma matéria desde 2013, confiaram numa lei de 2015. E agora, por uma decisão monocrática, singular, sem ouvir as partes interessadas, deixam de ter válido todo esse arcabouço normativo que lhes garantia a segurança jurídica e que fundamentou suas tomadas de decisão. Então são milhares de empregos que podem estar em risco, a constituição civil na Bahia é um player muito importante na geração de emprego, de renda e de novos negócios, e também a hotelaria. Então estima-se que milhares de negócios possam ser suspensos, mas também, inclusive, empregos que podem ser perdidos e deixados de serem executados ou contratados. A todos os baianos, não só aos advogados como eu, à mídia, como o Jornal A Tarde, enfim, é uma decisão que merece a atenção de todos nós e especialmente dos nossos deputados estaduais, federais, daqueles que têm voz política e institucional, o próprio estado, os municípios. Porque não sei se estão desavisados, mas é uma decisão que tem uma interferência direta e pode colocar inclusive a Bahia em desvantagem para a atração de novos negócios com relação a Fortaleza, ao Ceará, ao Rio Grande do Norte, e ao Nordeste.
Por que essa ação contra a Bahia e o que a diferencia dos outros estados?
É que nos outros estados, em vez de ser uma lei, são resoluções que fazem essa delegação de competência. Então a Bahia fez o mais seguro. Está sendo punida por isso? É isso que precisa ser questionado. E também me parece, quero crer, que houve um erro de interpretação e de aplicação da norma. Eu acho que andou bem o parecer da Subprocuradora Geral da República, mas a ação em si que foi proposta pelo Procurador Geral que chefia a instituição que foi pelo caminho errado e talvez tenha induzido o ministro do STF a dar essa liminar. Por isso que eu digo, era preciso, na verdade, suspender essa própria liminar, em reconsideração, para ouvir primeiro todas as partes interessadas, analisar o impacto regulatório, porque não há urgência do caso. A urgência é não parar, é manter a lei que está há 6 anos funcionando. Então qual a urgência de suspender uma norma que vigora há 6 anos já? Nenhuma. Então esse apelo que a gente faz dessa concertação nacional e que se for ao final para declarar inconstitucional a norma, que seja, mas não sem ouvir todas as partes. E com planejamento para uma possível transferência dessa competência, que eu não quero acreditar, para o âmbito federal. Porque também o Ibama eu tenho certeza que não está apto e preparado para receber todo esse volume de licenciamento de centenas de municípios e milhares de pedidos de baixo impacto do dia para a noite.
O ministro Lewandowski teria falado ao Poder 360 que a decisão não retroage. Não atinge o que já foi liberado. Existe uma estimativa, uma expectativa do que possa ser impactado com essa decisão?
Foi bom o gabinete ter dado esse esclarecimento, porque não consta na decisão os efeitos que ela vai produzir. Se retroage ou não. Eu já entendia e já tinha informado a quem me consultou, os setores, segmentos, clientes que estavam assombrados com isso no primeiro momento, que o meu entendimento era justamente esse. Isso não afeta as licenças que foram expedidas até a data da publicação da decisão. Mas, por outro lado, afeta todos os processos que já estavam em andamento e todos os empreendimentos que foram planejados na expectativa de ter o seu licenciamento com a qualidade, celeridade, proximidade que a gestão ambiental confere. Então isso muda o centro de custos, de prazos, as expectativas de relacionamento entre as instituições. Porque o acesso que você tem ao Conselho Municipal de Meio Ambiente é totalmente diferente do Conselho Nacional de Meio Ambiente que só se reúne a cada 3 meses. O Municipal pode se reunir a cada semana. Enfim. Que não conhece as peculiaridades locais. Aqui o município já tem mapeado, planejado, catalogado. O Ibama vai ter que estudar. Então um licenciamento que duraria 6 meses no município vai durar 3, 4 e até 5 anos pelo Ibama, como era na Bahia. Então isso muda todo o cenário de negócios, gera uma instabilidade e afeta milhares de processos que iriam ser protocolados. E agora, fazer o quê?
Essa instabilidade preocupa…
Essa instabilidade preocupa e afasta investimentos, afasta inclusive os bons investimentos. Porque aqueles que causam degradação não procuram o município, não procuram o estado, não procuram a União. Eles vão para a clandestinidade. E na dúvida agora gerada pela decisão do STF, esses clandestinos se animam inclusive para, num suposto conflito, dizer: não, eu posso ir contra a própria legislação, porque vai haver um conflito de fiscalização, eu estou meio que escudado por essa zona de incerteza. Então essa decisão é ruim para todo mundo, inclusive para o próprio meio ambiente.
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